O Cachimbo de Magritte: Três questões sobre o casamento homossexual (agora em filme)

06-07-2011
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À conta de um artigo que escrevi em tempos para a Atlântico, e talvez de haver poucos maluquinhos dispostos a dizer em público que são contra, fui convidado para ir hoje ao "Expresso da Meia Noite", da SIC Notícias, debater o casamento gay. Lá estarei, se tudo correr bem. (Quer dizer, se me livrar de uma inflamação na boca que me tem feito a cara num bolo. Sim, foi de certeza bruxaria da Palmira Silva ou do Daniel Oliveira.) Podem insultar-me na caixa de comentários, mas façam-me um favor: escrevam homofóbico com h e acertem no acento. Entretanto, deixo-vos com o tal artigo. É mais ou menos isto o que vou dizer a Carnaxide."Subitamente, no Inverno passado, o país alvoroçou-se com “o caso Teresa e Lena”. Difundido pelos media, o nome familiar designaria, durante os quinze dias em que foi tema de todas as conversas, a inédita tentativa de casamento entre duas lésbicas numa conservatória do Registo Civil de Lisboa. Estranha familiaridade. José Manuel Fernandes chegou mesmo a perguntar, na Atlântico de Março, se não estaríamos perante uma campanha destinada a introduzir o tema na agenda política.Na verdade, tudo no controverso acontecimento parece ter sido objecto de uma escolha cuidadosa. O tempo: pouco depois da legalização do casamento homossexual em Espanha, não antes das presidenciais para não ser abafado pelo ruído eleitoral, não muito mais tarde para evitar possíveis comentários de um chefe de Estado conservador. O local: “Teresa e Lena” moram perto de Aveiro mas vieram casar à capital, nunca se percebeu exactamente porquê. O próprio “casal”: ambas novas, simpáticas, convictas, muito longe de estereótipos assustadores, uma delas com uma filha que teria declarado ansiar pelo matrimónio das “mães”. Em suma, uma verdadeira happy family que apenas peregrinava à Jerusalém lisboeta para pedir o fim do exílio legal.Não foi a última vez que a polémica saltou para os jornais e televisões. A 26 de Março, Andreia Sanches, curiosamente uma das jornalistas que mais escrevera sobre “Teresa e Lena”, ocupou duas páginas do Público com histórias à Brokeback Mountain, mas passadas no país real. Se o filme não ganhou o Óscar, nem por isso a jornalista deixou de nos informar que os gays portugueses submetidos a um consórcio hetero têm quase invariavelmente uma mulher feliz, muito amor à mulher, filhos, muito amor aos filhos, e dúvidas, muitas dúvidas que os levam, mais tarde ou mais cedo, a trocar tanta felicidade por uma união de facto com o melhor amigo. Por outras palavras, são óptimos heterossexuais - com a pequena diferença de serem homossexuais.Como se explicaria isto? Como se explicaria que óptimos heterossexuais fossem, afinal, homossexuais? Pedro Vasconcelos, “sociólogo que se tem dedicado ao estudo das questões da família e da sexualidade”, dava a resposta. Acontece que “antes da modernidade europeia não se construíam identidades baseadas na sexualidade. As pessoas podiam estar no casamento, ter outras práticas com homens e mulheres, isto podia ser um choque à moral sexual e pública, podia até ser perseguido, mas não era o choque de se descobrir que o ser daquela pessoa era afinal radicalmente outro.” Trocando por miúdos, a terrível modernidade (a europeia, claro, porque o Islão ou a África negra são, como se sabe, tolerantíssimos na matéria) impôs-nos uma identidade baseada no pormenor de alguns de nós terem um pénis e outras uma vagina. Depois de tamanha violência, não admira que andemos todos um pouco baralhados.Todos? Não! Uma pequena aldeia de jornalistas, sociólogos e activistas LGBT resiste ainda e sempre ao invasor. Leram Foucault, o seu profeta, e trazem-nos a luz. Mas eu, que também li Foucault, mantenho algumas dúvidas sobre o casamento gay. Três, para ser mais preciso. Não vi a luz. Não vejo o ouro no fim do arco-íris. Por muito que veja os fins do arco-íris.A homossexualidade como fonte de direitos O principal argumento para mudar o artigo do Código Civil que define o casamento como um “contrato celebrado entre duas pessoas de sexo diferente que pretendem constituir família” tem sido o de acabar com uma discriminação. Se ninguém deve ser discriminado pela orientação sexual, porque não hão-de os gays ter o direito de constituir uma família