O Cachimbo de Magritte: Os amigos de Peniche (III)

21-01-2012
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Um comentador, que assina Rui, pergunta-me se o que digo sobre Peniche também se aplica a Auschwitz, ou se vou dizer que "uns têm direito à preservação da memória e os outros são simplesmente um empecilho à criação de emprego".Embora a comparação seja descabida, no que diz respeito à escala e à natureza dos termos comparados, a pergunta toca num ponto central. A própria Françoise Choay cita os campos de extermínio nazis, "simultaneamente relíquias e relicários", como exemplo de memoriais que devem a conservação intocada a "um passado cujo peso e horror nos impedem de os confiar apenas à memória histórica. (...) Melhor do que símblos abstractos ou imagens realistas, melhor do que fotografias, são os próprios campos de concentração, parte integrante do drama comemorado, com as suas barracas e câmaras de gás, que se tornaram monumentos" (A Alegoria do Património, 2000, p. 21). O cenário do máximo martírio dos tempos modernos que foi o Holocausto (palavra grega que significa o sacrifício de numerosas vítimas aos deuses) ganha uma intangibilidade sagrada. Não estou a usar uma metáfora. É sabido que, há alguns anos, as organizações judaicas se opuseram à construção de um convento carmelita nas proximidades de Auschwitz, invocando o respeito pelas vítimas do anti-semitismo. Exactamente como, em Peniche, a Associação Não Apaguem a Memória se opõe à exploração comercial do Forte em nome do respeito pelas vítimas do fascismo. O que se recorda é tão transcendente, mesmo se esta palavra nunca se diz, que torna incompatível qualquer outro uso que não a memória das vítimas, à guarda dos seus herdeiros directos. O paralelo pode até ir mais longe. Já vários historiadores, em particular Ernst Nolte e François Furet, chamaram a atenção para o tratamento diferenciado que têm, na Europa ocidental, as memórias do fascismo e do comunismo. O fascismo, mesmo nas suas versões mais pálidas como o salazarismo, é visto como o mal absoluto. Os seus crimes ganham, pois, um estatuto igualmente absoluto, para lá de qualquer limite temporal ou material. A surrealista abertura de processos judiciais contra Franco e outros insurrectos de 1936, por parte de Baltazar Garzón, ilustra bem esta absolutização do mal fascista, que se manifesta também na enorme polémica que um filme como A Queda, com a humanização da figura de Hitler, provocou na Alemanha. O comunismo não tem esta aura maligna. Os seus crimes são mais facilmente perdoados em nome dos "amanhãs que cantam". As suas vítimas são mais envergonhadamente lembradas. E assim se quer conservar, em Peniche, o santuário do antifascismo português, esquecendo que os heróis que aí sofreram queriam trocar um fascismo por outro. A Associação Não Apaguem a Memória deve dizer-nos a todos, comunistas e não comunistas, se o que propõe comemorar em Peniche é apenas a luta pela democracia ou algo mais do que isso. São reservas que não se põem a Auschwitz, onde as vítimas não lutavam por nada a não ser a mera existência. O que muda tudo.


Um comentador, que assina Rui, pergunta-me se o que digo sobre Peniche também se aplica a Auschwitz, ou se vou dizer que "uns têm direito à preservação da memória e os outros são simplesmente um empecilho à criação de emprego".Embora a comparação seja descabida, no que diz respeito à escala e à natureza dos termos comparados, a pergunta toca num ponto central. A própria Françoise Choay cita os campos de extermínio nazis, "simultaneamente relíquias e relicários", como exemplo de memoriais que devem a conservação intocada a "um passado cujo peso e horror nos impedem de os confiar apenas à memória histórica. (...) Melhor do que símblos abstractos ou imagens realistas, melhor do que fotografias, são os próprios campos de concentração, parte integrante do drama comemorado, com as suas barracas e câmaras de gás, que se tornaram monumentos" (A Alegoria do Património, 2000, p. 21). O cenário do máximo martírio dos tempos modernos que foi o Holocausto (palavra grega que significa o sacrifício de numerosas vítimas aos deuses) ganha uma intangibilidade sagrada. Não estou a usar uma metáfora. É sabido que, há alguns anos, as organizações judaicas se opuseram à construção de um convento carmelita nas proximidades de Auschwitz, invocando o respeito pelas vítimas do anti-semitismo. Exactamente como, em Peniche, a Associação Não Apaguem a Memória se opõe à exploração comercial do Forte em nome do respeito pelas vítimas do fascismo. O que se recorda é tão transcendente, mesmo se esta palavra nunca se diz, que torna incompatível qualquer outro uso que não a memória das vítimas, à guarda dos seus herdeiros directos. O paralelo pode até ir mais longe. Já vários historiadores, em particular Ernst Nolte e François Furet, chamaram a atenção para o tratamento diferenciado que têm, na Europa ocidental, as memórias do fascismo e do comunismo. O fascismo, mesmo nas suas versões mais pálidas como o salazarismo, é visto como o mal absoluto. Os seus crimes ganham, pois, um estatuto igualmente absoluto, para lá de qualquer limite temporal ou material. A surrealista abertura de processos judiciais contra Franco e outros insurrectos de 1936, por parte de Baltazar Garzón, ilustra bem esta absolutização do mal fascista, que se manifesta também na enorme polémica que um filme como A Queda, com a humanização da figura de Hitler, provocou na Alemanha. O comunismo não tem esta aura maligna. Os seus crimes são mais facilmente perdoados em nome dos "amanhãs que cantam". As suas vítimas são mais envergonhadamente lembradas. E assim se quer conservar, em Peniche, o santuário do antifascismo português, esquecendo que os heróis que aí sofreram queriam trocar um fascismo por outro. A Associação Não Apaguem a Memória deve dizer-nos a todos, comunistas e não comunistas, se o que propõe comemorar em Peniche é apenas a luta pela democracia ou algo mais do que isso. São reservas que não se põem a Auschwitz, onde as vítimas não lutavam por nada a não ser a mera existência. O que muda tudo.

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