Autor do livro WikiLeaks: News in the networked era, Beckett argumenta que o site retirou aos jornalistas o monopólio da relação com o poder político. Mas diz que a organização dirigida por Julian Assange é frágil e não tem futuro garantido.
A WikiLeaks, uma organização sem fins lucrativos, protagonizou no ano passado uma série de fugas de informação muito mediatizadas. Divulgou um vídeo em que jornalistas iraquianos são mortos durante um ataque de helicóptero por militares americanos. Revelou documentos secretos sobre as guerras no Afeganistão e no Iraque. Publicou milhares de telegramas classificados das embaixadas americanas em vários países. E, na quinta-feira, revelou documentos segundo os quais há uma indústria mundial de "tecnologia de vigilância" em larga escala (ver caixa).
Charlie Beckett, jornalista durante mais de 20 anos e hoje director do Polis, um think tank na London School of Economics, é o autor principal de um livro sobre os efeitos da WikiLeaks no jornalismo e na comunicação política, que será publicado ainda este mês (o outro autor é James Ball). Esteve em Portugal para uma conferência sobre o assunto, organizada pelo ISCTE, em Lisboa, e conversou com o P2. Lembra que a WikiLeaks precisou de recorrer aos media tradicionais para ter impacto, mas sublinha que há um cepticismo em relação aos jornalistas profissionais que abre espaço para formas alternativas de comunicação.
A WikiLeaks define-se como uma organização jornalística. Considera que a WikiLeaks e Julian Assange fazem jornalismo?
Depende da definição de jornalismo. Num mundo em que toda a gente pode fazer jornalismo, em que as pessoas podem usar telemóveis para tirar fotos, podem usar o Twitter para espalhar notícias de última hora, o conceito de jornalismo é maior. A WikiLeaks até é muito tradicional. Tal como a WikiLeaks, o jornalismo sempre foi sobre tentar revelar segredos. O facto de a WikiLeaks ter uma missão, uma agenda - isso não é raro acontecer no jornalismo. O jornalismo é frequentemente politizado. E o facto de ter um director carismático - isso também é frequente no jornalismo.
O objectivo da WikiLeaks parece ser mais o de revelar documentos do que o de os explicar e encontrar sentido na informação.
Essa é a grande diferença. A WikiLeaks começou por ser apenas uma plataforma de fugas de informação. Prometeu publicar o que lhe fosse dado. Mas, quando chegaram as fugas de informação sobre o Afeganistão e o Iraque, quiseram que essa informação tivesse impacto. Então precisaram da cooperação dos media mainstream. A WikiLeaks foi mais eficaz quando foi mais tradicional. Quando trabalhou com uma rede que incluía o New York Times, a Spiegel e o Guardian. Foi quando conseguiu oferecer a informação de uma forma acessível. É quase impossível entender o site da WikiLeaks, há demasiada informação.
O resultado teria sido diferente, se a informação tivesse sido passada directamente para jornais?
A grande diferença é que esta tecnologia dá segurança e imunidade. Se se dá informação directamente a um jornal, e temos visto isto acontecer, pode ser-se identificado. Tecnicamente e legalmente. Se damos informação à WikiLeaks, ficamos anónimos e protegidos. Em primeiro lugar, pela segurança informática. Depois, porque a WikiLeaks não existe num sítio, não é afectada da mesma forma por uma legislação. Eventualmente, os jornais podem ser chamados pelas autoridades locais. A WikiLeaks não tem liberdade absoluta, mas é difícil que seja chamada à responsabilidade.
Isso é bom ou mau?
Não uso essas palavras. Mesmo que a WikiLeaks desaparecesse amanhã, aquilo que permitiu o aparecimento da WikiLeaks continuaria a existir. Há um imenso cepticismo em relação aos media tradicionais. Os media parecem ter falhado - na guerra do Iraque, em casos de corrupção... Em muitos países, os media estão demasiado próximos dos políticos. Por isso, o desejo de que surjam media de ruptura como a WikiLeaks vai continuar.
As acções da WikiLeaks tiveram algum impacto no comportamento dos políticos?
