O Cachimbo de Magritte: De Whitman a Tolstoi (II)

24-01-2012
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No Geração de 60, Alexandre Brandão da Veiga lamenta "a russofobia que impera hoje em dia" e classifica a Rússia como "o maior país europeu". E Eduardo Lourenço, no artigo de ontem, insistia na " nossa longa e capital história comum".Estas afirmações, apesar da sua respeitável genealogia, apenas em parte são verdadeiras. É certo que, do ponto de vista geográfico e cultural, a Rússia faz parte da Europa. A dialéctica da abertura europeia versus isolamento asiático, a que tantas vezes se recorre para descrever os solavancos da "alma russa" (seja lá o que isso for), não explica tudo. Mas é preciso mais do que ter um pé no Báltico e a cabeça em Paris para fazer parte da tradição política do Ocidente.Fernand Braudel notava que, nas margens do Mediterrâneo, se enfrentam há milénios três civilizações. Braudel entendia o conceito de civilização no seu sentido mais lato, isto é, como modo de vida e não apenas como cultura ou religião. A mais antiga seria o velho Oriente que nasce no Crescente Fértil, cresce na Mesopotâmia, no Egipto e na Fenícia, tenta dominar o mar interior com Cartago e com os Persas, e acaba por conhecer finalmente a unidade sob o Islão. A outra civilização (quase uma imagem invertida da sua eterna rival) é o Ocidente latino, conquistado por Roma, depois pelos bárbaros, mais tarde governado pelo Papa e pelos reinos cristãos, por fim dividido entre protestantes a norte e católicos a sul. Mas há um terceiro protagonista da história mediterrânica, e não menos importante do que os anteriores: a língua grega. Estendendo-se pelas margens vizinhas da Hélade através da fundação de colónias que, dizem a lenda e a arqueologia, terão ido de Lisboa ao Mar Negro, o grego torna-se a língua franca do Mediterrâneo oriental com Alexandre Magno. A helenização é tão profunda que, após o triunfo romano, continuará a falar-se grego na parte oriental do Império. Poucas vezes nos lembramos de que os primeiros textos do Cristianismo, religião com profundas raízes na Palestina, na Síria e na actual Turquia, são na língua de Homero. A fronteira linguística passava algures pelos Balcãs e, morto Constantino, serviu de mapa à divisão política entre Império do Ocidente e Império do Oriente. Com a queda do primeiro, é este que herda o sonho universal de Roma, dando-lhe o nome de Bizâncio. Um sonho que Moscovo virá a herdar, depois da conquista de Constantinopla pelos turcos.No século XI, o corte religioso entre ortodoxos, que recusam obedecer ao Papa, e católicos, que se definem por essa obediência, segue o rumo do afastamento linguístico e político. A submissão ao Bispo de Roma é talvez o mais óbvio ponto de disputa, mas há outras diferenças visíveis. Ao alfabeto latino da Cristandade romana opõe-se o grego ou o cirílico das igrejas orientais. Enquanto a arte ocidental multiplica as representações da figura humana, e representa até o próprio Deus sob forma humana (o Ocidente é profundamente iconófilo, diz Jean-Claude Schmitt), a Igreja ortodoxa, influenciada pelo Judaísmo e pelo vizinho Islão, será atravessada por violentos debates sobre a santidade das imagens que levarão mesmo a curtas, mas muito intensas, crises de iconoclastia. A própria liturgia, mais demorada e sumptuosa a Oriente (lembremos a extraordinária beleza dos cânticos ortodoxos), parece contribuir para a distância entre estas civilizações próximas.Uma das diferenças centrais entre o Oriente greco-eslavo e o Ocidente romano é, porém, o modo de entender o poder. Um tópico decisivo para o que aqui interessa. Depois da queda de Roma, a Europa ocidental, repartida entre reinos bárbaros, feudais ou nacionais, nunca alcançou a unidade política. Nem com Carlos Magno, nem com Carlos V, nem com Napoleão. Os reinos, por outro lado, eram concorrentes de uma Igreja governada pelo Papa e de uma sociedade cujas exigências de representação deram origem ao constitucionalismo moderno. A sua autoridade estava muito longe do "despotismo iluminado" dos séculos XVII e XVIII. E quando, por essa altura, um jovem país de emigrantes do outro lado do Atlântico escreve a primeira Constituição da era contemporânea, o velho continente irá imitá-lo furiosamente.Bizâncio, pelo contrário, viveu sob a coroa única de um imperador até 1453, um imperador que dominava uma Igreja sem Papa e ao qual sucedeu outro imperador, mas muçulmano. Coube à Santa Rússia dos czares (assim designados, não por acaso, para sublinhar a continuidade com os césares de Roma) herdar o império cristão oriental. Estaline e Putin apenas continuam a tradição autocrática que fez da Rússia uma potência. Entre Pedro o Grande e Medvedev há uma linha recta que passa pelas nações vizinhas. O que explica a eterna mentalidade de cerco do Kremlin, sempre obcecado com as ameaças ocidentais às suas fronteiras. O império, a autocracia e a geopolítica de Moscovo estão intimamente ligados. A história conta muito. Mas a da Europa e a da Rússia têm menos em "comum" do que todos gostaríamos.


