Civilização ou a estória da régia barbárie

19-08-2012
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O inglês sir Kenneth Clark, autor de Civilisation, a inesquecível série televisiva da BBC, confessava não ser capaz de responder à pergunta what is civilisation? Ou seja, sentia-se inepto para a tarefa intelectual de apresentar uma autêntica definição - rigorosa, sucinta e suficientemente abrangente - a partir da qual se possa dar razoável resposta à interrogativa enunciada. Se o barão Clark não logrou estabelecer essa tão procurada definição plena, muito menos terei eu engenho e arte para o fazer. Mas tenho, como ele, a clara noção de que, embora não sabendo definir civilização, sei pelo menos reconhecer a sua presença e, complementarmente, a sua ausência ou escassez de representação.

Felizmente houve outro inglês, de singular calibre mental, que generosamente nos legou preciosíssimo pensamento a partir do qual esse reconfortante reconhecimento se pode operar com maior facilidade. Curioso o facto de esse inestimável legado não ter sido bem assimilado pela generalidade dos membros da elite intelectual. Talvez direto efeito de uma tão acentuada quão intelectualmente escandalosa ausência de leitura crítica. Teve esse outro inglês a generosa preocupação intelectual de descobrir o primeiro fundamento da civilização humana, que é, recorde-se, a única forma de civilização que conhecemos.

Em obra dada à estampa em 1871, declara ser a simpatia a base essencial da civilização. Ela é administrada pelo instinto social, e, por isso mesmo, é dele indissociável. Representa o momento excecional em que se começa a consolidar no seio de uma espécie viva o olhar altruísta sobre o outro; ou seja, em que o eu olha o tu com preocupação afetiva. Essa afeição projeta-se primeiro sobre o tu próximo, para depois se ir estendendo a um outro mais distante (a vários níveis). E de tal modo se estendeu que acabou por se afirmar em relação a um ser outro exuberantemente diferente desse que deveio simpatizante singular. Isto é, a sympathy ultrapassou a fronteira delimitativa da espécie sapiens; transbordou para a esfera dos animais inferiores.

Desenvolvendo-se a partir do momento histórico do reconhecimento do próximo - do semelhante -, aquilo que denominamos civilização é então o que acaba por tornar próximo, e cada vez mais próximo, o outro que é um ser outro, diferente, distante por oposição ao próximo causante do desenvolvimento da emotion of sympathy. Quanto maior for o grau de civilização, mais as fronteiras da simpatia se alargam ou, sob uma outra perspetiva, mais elas se diluem.

Leia-se uma passagem do livro pouco atendido: "A simpatia [sympathy] levada para lá da esfera do homem, isto é, a humanidade relativamente aos animais inferiores, parece ser uma das aquisições morais mais recentes. Os selvagens, aparentemente, não a têm, exceto em relação aos seus animais domésticos ou de estimação."

À luz deste preclaro escrito científico de referência, o ato de, p.e., matar um elefante não é "apenas" um decaimento moral ou um tipo de crime, senão que também uma manifestação da barbárie, ou seja, da anti-civilização. É coisa de selvagem.

O bom e digno governante é aquele que, entre variegados outros atributos exigíveis ou exigidos, possui a qualidade principal de ser um ente civilizado que, logo por isso, de forma intransigente defende a civilização assente na tal simpatia que rompeu caminho em direção ao sentimento de dever para com o outro, por mais distante que ele pareça enquanto expressão de vida.

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No idioma original, lê-se nas páginas do livro aqui chamado: o dever (duty), "[the moral sense] is the most noble of all the attributes of man [...]" (O sentido moral é o mais nobre de todos os atributos do homem [tradução do editor]).

Por ter sido produto da agigantada mente do senhor Darwin, talvez fosse espectável que The descent of man (A origem do homem na edição portuguesa, da Relógio d"Água), aqui citado pelo admirador em crescendo que assumo ser, tivesse suscitado maior cuidar intelectivo. Mas parece que nem mesmo um nobre senhor rei deste incerto e preocupante agora lhe dedicou a devida atenção, com as consequências ético-intelectuais-políticas postas à vista de todos - e não só, julgo eu, de nuestros hermanos. Neste caso, o rei vai pior do que nu: vai despido de civilização.