Os políticos não mudam só porque se divulga informação. Não consigo pensar em algo que tenha mudado muito por causa da WikiLeaks. A guerra no Iraque não acabou. A WikiLeaks mostrou pela primeira vez como pensam os diplomatas americanos. Mas não houve muitos escândalos para os EUA. Genericamente, o que os diplomatas diziam nos telegramas era semelhante ao que diziam em público. O efeito é muito mais subtil. E o efeito não será tanto nos EUA, mas em sociedades mais fechadas. Para pessoas no Médio Oriente, a WikiLeaks é uma inspiração.
Houve demasiado entusiasmo com os telegramas das embaixadas?
Num certo sentido, sim. Sobretudo porque o modus operandi dos media foi posto em causa de repente. Os media tradicionais estão habituados a serem os únicos a ter uma relação com o poder. De repente, a WikiLeaks abre esse mundo que eles tinham mantido como seu. A ameaça foi existencial. Os media sentiram-se postos a nu. E teve de haver um processo de ajustamento. Recentemente, falei com o director da Spiegel e ele estava muito contente por ter trabalhado com o Julian Assange. O Alan Rusbridger [director do Guardian] também. E o mesmo acontece quando se fala com alguém no Departamento do Estado americano. Ajustaram-se. Perceberam que estão num mundo novo. E agora querem abertura de informação, porque isso permite-lhes estender as suas políticas. Querem mais abertura na China e no Médio Oriente.
No seu livro, analisa os efeitos da WikiLeaks e a forma como estão relacionados com o uso de media sociais, nomeadamente nas revoltas árabes. Vê a WikiLeaks como algo à parte de fenómenos como a blogosfera, o Facebook e o Twitter?
A WikiLeaks tem um efeito muito mais dramático, porque é um episódio único. Mas, a longo prazo, é muito mais importante a informação que circula nas redes sociais. É um fenómeno mais sustentável e está mais relacionado com o poder político. Se pensarmos no Egipto, por exemplo, o YouTube, o Twitter, o Facebook e a Al-Jazira, combinados com os media mainstream, foram muito mais importantes do que a WikiLeaks. Combinaram uma espécie de jornalismo e activismo.
Tem estado a desvalorizar o impacto da WikiLeaks. Acha que vai acabar por deixar de ser relevante?
Não sei. A WikiLeaks é muito frágil, sobretudo por causa do controlo de um homem. Tem milhares de apoiantes, mas não tem sustentabilidade institucional. Tanto em termos de capacidade de angariar fundos como de obter informação [a entrevista foi feita dias antes de a WikiLeaks anunciar dificuldades de financiamento]. Pode continuar, mas as suas actividades serão mais a excepção do que a regra. Haverá outros sites de fugas de informação.
Então que papel teve a WikiLeaks no meio das outras ferramentas online?
A WikiLeaks é simbólica. As pessoas que incitam a uma acção no Twitter (como no caso da Praça Tahrir) são os casos que preocupam o poder. Quem está no poder em Teerão ou em Pequim está preocupado com os milhares de pessoas a fazerem pequenas coisas na Internet, com a construção de uma vaga. As redes sociais são uma forma eficaz de espalhar informação. Em todo o lado - Portugal, Espanha, China - vão ser usadas, por exemplo, para partilhar informação sobre corrupção, identificá-la, fazer lobby contra ela.
Isso não vai estreitar o campo de acção dos jornalistas?
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Creio que o contrário. O jornalismo profissional pode acabar diminuído, se for estúpido em relação à tecnologia e ao negócio. Há toda esta informação a circular e boa parte dela é controlada por pessoas comuns. Muita dela não é verificável. Mais do que nunca, há uma procura de mecanismos que validem, filtrem e liguem essa informação. Isso é jornalismo. A nossa mentalidade [dos jornalistas] no passado era bastante arrogante. "Nós temos a verdade e contamos a verdade." Uma das coisas que a WikiLeaks fez foi dar a informação directamente às pessoas.
Diz que as pessoas perderam a confiança nos media tradicionais. Mas não confiam demasiado rapidamente em informação que vem de fora dos media, mesmo que não verificada?
Isso é um problema e uma oportunidade para os jornalistas. O problema da confiança vai para além dos media. Tem a ver com o declínio da religião organizada, com o aumento do individualismo e dos níveis de riqueza. As pessoas sentem-se confiantes. É bom que as pessoas estejam a questionar as coisas e sejam cépticas. É um sinal de progresso. Mas torna a vida mais difícil para os jornalistas.