legítima? Chega a invocar-se a luta pelos direitos cívicos dos negros como precedente histórico.Este argumento é duplamente falacioso.Em primeiro lugar, compara duas coisas incomparáveis. Enquanto Luther King ou Mandela exigiam o fim de leis racistas em nome da igualdade, os homossexuais querem o acesso ao casamento em nome da diferença. Por outras palavras, querem que a homossexualidade seja uma fonte de direitos. Os negros norte-americanos ou sul-africanos sabiam que a origem dos seus direitos estava no que tinham em comum com os seus opressores e não na diferença. Não queriam (pelo menos até alguém ter começado a falar em discriminação positiva) direitos por serem diferentes. Pelo contrário, queriam direitos por serem iguais. Mas os homossexuais dizem-se discriminados na sua condição de diferentes, com a agravante de se queixarem de discriminação no único terreno onde a diferença tem importância: o casamento. É certo que há um tipo de pessoas para quem a diferença constitui fonte de direitos, por exemplo na mobilidade, na assistência médica ou na relação laboral: os deficientes. Duvido, porém, que os gays aceitem a analogia.Em segundo lugar, o universal “direito de constituir família e de contrair matrimónio em condições de plena igualdade”, assim inscrito na Constituição, é por natureza discriminatório. Nem toda a gente pode casar com toda a gente. O Código Civil impõe-lhe limites claros, os chamados impedimentos dirimentes absolutos: “idade inferior a dezasseis anos”, “demência notória” e “casamento anterior não dissolvido”. Seria absurdo, no entanto, que os menores, os loucos e os bígamos se queixassem de discriminação.Além disso, para casar são precisos dois, lá dizia o D. Camilo. Se eu pedir a mão da vizinha da frente, atento à sua condição de filha única do Bill Gates e irmã gémea da Mónica Belluci, mas a donzela não estiver pelos ajustes, talvez seja inútil brandir a Constituição. Ou se eu tentar convencer o Registo Civil a aceder aos meus desejos, estando ela pelos ajustes, mas sendo menor. Os impedimentos derivam tanto da natureza dos contraentes como da natureza do contrato.A instrumentalização fracturante do casamento Ora na história do Ocidente, antes ou depois da “modernidade” do dr. Vasconcelos, o casamento é o mais privado dos contratos. Nos outros, as partes trocam um bem exterior a ambas, neste entregam-se mutuamente a si próprias. O direito romano não exigia sequer uma cerimónia fixa ou um papel obrigatório. À face da lei, um cidadão e a respectiva cidadã estavam casados desde que exprimissem diante de algumas testemunhas a intenção de coabitar, divorciando-se com a mesma informalidade. O Cristianismo aceitou o consentimento como vínculo, acrescentando-lhe apenas a exigência bíblica, mas igualmente íntima, da consumação (“e serão os dois uma só carne”).Assim, durante muito tempo o legislador preocupou-se antes de mais com os efeitos públicos do enlace, em particular a situação da mulher e dos filhos. Em Roma, o único documento escrito era geralmente o contrato de dote, dote que devia ser devolvido à esposa até ao último tostão em caso de divórcio. (Um antepassado da nossa pensão de alimentos, mas independente da generosidade do marido). Daí a necessidade de oficializar o acontecimento.Do mesmo modo, a validade do matrimónio ganhava um especial relevo no reconhecimento da filiação. Tal como hoje, a maternidade é em si um facto evidente, mas a paternidade não (posso explicar porquê a sociólogos e jornalistas). Tal como hoje, o direito e o bom senso resolviam o dilema assumindo, até prova em contrário, que os filhos de uma mulher eram também filhos do marido, facilitando a vida a toda a gente. Is pater est quem nuptiae demonstrant, dizia o aforismo latino. “A paternidade presume-se em relação ao marido da mãe”, traduz o nosso Código Civil. Salvavam-se as aparências e, sobretudo, a legitimidade das crianças.Ou seja, mais latim menos latim, a formalização jurídica do casamento teve sempre o objectivo prioritário de proteger a fragilidade social da mulher e dos filhos. Note-se, aliás, que esta consciência da desigualdade de condições entre o marido/pai e os outros elementos da família justifica ainda hoje os pesados deveres legais impostos aos cônjuges: a fidelidade, a coabitação e a assistência mútua. É apenas em nome de tais pressupostos, e não de qualquer outra consideração moral ou