Se MST surpreendeu pela forma mentirosa (distorceu os factos), falaciosa (teve incoerências argumentativas), e homofóbica como abordou o caso das duas alunas de Gaia, José António Saraiva bateu por absoluto os recordes da análise hipócrita e enviesada. Como ele gosta de ser do contra e de ser uma espécie de farol que ilumina os leitores e os outros comentadores, sacou do seu conservadorismo para abordar a questão. Porque sou leitor fiel, atento, e apreciador, quer da crónica dele quer do Expresso, há mais de 15 anos, sinto-me particularmente à vontade para o criticar. O Expresso piorou em algumas coisas, mas merece ser lido e é em muita coisa melhor que a concorrência. JAS escreve bem, é inteligente, e irreverente. O problema é quando se é irreverente só para ser do contra ou se recorre a falácias argumentativas.JAS começa a sua crónica propondo uma analogia entre a «escola» e locais de trabalho tão variados e comparáveis como um «quartel», um «hipermercado», e um «jornal». Escreve ele:«PARA me situar no problema, pensei noutras situações. O que faria eu se dois jornalistas do Expresso, do mesmo sexo ou de sexos diferentes, se dedicassem com regularidade a trocar carícias na redacção? O que faria o comandante de uma unidade se dois soldados do mesmo sexo ou de sexos diferentes trocassem beijos na parada do quartel?».As analogias são tão grosseiras que não mereceriam comentários. Ainda assim. Saraiva quer comparar ambientes de trabalho onde trabalham adultos e que têm objectivos muito claros e que resultam de um contrato laboral - ser um bom soldado, ser um bom caixa, ser um bom redactor - com o ambiente da escola, ou melhor com o ambiente da escola fora da sala de aula. A analogia minimamente aceitável seria com a sala de aula, onde o aluno tem um objectivo relativamente claro: estar atento, não perturbar os outros, participar activamente no processo de aprendizagem.Mas não. Saraiva acha que os alunos fora das aulas não devem ter direito a um espaço afectivo, porque os soldados também não se apalpam nos desfiles ou paradas em Belém. Nem os redactores do Expresso se beijam enquanto escrevem as suas peças. Não sei bem que tipo de escola e que tipo de aprendizagem emocional é que JAS propõe como ideal para os jovens. Ou se calhar até sei. Mas quer-me parecer que em pleno XXI, nem nos colégios mais rígidos deste país existe uma noção tão dura e militar de como se deve permitir e balizar o desenvolvimento dum adolescente. Nem os evangelistas americanos chegariam a tanto, quero crer.Isto para não referir o facto de JAS ter (conscientemente) tentado «situar-se no problema». Bom, pelo menos o homem tentou. Temos que apreciar a intenção por detrás do acto falhado. E, como em temas com os quais temos dificuldade em lidar racionalmente se torna quase sempre irresistível recorrer à demagogia e ao preconceito fácil, JAS refere ainda isto:«Porquê, então, tanta indignação relativamente ao caso da escola de Gaia? Isso tem que ver com uma certa imagem que se criou. Imaginámos duas jovens alunas da província, a sair da idade da inocência, dando expressão a uma afectividade quase pura, serem barbaramente reprimidas por uma estrutura escolar retrógrada, provinciana e fascizante. Sucede que as alunas não são propriamente adolescentes: uma tem 18 anos e a outra 17. Não são as duas de Gaia: uma é brasileira e a outra portuguesa. Trata-se de duas mulheres, portanto, já com alguma experiência.»Por um lado, mente. O que aconteceu foi de facto uma reacção do conselho directivo e não dos alunos. Aliás, foi a associação de estudantes que se insurgiu contra a atitude "policial" e discriminatória do conselho directivo, e que trouxe o assunto para os media. Não houve grande incómodo por parte da "plateia" que as ditas alunas terão tentado "chocar" de forma "exibicionista", nas palavras de Sousa Tavares. Houve, isso sim, solidariedade, sentido de proporção e de justiça. Algo que quer JAS quer MST teriam obrigação de ter, pelos anos que carregam em cima. Só que estes por vezes trazem mais azedume que clarividência.Por outro, parece sugerir que raparigas de 17 e 19 anos não têm espaço à afectividade como teriam jovens mais novas. Num ambiente escolar, a diferença não é importante. E é bom que se perceba que se trataram de beijos, e não de apalpões, ou de simulações de coito, ou o que quer que seja. Chamar a um beijo uma "carícia íntima" é elucidativo. Porque será que nunca se insurgiu contra a moda dos políticos beijarem as suas esposas em público? Será que se um dia se visse um beijo público - em plena noite eleitoral - entre políticos do mesmo sexo, o ex-director do Expresso se insurgiria coerentemente? Porque estariam num local de trabalho? Porque seriam adultos? Porque seria um gesto íntimo? Desafio José António Saraiva, do alto do seu poder preditivo, irreverência, e