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Autor do livro WikiLeaks: News in the networked era, Beckett argumenta que o site retirou aos jornalistas o monopólio da relação com o poder político. Mas diz que a organização dirigida por Julian Assange é frágil e não tem futuro garantido.
A WikiLeaks, uma organização sem fins lucrativos, protagonizou no ano passado uma série de fugas de informação muito mediatizadas. Divulgou um vídeo em que jornalistas iraquianos são mortos durante um ataque de helicóptero por militares americanos. Revelou documentos secretos sobre as guerras no Afeganistão e no Iraque. Publicou milhares de telegramas classificados das embaixadas americanas em vários países. E, na quinta-feira, revelou documentos segundo os quais há uma indústria mundial de "tecnologia de vigilância" em larga escala (ver caixa).
Charlie Beckett, jornalista durante mais de 20 anos e hoje director do Polis, um think tank na London School of Economics, é o autor principal de um livro sobre os efeitos da WikiLeaks no jornalismo e na comunicação política, que será publicado ainda este mês (o outro autor é James Ball). Esteve em Portugal para uma conferência sobre o assunto, organizada pelo ISCTE, em Lisboa, e conversou com o P2. Lembra que a WikiLeaks precisou de recorrer aos media tradicionais para ter impacto, mas sublinha que há um cepticismo em relação aos jornalistas profissionais que abre espaço para formas alternativas de comunicação.
A WikiLeaks define-se como uma organização jornalística. Considera que a WikiLeaks e Julian Assange fazem jornalismo?
Depende da definição de jornalismo. Num mundo em que toda a gente pode fazer jornalismo, em que as pessoas podem usar telemóveis para tirar fotos, podem usar o Twitter para espalhar notícias de última hora, o conceito de jornalismo é maior. A WikiLeaks até é muito tradicional. Tal como a WikiLeaks, o jornalismo sempre foi sobre tentar revelar segredos. O facto de a WikiLeaks ter uma missão, uma agenda - isso não é raro acontecer no jornalismo. O jornalismo é frequentemente politizado. E o facto de ter um director carismático - isso também é frequente no jornalismo.
O objectivo da WikiLeaks parece ser mais o de revelar documentos do que o de os explicar e encontrar sentido na informação.
Essa é a grande diferença. A WikiLeaks começou por ser apenas uma plataforma de fugas de informação. Prometeu publicar o que lhe fosse dado. Mas, quando chegaram as fugas de informação sobre o Afeganistão e o Iraque, quiseram que essa informação tivesse impacto. Então precisaram da cooperação dos media mainstream. A WikiLeaks foi mais eficaz quando foi mais tradicional. Quando trabalhou com uma rede que incluía o New York Times, a Spiegel e o Guardian. Foi quando conseguiu oferecer a informação de uma forma acessível. É quase impossível entender o site da WikiLeaks, há demasiada informação.
O resultado teria sido diferente, se a informação tivesse sido passada directamente para jornais?
A grande diferença é que esta tecnologia dá segurança e imunidade. Se se dá informação directamente a um jornal, e temos visto isto acontecer, pode ser-se identificado. Tecnicamente e legalmente. Se damos informação à WikiLeaks, ficamos anónimos e protegidos. Em primeiro lugar, pela segurança informática. Depois, porque a WikiLeaks não existe num sítio, não é afectada da mesma forma por uma legislação. Eventualmente, os jornais podem ser chamados pelas autoridades locais. A WikiLeaks não tem liberdade absoluta, mas é difícil que seja chamada à responsabilidade.
Isso é bom ou mau?
Não uso essas palavras. Mesmo que a WikiLeaks desaparecesse amanhã, aquilo que permitiu o aparecimento da WikiLeaks continuaria a existir. Há um imenso cepticismo em relação aos media tradicionais. Os media parecem ter falhado - na guerra do Iraque, em casos de corrupção... Em muitos países, os media estão demasiado próximos dos políticos. Por isso, o desejo de que surjam media de ruptura como a WikiLeaks vai continuar.
As acções da WikiLeaks tiveram algum impacto no comportamento dos políticos?