política, que o Estado intervém – e o mínimo possível, como vimos.Acontece que nenhum desses pressupostos se verifica no casamento entre pessoas do mesmo sexo, o que o torna desnecessário. À partida, não há qualquer menoridade de um dos membros do par porque ambos estão em plano de absoluta igualdade, até do ponto de vista sexual. Não há filhos, por natureza ausentes de uma união homossexual, a não ser que nasçam de uma relação heterossexual anterior, como no “caso Teresa e Lena”, ou exterior, como na inseminação artificial e na adopção. Não há qualquer desrespeito por direitos fundamentais a justificar o fim de uma instituição cuja estabilidade interessa a todos, apenas a pressão de um lobby minoritário para mudar a realidade por decreto.Ironia das ironias, os que propõem acabar com os deveres do casamento tradicional (a fidelidade, por exemplo), querem estender os mesmos deveres aos gays. Se o dr. Vasconcelos lembra que “não compete ao Estado apresentar um modelo de vida”, no que estamos de acordo, é apenas para acrescentar que “o instituto legal do casamento devia ser abolido”. E para perguntar, subtil, “porque é que o casamento tem que implicar a recusa de ter relações sexuais com outros”.Sim, porquê?Desta vez, acho que nem eu posso explicar.O pós-moderno conservadorismo gayOu talvez possa.A explicação é que os defensores do casamento homossexual não querem o casamento e os seus deveres, mas o reconhecimento social que o casamento traz consigo. O que pretendem é conquistar um “direito” que não têm, leia-se um dos monopólios da maioria heterossexual. Entrar no último clube onde “gay não entra”. Ganhar na secretaria o que a história lhes negou até agora. Em muitas culturas, um homem ou uma mulher só se tornam plenamente adultos quando casam. Os movimentos gays parecem concordar. Na sua luta política contra a “homofobia”, bandeira vitimizadora e omnipresente, o casamento é apenas um passo. O mais decisivo, sem dúvida. Por isso o atacam pelos dois lados: querem o matrimónio homossexual, mas querem também o fim do matrimónio tradicional. Se tudo é casamento, nada é casamento - e assim acaba a discriminação. De caminho, talvez acabe também o casamento, mas isso é um pormenor tão insignificante como aqueles apêndices em que se fundamentam as identidades modernas.Eis porque, se conquistarem o casamento, os gays exigirão fatalmente a adopção, seguindo a mesmíssima lógica de atacar em duas frentes. Por um lado, em nome do pós-moderno combate à homofobia; por outro, em nome do tradicionalismo que associa casar e ter filhos. Os que são favoráveis à união civil de homossexuais, mas contrários a que eles possam adoptar, apenas alimentam uma contradição que, a seu tempo, alguém há-de explorar.Teoria da conspiração? Não, memória de alguns factos próximos. A luta que os gays travam pelo casamento é semelhante à que têm travado pela admissão nos escuteiros na América ou pela ordenação sacerdotal nas igrejas anglicana e católica. A norma interna das associações escutistas americanas que não admitia homossexuais foi, durante anos, objecto de uma batalha legal que chegou ao Supremo - e que os gays acabaram por perder. Mais perto ainda, a hipótese de ordenar um bispo casado com um homem levou o anglicanismo a enfrentar ameaças de cisma em África e na Ásia. O conflito resolveu-se, ou adiou-se, por meio de uma moratória que não agradou a ninguém. E todos estaremos lembrados de um documento recente da Santa Sé desaconselhando a frequência dos seminários a jovens com tendências homossexuais, que levantou o eterno coro de protestos contra a eternamente invocada hipocrisia católica.Talvez sejam coincidências. Alguém acredita, porém, que os gays tenham caído do cavalo na estrada de Damasco do conservadorismo? Por que razão tentam agora entrar em instituições que sempre denunciaram como repressivas? Sentiram de repente o apelo do altar e da boa acção diária? Querem trocar a liberdade de costumes pela moral religiosa? Ou a boémia elegante pela vida ao ar livre?Permitam-me que desconfie.Nenhum Estado, nenhuma sociedade, nenhuma maioria podem usar a lei para impor uma conduta sexual. Mas nenhuma conduta sexual pode usar a lei para se impor ao Estado, à sociedade ou à maioria.É só isto o que está em jogo, não é ser contra ou a favor da homossexualidade. O respeito pelos gays não consiste em dar-lhes o casamento como um prémio de consolação pelos dois milénios passados no armário. "