tão apregoada imparcialidade, a falar sobre isso.Mas o pior é mesmo a insinuação de que há uma brasileira ao barulho. Como quem diz, uma miúda experiente, transgressora, quiçá com queda para a galdeirice. É isso que JAS insinua e sabe-o bem. Desprezível. Termina - e para quem o lê atentamente poderá vislumbrar uma falha invulgar no seu edifício argumentativo - dizendo que essa troca de carinhos não é recomendável «mais que não seja, por uma questão de bom senso». E quem dita o que isso é, caro JAS? Mais vale ir directo ao assunto e falar em «boas maneiras» como fala MST. Terminar a crónica assim equivale a assumir que se reage a estas questões de forma a-racional e que não tendo argumentos se recorre ao auto-evidente «bom senso». Definindo bom senso como algo que é violado... pelo tipo de acto que Saraiva aponta como sendo uma violação dele. Tautologia.Quer-me parecer que JAS, sendo um homem razoável e tolerante, é um homofóbico não assumido. Mas, ao contrário de MST, ele contorna isso impondo uma moral puritana que roça simplesmente o ridículo e que o apanharia em incoerências num ápice. Humildemente, tenho uma conselho a dar a JAS: se quer mesmo ganhar um dia o Nobel da literatura, faria bem por começar a entender (ele ainda é novo, lembremo-nos que Saramago começou aos 57) um pouco melhor o que é um espaço de afectividade, o que é a intimidade, e o que é uma expressão afectiva socialmente aceitável. É que poderá não conseguir apaixonar muitos leitores se polvinhar as suas cenas "picantes" com este iluminado puritanismo.PS1: leiam também o que escreveram Francisco José Viegas (brando) n'A Origem das Espécies, João Galamba no Metablog, e Bernardo Sousa de Macedo no Notas Várias.PS2: a alusão à nacionalidade da pessoa é muito mais grave que a alusão (essa já grave) à nacionalidade do cidadão infelizmente morte pela polícia britância - como referi aqui. E é-o porque tem uma carga preconceituosa inerente. Não é possível - e Saraiva sabe-o como poucos - fugir ao poder da hermenêutica.PS3: já imaginaram se um dia os homofóbicos deste país saem do armário e passam a assumir isso (sobretudo perante eles próprios!) em lugar de argumentarem de forma tão facilmente desmontável? Teríamos a sorte de ver um desfile de «orgulho homofóbico», com respeitáveis lordes a desfilar de ceroulas e esposa de braço dado. A isso chamaria eu um apetecível «contra-Carnaval»!
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Se MST surpreendeu pela forma mentirosa (distorceu os factos), falaciosa (teve incoerências argumentativas), e homofóbica como abordou o caso das duas alunas de Gaia, José António Saraiva bateu por absoluto os recordes da análise hipócrita e enviesada. Como ele gosta de ser do contra e de ser uma espécie de farol que ilumina os leitores e os outros comentadores, sacou do seu conservadorismo para abordar a questão. Porque sou leitor fiel, atento, e apreciador, quer da crónica dele quer do Expresso, há mais de 15 anos, sinto-me particularmente à vontade para o criticar. O Expresso piorou em algumas coisas, mas merece ser lido e é em muita coisa melhor que a concorrência. JAS escreve bem, é inteligente, e irreverente. O problema é quando se é irreverente só para ser do contra ou se recorre a falácias argumentativas.JAS começa a sua crónica propondo uma analogia entre a «escola» e locais de trabalho tão variados e comparáveis como um «quartel», um «hipermercado», e um «jornal». Escreve ele:«PARA me situar no problema, pensei noutras situações. O que faria eu se dois jornalistas do Expresso, do mesmo sexo ou de sexos diferentes, se dedicassem com regularidade a trocar carícias na redacção? O que faria o comandante de uma unidade se dois soldados do mesmo sexo ou de sexos diferentes trocassem beijos na parada do quartel?».As analogias são tão grosseiras que não mereceriam comentários. Ainda assim. Saraiva quer comparar ambientes de trabalho onde trabalham adultos e que têm objectivos muito claros e que resultam de um contrato laboral - ser um bom soldado, ser um bom caixa, ser um bom redactor - com o ambiente da escola, ou melhor com o ambiente da escola fora da sala de aula. A analogia minimamente aceitável seria com a sala de aula, onde o aluno tem um objectivo relativamente claro: estar atento, não perturbar os outros, participar activamente no processo de aprendizagem.Mas não. Saraiva acha que os alunos fora das aulas não devem ter direito a um espaço afectivo, porque os soldados também não se apalpam nos desfiles ou paradas em Belém. Nem os redactores do Expresso se beijam enquanto escrevem as suas peças. Não sei bem que tipo de escola e que tipo de aprendizagem emocional é que JAS propõe como ideal para os jovens. Ou se calhar até sei. Mas quer-me parecer que em pleno XXI, nem nos colégios mais rígidos deste país existe uma noção tão dura e militar