Os políticos não mudam só porque se divulga informação. Não consigo pensar em algo que tenha mudado muito por causa da WikiLeaks. A guerra no Iraque não acabou. A WikiLeaks mostrou pela primeira vez como pensam os diplomatas americanos. Mas não houve muitos escândalos para os EUA. Genericamente, o que os diplomatas diziam nos telegramas era semelhante ao que diziam em público. O efeito é muito mais subtil. E o efeito não será tanto nos EUA, mas em sociedades mais fechadas. Para pessoas no Médio Oriente, a WikiLeaks é uma inspiração.
Houve demasiado entusiasmo com os telegramas das embaixadas?
Num certo sentido, sim. Sobretudo porque o modus operandi dos media foi posto em causa de repente. Os media tradicionais estão habituados a serem os únicos a ter uma relação com o poder. De repente, a WikiLeaks abre esse mundo que eles tinham mantido como seu. A ameaça foi existencial. Os media sentiram-se postos a nu. E teve de haver um processo de ajustamento. Recentemente, falei com o director da Spiegel e ele estava muito contente por ter trabalhado com o Julian Assange. O Alan Rusbridger [director do Guardian] também. E o mesmo acontece quando se fala com alguém no Departamento do Estado americano. Ajustaram-se. Perceberam que estão num mundo novo. E agora querem abertura de informação, porque isso permite-lhes estender as suas políticas. Querem mais abertura na China e no Médio Oriente.
No seu livro, analisa os efeitos da WikiLeaks e a forma como estão relacionados com o uso de media sociais, nomeadamente nas revoltas árabes. Vê a WikiLeaks como algo à parte de fenómenos como a blogosfera, o Facebook e o Twitter?
A WikiLeaks tem um efeito muito mais dramático, porque é um episódio único. Mas, a longo prazo, é muito mais importante a informação que circula nas redes sociais. É um fenómeno mais sustentável e está mais relacionado com o poder político. Se pensarmos no Egipto, por exemplo, o YouTube, o Twitter, o Facebook e a Al-Jazira, combinados com os media mainstream, foram muito mais importantes do que a WikiLeaks. Combinaram uma espécie de jornalismo e activismo.
Tem estado a desvalorizar o impacto da WikiLeaks. Acha que vai acabar por deixar de ser relevante?
Não sei. A WikiLeaks é muito frágil, sobretudo por causa do controlo de um homem. Tem milhares de apoiantes, mas não tem sustentabilidade institucional. Tanto em termos de capacidade de angariar fundos como de obter informação [a entrevista foi feita dias antes de a WikiLeaks anunciar dificuldades de financiamento]. Pode continuar, mas as suas actividades serão mais a excepção do que a regra. Haverá outros sites de fugas de informação.
Então que papel teve a WikiLeaks no meio das outras ferramentas online?
A WikiLeaks é simbólica. As pessoas que incitam a uma acção no Twitter (como no caso da Praça Tahrir) são os casos que preocupam o poder. Quem está no poder em Teerão ou em Pequim está preocupado com os milhares de pessoas a fazerem pequenas coisas na Internet, com a construção de uma vaga. As redes sociais são uma forma eficaz de espalhar informação. Em todo o lado - Portugal, Espanha, China - vão ser usadas, por exemplo, para partilhar informação sobre corrupção, identificá-la, fazer lobby contra ela.
Isso não vai estreitar o campo de acção dos jornalistas?
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Creio que o contrário. O jornalismo profissional pode acabar diminuído, se for estúpido em relação à tecnologia e ao negócio. Há toda esta informação a circular e boa parte dela é controlada por pessoas comuns. Muita dela não é verificável. Mais do que nunca, há uma procura de mecanismos que validem, filtrem e liguem essa informação. Isso é jornalismo. A nossa mentalidade [dos jornalistas] no passado era bastante arrogante. "Nós temos a verdade e contamos a verdade." Uma das coisas que a WikiLeaks fez foi dar a informação directamente às pessoas.
Diz que as pessoas perderam a confiança nos media tradicionais. Mas não confiam demasiado rapidamente em informação que vem de fora dos media, mesmo que não verificada?
Isso é um problema e uma oportunidade para os jornalistas. O problema da confiança vai para além dos media. Tem a ver com o declínio da religião organizada, com o aumento do individualismo e dos níveis de riqueza. As pessoas sentem-se confiantes. É bom que as pessoas estejam a questionar as coisas e sejam cépticas. É um sinal de progresso. Mas torna a vida mais difícil para os jornalistas.