À conta de um artigo que escrevi em tempos para a Atlântico, e talvez de haver poucos maluquinhos dispostos a dizer em público que são contra, fui convidado para ir hoje ao "Expresso da Meia Noite", da SIC Notícias, debater o casamento gay. Lá estarei, se tudo correr bem. (Quer dizer, se me livrar de uma inflamação na boca que me tem feito a cara num bolo. Sim, foi de certeza bruxaria da Palmira Silva ou do Daniel Oliveira.) Podem insultar-me na caixa de comentários, mas façam-me um favor: escrevam homofóbico com h e acertem no acento. Entretanto, deixo-vos com o tal artigo. É mais ou menos isto o que vou dizer a Carnaxide."Subitamente, no Inverno passado, o país alvoroçou-se com “o caso Teresa e Lena”. Difundido pelos media, o nome familiar designaria, durante os quinze dias em que foi tema de todas as conversas, a inédita tentativa de casamento entre duas lésbicas numa conservatória do Registo Civil de Lisboa. Estranha familiaridade. José Manuel Fernandes chegou mesmo a perguntar, na Atlântico de Março, se não estaríamos perante uma campanha destinada a introduzir o tema na agenda política.Na verdade, tudo no controverso acontecimento parece ter sido objecto de uma escolha cuidadosa. O tempo: pouco depois da legalização do casamento homossexual em Espanha, não antes das presidenciais para não ser abafado pelo ruído eleitoral, não muito mais tarde para evitar possíveis comentários de um chefe de Estado conservador. O local: “Teresa e Lena” moram perto de Aveiro mas vieram casar à capital, nunca se percebeu exactamente porquê. O próprio “casal”: ambas novas, simpáticas, convictas, muito longe de estereótipos assustadores, uma delas com uma filha que teria declarado ansiar pelo matrimónio das “mães”. Em suma, uma verdadeira happy family que apenas peregrinava à Jerusalém lisboeta para pedir o fim do exílio legal.Não foi a última vez que a polémica saltou para os jornais e televisões. A 26 de Março, Andreia Sanches, curiosamente uma das jornalistas que mais escrevera sobre “Teresa e Lena”, ocupou duas páginas do Público com histórias à Brokeback Mountain, mas passadas no país real. Se o filme não ganhou o Óscar, nem por isso a jornalista deixou de nos informar que os gays portugueses submetidos a um consórcio hetero têm quase invariavelmente uma mulher feliz, muito amor à mulher, filhos, muito amor aos filhos, e dúvidas, muitas dúvidas que os levam, mais tarde ou mais cedo, a trocar tanta felicidade por uma união de facto com o melhor amigo. Por outras palavras, são óptimos heterossexuais - com a pequena diferença de serem homossexuais.Como se explicaria isto? Como se explicaria que óptimos heterossexuais fossem, afinal, homossexuais? Pedro Vasconcelos, “sociólogo que se tem dedicado ao estudo das questões da família e da sexualidade”, dava a resposta. Acontece que “antes da modernidade europeia não se construíam identidades baseadas na sexualidade. As pessoas podiam estar no casamento, ter outras práticas com homens e mulheres, isto podia ser um choque à moral sexual e pública, podia até ser perseguido, mas não era o choque de se descobrir que o ser daquela pessoa era afinal radicalmente outro.” Trocando por miúdos, a terrível modernidade (a europeia, claro, porque o Islão ou a África negra são, como se sabe, tolerantíssimos na matéria) impôs-nos uma identidade baseada no pormenor de alguns de nós terem um pénis e outras uma vagina. Depois de tamanha violência, não admira que andemos todos um pouco baralhados.Todos? Não! Uma pequena aldeia de jornalistas, sociólogos e activistas LGBT resiste ainda e sempre ao invasor. Leram Foucault, o seu profeta, e trazem-nos a luz. Mas eu, que também li Foucault, mantenho algumas dúvidas sobre o casamento gay. Três, para ser mais preciso. Não vi a luz. Não vejo o ouro no fim do arco-íris. Por muito que veja os fins do arco-íris.A homossexualidade como fonte de direitos O principal argumento para mudar o artigo do Código Civil que define o casamento como um “contrato celebrado entre duas pessoas de sexo diferente que pretendem constituir família” tem sido o de acabar com uma discriminação. Se ninguém deve ser discriminado pela orientação sexual, porque não hão-de os gays ter o direito de constituir uma família legítima? Chega a invocar-se a luta pelos direitos cívicos dos negros como precedente histórico.Este argumento