O inglês sir Kenneth Clark, autor de Civilisation, a inesquecível série televisiva da BBC, confessava não ser capaz de responder à pergunta what is civilisation? Ou seja, sentia-se inepto para a tarefa intelectual de apresentar uma autêntica definição - rigorosa, sucinta e suficientemente abrangente - a partir da qual se possa dar razoável resposta à interrogativa enunciada. Se o barão Clark não logrou estabelecer essa tão procurada definição plena, muito menos terei eu engenho e arte para o fazer. Mas tenho, como ele, a clara noção de que, embora não sabendo definir civilização, sei pelo menos reconhecer a sua presença e, complementarmente, a sua ausência ou escassez de representação.

Felizmente houve outro inglês, de singular calibre mental, que generosamente nos legou preciosíssimo pensamento a partir do qual esse reconfortante reconhecimento se pode operar com maior facilidade. Curioso o facto de esse inestimável legado não ter sido bem assimilado pela generalidade dos membros da elite intelectual. Talvez direto efeito de uma tão acentuada quão intelectualmente escandalosa ausência de leitura crítica. Teve esse outro inglês a generosa preocupação intelectual de descobrir o primeiro fundamento da civilização humana, que é, recorde-se, a única forma de civilização que conhecemos.

Em obra dada à estampa em 1871, declara ser a simpatia a base essencial da civilização. Ela é administrada pelo instinto social, e, por isso mesmo, é dele indissociável. Representa o momento excecional em que se começa a consolidar no seio de uma espécie viva o olhar altruísta sobre o outro; ou seja, em que o eu olha o tu com preocupação afetiva. Essa afeição projeta-se primeiro sobre o tu próximo, para depois se ir estendendo a um outro mais distante (a vários níveis). E de tal modo se estendeu que acabou por se afirmar em relação a um ser outro exuberantemente diferente desse que deveio simpatizante singular. Isto é, a sympathy ultrapassou a fronteira delimitativa da espécie sapiens; transbordou para a esfera dos animais inferiores.

Desenvolvendo-se a partir do momento histórico do reconhecimento do próximo - do semelhante -, aquilo que denominamos civilização é então o que acaba por tornar próximo, e cada vez mais próximo, o outro que é um ser outro, diferente, distante por oposição ao próximo causante do desenvolvimento da emotion of sympathy. Quanto maior for o grau de civilização, mais as fronteiras da simpatia se alargam ou, sob uma outra perspetiva, mais elas se diluem.

Leia-se uma passagem do livro pouco atendido: "A simpatia [sympathy] levada para lá da esfera do homem, isto é, a humanidade relativamente aos animais inferiores, parece ser uma das aquisições morais mais recentes. Os selvagens, aparentemente, não a têm, exceto em relação aos seus animais domésticos ou de estimação."

À luz deste preclaro escrito científico de referência, o ato de, p.e., matar um elefante não é "apenas" um decaimento moral ou um tipo de crime, senão que também uma manifestação da barbárie, ou seja, da anti-civilização. É coisa de selvagem.

O bom e digno governante é aquele que, entre variegados outros atributos exigíveis ou exigidos, possui a qualidade principal de ser um ente civilizado que, logo por isso, de forma intransigente defende a civilização assente na tal simpatia que rompeu caminho em direção ao sentimento de dever para com o outro, por mais distante que ele pareça enquanto expressão de vida.

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No idioma original, lê-se nas páginas do livro aqui chamado: o dever (duty), "[the moral sense] is the most noble of all the attributes of man [...]" (O sentido moral é o mais nobre de todos os atributos do homem [tradução do editor]).

Por ter sido produto da agigantada mente do senhor Darwin, talvez fosse espectável que The descent of man (A origem do homem na edição portuguesa, da Relógio d"Água), aqui citado pelo admirador em crescendo que assumo ser, tivesse suscitado maior cuidar intelectivo. Mas parece que nem mesmo um nobre senhor rei deste incerto e preocupante agora lhe dedicou a devida atenção, com as consequências ético-intelectuais-políticas postas à vista de todos - e não só, julgo eu, de nuestros hermanos. Neste caso, o rei vai pior do que nu: vai despido de civilização.

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