No Geração de 60, Alexandre Brandão da Veiga lamenta "a russofobia que impera hoje em dia" e classifica a Rússia como "o maior país europeu". E Eduardo Lourenço, no artigo de ontem, insistia na " nossa longa e capital história comum".Estas afirmações, apesar da sua respeitável genealogia, apenas em parte são verdadeiras. É certo que, do ponto de vista geográfico e cultural, a Rússia faz parte da Europa. A dialéctica da abertura europeia versus isolamento asiático, a que tantas vezes se recorre para descrever os solavancos da "alma russa" (seja lá o que isso for), não explica tudo. Mas é preciso mais do que ter um pé no Báltico e a cabeça em Paris para fazer parte da tradição política do Ocidente.Fernand Braudel notava que, nas margens do Mediterrâneo, se enfrentam há milénios três civilizações. Braudel entendia o conceito de civilização no seu sentido mais lato, isto é, como modo de vida e não apenas como cultura ou religião. A mais antiga seria o velho Oriente que nasce no Crescente Fértil, cresce na Mesopotâmia, no Egipto e na Fenícia, tenta dominar o mar interior com Cartago e com os Persas, e acaba por conhecer finalmente a unidade sob o Islão. A outra civilização (quase uma imagem invertida da sua eterna rival) é o Ocidente latino, conquistado por Roma, depois pelos bárbaros, mais tarde governado pelo Papa e pelos reinos cristãos, por fim dividido entre protestantes a norte e católicos a sul. Mas há um terceiro protagonista da história mediterrânica, e não menos importante do que os anteriores: a língua grega. Estendendo-se pelas margens vizinhas da Hélade através da fundação de colónias que, dizem a lenda e a arqueologia, terão ido de Lisboa ao Mar Negro, o grego torna-se a língua franca do Mediterrâneo oriental com Alexandre Magno. A helenização é tão profunda que, após o triunfo romano, continuará a falar-se grego na parte oriental do Império. Poucas vezes nos lembramos de que os primeiros textos do Cristianismo, religião com profundas raízes na Palestina, na Síria e na actual Turquia, são na língua de Homero. A fronteira linguística passava algures pelos Balcãs e, morto Constantino, serviu de mapa à divisão política entre Império do Ocidente e Império do Oriente. Com a queda do primeiro, é este que herda o sonho universal de Roma, dando-lhe o nome de Bizâncio. Um sonho que Moscovo virá a herdar, depois da conquista de Constantinopla pelos turcos.No século XI, o corte religioso entre ortodoxos, que recusam obedecer ao Papa, e católicos, que se definem por essa obediência, segue o rumo do afastamento linguístico e político. A submissão ao Bispo de Roma é talvez o mais óbvio ponto de disputa, mas há outras diferenças visíveis. Ao alfabeto latino da Cristandade romana opõe-se o grego ou o cirílico das igrejas orientais. Enquanto a arte ocidental multiplica as representações da figura humana, e representa até o próprio Deus sob forma humana (o Ocidente é profundamente iconófilo, diz Jean-Claude Schmitt), a Igreja ortodoxa, influenciada pelo Judaísmo e pelo vizinho Islão, será atravessada por violentos debates sobre a santidade das imagens que levarão mesmo a curtas, mas muito intensas, crises de iconoclastia. A própria liturgia, mais demorada e sumptuosa a Oriente (lembremos a extraordinária beleza dos cânticos ortodoxos), parece contribuir para a distância entre estas civilizações próximas.Uma das diferenças centrais entre o Oriente greco-eslavo e o Ocidente romano é, porém, o modo de entender o poder. Um tópico decisivo para o que aqui interessa. Depois da queda de Roma, a Europa ocidental, repartida entre reinos bárbaros, feudais ou nacionais, nunca alcançou a unidade política. Nem com Carlos Magno, nem com Carlos V, nem com Napoleão. Os reinos, por outro lado, eram concorrentes de uma Igreja governada pelo Papa e de uma sociedade cujas exigências de representação deram origem ao constitucionalismo moderno. A sua autoridade estava muito longe do "despotismo iluminado" dos séculos XVII e XVIII. E quando, por essa altura, um jovem país de emigrantes do outro lado do Atlântico escreve a primeira Constituição da era contemporânea, o velho continente irá imitá-lo furiosamente.Bizâncio, pelo contrário, viveu sob a coroa única de um imperador até 1453, um imperador que dominava uma Igreja sem Papa e ao qual sucedeu outro imperador, mas muçulmano. Coube à Santa Rússia dos czares (assim designados, não por acaso, para sublinhar a continuidade com os césares de Roma) herdar o império cristão oriental. Estaline e Putin apenas continuam a tradição autocrática que fez da Rússia uma potência. Entre Pedro o Grande e Medvedev há uma linha recta que passa pelas nações vizinhas. O que explica a eterna mentalidade de cerco do Kremlin, sempre obcecado com as ameaças ocidentais às suas fronteiras. O império, a autocracia e a geopolítica de Moscovo estão intimamente ligados. A história conta muito. Mas a da Europa e a da Rússia têm menos em "comum" do que todos gostaríamos.

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