é duplamente falacioso.Em primeiro lugar, compara duas coisas incomparáveis. Enquanto Luther King ou Mandela exigiam o fim de leis racistas em nome da igualdade, os homossexuais querem o acesso ao casamento em nome da diferença. Por outras palavras, querem que a homossexualidade seja uma fonte de direitos. Os negros norte-americanos ou sul-africanos sabiam que a origem dos seus direitos estava no que tinham em comum com os seus opressores e não na diferença. Não queriam (pelo menos até alguém ter começado a falar em discriminação positiva) direitos por serem diferentes. Pelo contrário, queriam direitos por serem iguais. Mas os homossexuais dizem-se discriminados na sua condição de diferentes, com a agravante de se queixarem de discriminação no único terreno onde a diferença tem importância: o casamento. É certo que há um tipo de pessoas para quem a diferença constitui fonte de direitos, por exemplo na mobilidade, na assistência médica ou na relação laboral: os deficientes. Duvido, porém, que os gays aceitem a analogia.Em segundo lugar, o universal “direito de constituir família e de contrair matrimónio em condições de plena igualdade”, assim inscrito na Constituição, é por natureza discriminatório. Nem toda a gente pode casar com toda a gente. O Código Civil impõe-lhe limites claros, os chamados impedimentos dirimentes absolutos: “idade inferior a dezasseis anos”, “demência notória” e “casamento anterior não dissolvido”. Seria absurdo, no entanto, que os menores, os loucos e os bígamos se queixassem de discriminação.Além disso, para casar são precisos dois, lá dizia o D. Camilo. Se eu pedir a mão da vizinha da frente, atento à sua condição de filha única do Bill Gates e irmã gémea da Mónica Belluci, mas a donzela não estiver pelos ajustes, talvez seja inútil brandir a Constituição. Ou se eu tentar convencer o Registo Civil a aceder aos meus desejos, estando ela pelos ajustes, mas sendo menor. Os impedimentos derivam tanto da natureza dos contraentes como da natureza do contrato.A instrumentalização fracturante do casamento Ora na história do Ocidente, antes ou depois da “modernidade” do dr. Vasconcelos, o casamento é o mais privado dos contratos. Nos outros, as partes trocam um bem exterior a ambas, neste entregam-se mutuamente a si próprias. O direito romano não exigia sequer uma cerimónia fixa ou um papel obrigatório. À face da lei, um cidadão e a respectiva cidadã estavam casados desde que exprimissem diante de algumas testemunhas a intenção de coabitar, divorciando-se com a mesma informalidade. O Cristianismo aceitou o consentimento como vínculo, acrescentando-lhe apenas a exigência bíblica, mas igualmente íntima, da consumação (“e serão os dois uma só carne”).Assim, durante muito tempo o legislador preocupou-se antes de mais com os efeitos públicos do enlace, em particular a situação da mulher e dos filhos. Em Roma, o único documento escrito era geralmente o contrato de dote, dote que devia ser devolvido à esposa até ao último tostão em caso de divórcio. (Um antepassado da nossa pensão de alimentos, mas independente da generosidade do marido). Daí a necessidade de oficializar o acontecimento.Do mesmo modo, a validade do matrimónio ganhava um especial relevo no reconhecimento da filiação. Tal como hoje, a maternidade é em si um facto evidente, mas a paternidade não (posso explicar porquê a sociólogos e jornalistas). Tal como hoje, o direito e o bom senso resolviam o dilema assumindo, até prova em contrário, que os filhos de uma mulher eram também filhos do marido, facilitando a vida a toda a gente. Is pater est quem nuptiae demonstrant, dizia o aforismo latino. “A paternidade presume-se em relação ao marido da mãe”, traduz o nosso Código Civil. Salvavam-se as aparências e, sobretudo, a legitimidade das crianças.Ou seja, mais latim menos latim, a formalização jurídica do casamento teve sempre o objectivo prioritário de proteger a fragilidade social da mulher e dos filhos. Note-se, aliás, que esta consciência da desigualdade de condições entre o marido/pai e os outros elementos da família justifica ainda hoje os pesados deveres legais impostos aos cônjuges: a fidelidade, a coabitação e a assistência mútua. É apenas em nome de tais pressupostos, e não de qualquer outra consideração moral ou política, que o Estado intervém – e o mínimo possível, como vimos.Acontece que nenhum desses pressupostos se