de como se deve permitir e balizar o desenvolvimento dum adolescente. Nem os evangelistas americanos chegariam a tanto, quero crer.Isto para não referir o facto de JAS ter (conscientemente) tentado «situar-se no problema». Bom, pelo menos o homem tentou. Temos que apreciar a intenção por detrás do acto falhado. E, como em temas com os quais temos dificuldade em lidar racionalmente se torna quase sempre irresistível recorrer à demagogia e ao preconceito fácil, JAS refere ainda isto:«Porquê, então, tanta indignação relativamente ao caso da escola de Gaia? Isso tem que ver com uma certa imagem que se criou. Imaginámos duas jovens alunas da província, a sair da idade da inocência, dando expressão a uma afectividade quase pura, serem barbaramente reprimidas por uma estrutura escolar retrógrada, provinciana e fascizante. Sucede que as alunas não são propriamente adolescentes: uma tem 18 anos e a outra 17. Não são as duas de Gaia: uma é brasileira e a outra portuguesa. Trata-se de duas mulheres, portanto, já com alguma experiência.»Por um lado, mente. O que aconteceu foi de facto uma reacção do conselho directivo e não dos alunos. Aliás, foi a associação de estudantes que se insurgiu contra a atitude "policial" e discriminatória do conselho directivo, e que trouxe o assunto para os media. Não houve grande incómodo por parte da "plateia" que as ditas alunas terão tentado "chocar" de forma "exibicionista", nas palavras de Sousa Tavares. Houve, isso sim, solidariedade, sentido de proporção e de justiça. Algo que quer JAS quer MST teriam obrigação de ter, pelos anos que carregam em cima. Só que estes por vezes trazem mais azedume que clarividência.Por outro, parece sugerir que raparigas de 17 e 19 anos não têm espaço à afectividade como teriam jovens mais novas. Num ambiente escolar, a diferença não é importante. E é bom que se perceba que se trataram de beijos, e não de apalpões, ou de simulações de coito, ou o que quer que seja. Chamar a um beijo uma "carícia íntima" é elucidativo. Porque será que nunca se insurgiu contra a moda dos políticos beijarem as suas esposas em público? Será que se um dia se visse um beijo público - em plena noite eleitoral - entre políticos do mesmo sexo, o ex-director do Expresso se insurgiria coerentemente? Porque estariam num local de trabalho? Porque seriam adultos? Porque seria um gesto íntimo? Desafio José António Saraiva, do alto do seu poder preditivo, irreverência, e tão apregoada imparcialidade, a falar sobre isso.Mas o pior é mesmo a insinuação de que há uma brasileira ao barulho. Como quem diz, uma miúda experiente, transgressora, quiçá com queda para a galdeirice. É isso que JAS insinua e sabe-o bem. Desprezível. Termina - e para quem o lê atentamente poderá vislumbrar uma falha invulgar no seu edifício argumentativo - dizendo que essa troca de carinhos não é recomendável «mais que não seja, por uma questão de bom senso». E quem dita o que isso é, caro JAS? Mais vale ir directo ao assunto e falar em «boas maneiras» como fala MST. Terminar a crónica assim equivale a assumir que se reage a estas questões de forma a-racional e que não tendo argumentos se recorre ao auto-evidente «bom senso». Definindo bom senso como algo que é violado... pelo tipo de acto que Saraiva aponta como sendo uma violação dele. Tautologia.Quer-me parecer que JAS, sendo um homem razoável e tolerante, é um homofóbico não assumido. Mas, ao contrário de MST, ele contorna isso impondo uma moral puritana que roça simplesmente o ridículo e que o apanharia em incoerências num ápice. Humildemente, tenho uma conselho a dar a JAS: se quer mesmo ganhar um dia o Nobel da literatura, faria bem por começar a entender (ele ainda é novo, lembremo-nos que Saramago começou aos 57) um pouco melhor o que é um espaço de afectividade, o que é a intimidade, e o que é uma expressão afectiva socialmente aceitável. É que poderá não conseguir apaixonar muitos leitores se polvinhar as suas cenas "picantes" com este iluminado puritanismo.PS1: leiam também o que escreveram Francisco José Viegas (brando) n'A Origem das Espécies, João Galamba no Metablog, e Bernardo Sousa de Macedo no Notas Várias.PS2: a alusão à nacionalidade da pessoa é muito mais grave que a alusão (essa já grave) à nacionalidade do cidadão infelizmente morte pela polícia britância - como referi aqui. E é-o porque tem uma carga preconceituosa inerente. Não é possível - e Saraiva sabe-o como poucos - fugir ao poder da hermenêutica.PS3: já imaginaram se um dia os homofóbicos deste país saem do armário e passam a assumir isso (sobretudo perante eles próprios!) em lugar de argumentarem de forma tão facilmente desmontável? Teríamos a sorte de ver um desfile de «orgulho homofóbico», com respeitáveis lordes a desfilar de ceroulas e esposa de braço dado. A isso chamaria eu um apetecível «contra-Carnaval»!