O Acidental: Grandes vistos em 2005, III

01-07-2011
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1. Quando saí da sala, confesso, estava um pouco desiludido. Porquê? Estava à espera de outro Mystic River, estava à espera de uma nova demonstração de perfeição. Queria nova Obra-Prima. Mas as obras-primas não se vendem ao peso. Saí desiludido porque o ponto de referência era a perfeição, porque a expectativa era a máxima. "Mas, então, não é um grande filme?" É. "Então, este discurso da treta não é injusto para com Eastwood?" Não. O preço da grandeza é este: não pode desiludir; não pode descer o nível; deve ter a capacidade para se reinventar, mantendo, em simultâneo, a grandeza. Esta conversa seria injusta para outro qualquer. Para Eastwood é um elogio. Indirecto, como são os melhores elogios(saudade para Tiago Mendes e João Galamba).2. Este ano não foi de obras-primas. Foi apenas de alguns grandes filmes. Este é um deles. Millon Dolar Baby não é o Mystic River, mas tem lá qualquer coisa parecida: o fim em suspenso. É um filme que não tem o Fim clássico – e redentor –, mas sim um terminar circular, que não é bem o "the end". É um terminar que inquieta, que angustia, que causa dúvidas. Dúvidas, essas, que levamos na sacola. Deitamo-nos com as benditas. Sonhamos com elas. E, elas, essas dúvidas, ou melhor, aquela circularidade que impede a redenção clássica do “the end”, animam logo as primeiras conversas do dia. 3. A grande diferença entre um grande filme e um filme médio é a seguinte: quando acaba um filme médio, começamos logo a falar do mesmo. Passados 15 minutos, caso encerrado. Seguem-se os copos, a conversa, etc. Quando acaba um grande filme, gera-se um certo silêncio. Só se começa a falar do filme durante os copos ou na manhã seguinte. E o caso demora a ficar encerrado. 4. Qual é a diferença entre uma obra-prima e um grande filme? Se falamos de Millon Dolar Baby, não falamos de Mystic River. As obras-primas silenciam-nos perante os outros. Metemo-nos no táxi e vamos para casa. Silenciosos. Em solidão ártica. Pode chover uma multidão, mas nada pode salvar-nos daquela frieza. Ainda hoje não falei do Mystic River. Ainda hoje não abri a boca para falar da 25th hour (só para dar dois exemplos recentes). Quando vi o 2001 na tela grande, fiquei em estado comatoso; os neurónios entratam em convulsão religiosa; um a um, fugiram-me e ainda hoje não sei onde estão. Falar sobre certas obras – seja de que arte for – não faz sentido. Até porque o caso nunca fica encerrado. Exemplo: o acto final de Eastwood em Millon Dolar Baby está correcto? Eu acho que sim. É uma prova de amor. É um acto moral que só o Homem pode fazer. Outros dizem o contrário: é um pecado ou coisa assim; só Deus pode fazer aquilo. Outros dizem que essa questão é insignificante porque a moral não existe e, por isso, apenas dissertam sobre o formalismo técnico. E assim ad eternum. O caso nunca fica encerrado. 5. Não se fala de obras-primas. Escreve-se. É para isso que se inventou a escrita. E só para terminar esta escrita: gosto de ver toda a gente rendida ao Blondy. [Henrique Raposo]

1. Quando saí da sala, confesso, estava um pouco desiludido. Porquê? Estava à espera de outro Mystic River, estava à espera de uma nova demonstração de perfeição. Queria nova Obra-Prima. Mas as obras-primas não se vendem ao peso. Saí desiludido porque o ponto de referência era a perfeição, porque a expectativa era a máxima. "Mas, então, não é um grande filme?" É. "Então, este discurso da treta não é injusto para com Eastwood?" Não. O preço da grandeza é este: não pode desiludir; não pode descer o nível; deve ter a capacidade para se reinventar, mantendo, em simultâneo, a grandeza. Esta conversa seria injusta para outro qualquer. Para Eastwood é um elogio. Indirecto, como são os melhores elogios(saudade para Tiago Mendes e João Galamba).2. Este ano não foi de obras-primas. Foi apenas de alguns grandes filmes. Este é um deles. Millon Dolar Baby não é o Mystic River, mas tem lá qualquer coisa parecida: o fim em suspenso. É um filme que não tem o Fim clássico – e redentor –, mas sim um terminar circular, que não é bem o "the end". É um terminar que inquieta, que angustia, que causa dúvidas. Dúvidas, essas, que levamos na sacola. Deitamo-nos com as benditas. Sonhamos com elas. E, elas, essas dúvidas, ou melhor, aquela circularidade que impede a redenção clássica do “the end”, animam logo as primeiras conversas do dia. 3. A grande diferença entre um grande filme e um filme médio é a seguinte: quando acaba um filme médio, começamos logo a falar do mesmo. Passados 15 minutos, caso encerrado. Seguem-se os copos, a conversa, etc. Quando acaba um grande filme, gera-se um certo silêncio. Só se começa a falar do filme durante os copos ou na manhã seguinte. E o caso demora a ficar encerrado. 4. Qual é a diferença entre uma obra-prima e um grande filme? Se falamos de Millon Dolar Baby, não falamos de Mystic River. As obras-primas silenciam-nos perante os outros. Metemo-nos no táxi e vamos para casa. Silenciosos. Em solidão ártica. Pode chover uma multidão, mas nada pode salvar-nos daquela frieza. Ainda hoje não falei do Mystic River. Ainda hoje não abri a boca para falar da 25th hour (só para dar dois exemplos recentes). Quando vi o 2001 na tela grande, fiquei em estado comatoso; os neurónios entratam em convulsão religiosa; um a um, fugiram-me e ainda hoje não sei onde estão. Falar sobre certas obras – seja de que arte for – não faz sentido. Até porque o caso nunca fica encerrado. Exemplo: o acto final de Eastwood em Millon Dolar Baby está correcto? Eu acho que sim. É uma prova de amor. É um acto moral que só o Homem pode fazer. Outros dizem o contrário: é um pecado ou coisa assim; só Deus pode fazer aquilo. Outros dizem que essa questão é insignificante porque a moral não existe e, por isso, apenas dissertam sobre o formalismo técnico. E assim ad eternum. O caso nunca fica encerrado. 5. Não se fala de obras-primas. Escreve-se. É para isso que se inventou a escrita. E só para terminar esta escrita: gosto de ver toda a gente rendida ao Blondy. [Henrique Raposo]

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