verifica no casamento entre pessoas do mesmo sexo, o que o torna desnecessário. À partida, não há qualquer menoridade de um dos membros do par porque ambos estão em plano de absoluta igualdade, até do ponto de vista sexual. Não há filhos, por natureza ausentes de uma união homossexual, a não ser que nasçam de uma relação heterossexual anterior, como no “caso Teresa e Lena”, ou exterior, como na inseminação artificial e na adopção. Não há qualquer desrespeito por direitos fundamentais a justificar o fim de uma instituição cuja estabilidade interessa a todos, apenas a pressão de um lobby minoritário para mudar a realidade por decreto.Ironia das ironias, os que propõem acabar com os deveres do casamento tradicional (a fidelidade, por exemplo), querem estender os mesmos deveres aos gays. Se o dr. Vasconcelos lembra que “não compete ao Estado apresentar um modelo de vida”, no que estamos de acordo, é apenas para acrescentar que “o instituto legal do casamento devia ser abolido”. E para perguntar, subtil, “porque é que o casamento tem que implicar a recusa de ter relações sexuais com outros”.Sim, porquê?Desta vez, acho que nem eu posso explicar.O pós-moderno conservadorismo gayOu talvez possa.A explicação é que os defensores do casamento homossexual não querem o casamento e os seus deveres, mas o reconhecimento social que o casamento traz consigo. O que pretendem é conquistar um “direito” que não têm, leia-se um dos monopólios da maioria heterossexual. Entrar no último clube onde “gay não entra”. Ganhar na secretaria o que a história lhes negou até agora. Em muitas culturas, um homem ou uma mulher só se tornam plenamente adultos quando casam. Os movimentos gays parecem concordar. Na sua luta política contra a “homofobia”, bandeira vitimizadora e omnipresente, o casamento é apenas um passo. O mais decisivo, sem dúvida. Por isso o atacam pelos dois lados: querem o matrimónio homossexual, mas querem também o fim do matrimónio tradicional. Se tudo é casamento, nada é casamento - e assim acaba a discriminação. De caminho, talvez acabe também o casamento, mas isso é um pormenor tão insignificante como aqueles apêndices em que se fundamentam as identidades modernas.Eis porque, se conquistarem o casamento, os gays exigirão fatalmente a adopção, seguindo a mesmíssima lógica de atacar em duas frentes. Por um lado, em nome do pós-moderno combate à homofobia; por outro, em nome do tradicionalismo que associa casar e ter filhos. Os que são favoráveis à união civil de homossexuais, mas contrários a que eles possam adoptar, apenas alimentam uma contradição que, a seu tempo, alguém há-de explorar.Teoria da conspiração? Não, memória de alguns factos próximos. A luta que os gays travam pelo casamento é semelhante à que têm travado pela admissão nos escuteiros na América ou pela ordenação sacerdotal nas igrejas anglicana e católica. A norma interna das associações escutistas americanas que não admitia homossexuais foi, durante anos, objecto de uma batalha legal que chegou ao Supremo - e que os gays acabaram por perder. Mais perto ainda, a hipótese de ordenar um bispo casado com um homem levou o anglicanismo a enfrentar ameaças de cisma em África e na Ásia. O conflito resolveu-se, ou adiou-se, por meio de uma moratória que não agradou a ninguém. E todos estaremos lembrados de um documento recente da Santa Sé desaconselhando a frequência dos seminários a jovens com tendências homossexuais, que levantou o eterno coro de protestos contra a eternamente invocada hipocrisia católica.Talvez sejam coincidências. Alguém acredita, porém, que os gays tenham caído do cavalo na estrada de Damasco do conservadorismo? Por que razão tentam agora entrar em instituições que sempre denunciaram como repressivas? Sentiram de repente o apelo do altar e da boa acção diária? Querem trocar a liberdade de costumes pela moral religiosa? Ou a boémia elegante pela vida ao ar livre?Permitam-me que desconfie.Nenhum Estado, nenhuma sociedade, nenhuma maioria podem usar a lei para impor uma conduta sexual. Mas nenhuma conduta sexual pode usar a lei para se impor ao Estado, à sociedade ou à maioria.É só isto o que está em jogo, não é ser contra ou a favor da homossexualidade. O respeito pelos gays não consiste em dar-lhes o casamento como um prémio de consolação pelos dois milénios passados no armário. "

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