Cravo de Abril: A MORTE SAÍU À RUA

01-07-2011
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O PINTOR MORREU«Na noite de 19 de Dezembro de 1961, José Dias Coelho, funcionário clandestino do PCP, seguia pela Rua dos Lusíadas. Cinco agentes da PIDE saltaram de um automóvel, perseguiram-no, cercaram-no e dispararam dois tiros. Um tiro à queima-roupa, em pleno peito, deitou-o por terra; o outro foi disparado com ele já no chão. Os assassinos meteram-no no carro e partiram a toda a velocidade. Só duas horas depois, quando estava a expirar, o entregaram no Hospital da CUF.»«Artista plástico de mérito reconhecido, José Dias Coelho aderiu ao PCP com pouco mais de vinte anos e algum tempo depois passou a funcionário clandestino. Entre muitas tarefas que desempenhou, nomeadamente a de responsável pelo Sector Intelectual de Lisboa do PCP, da actividade de José Dias Coelho enquanto funcionário do Partido, sobressai o importante trabalho, realizado com Margarida Tengarrinha, relacionado com a falsificação de documentos de identidade necessários aos quadros clandestinos do Partido.»«De todas as sementes deitadas à terra, é o sangue derramado pelos mártires que faz levantar as mais copiosas searas»: eis a legenda que José Dias Coelho escreveu na sua última gravura, criada um mês antes de ser assassinado, e representando o assassínio do operário Cândido Martins (Capilé) à frente de uma manifestação popular.»Poetas e cantores - como Eugénio de Andrade e José Afonso - escreveram e cantaram belos poemas e canções de homenagem a José Dias Coelho.O Cravo de Abril publica hoje um poema possivelmente desconhecido por muitos dos nossos visitantes.É a nossa homenagem ao camarada José Dias Coelho.VIAGEM ATRAVÉS DE UMA FATIA DE BOLO-REICorria o ano de 1961.Estávamos à porta do Natal.Eram quase duas horas da manhãe eu perguntei-lhese queria comer alguma coisa.Disse que sim. Mas queestava com muita pressa.Enquanto vestia a gabardina, trouxe-lheuma sanduíche de fiambreum copo de vinhouma fatia de bolo-rei.Estava de pécomia como se fosse a primeira vezdesde a infância.- Há quantos anosdeixa cá verhá quantos anos é que eu não comiabolo-rei?Este é bom, sabe a erva-docee a ovos.(Caíam-lhe migalhasaparava-as com a outra mãoem concha)- Comes outra fatia, camarada?- Isso não.Estou atrasado já.Mas se ma embrulhasses...Através da janelado quarto às escurasfico a vê-lo atravessar a Rua da Crecheseguir pela Rua dos Lusíadas.Nenhum de nós sabiaque estava já erguida a pirâmide do silêncioà espera delenum breve prazo.Quando talvez o gosto do bolo-reimais forte do que nuncativesse ainda na boca.Mário Castrim(«Viagens», edição da Célula do PCP da Renascença Gráfica/Diário de Lisboa, para a Festa do Avante/77)


O PINTOR MORREU«Na noite de 19 de Dezembro de 1961, José Dias Coelho, funcionário clandestino do PCP, seguia pela Rua dos Lusíadas. Cinco agentes da PIDE saltaram de um automóvel, perseguiram-no, cercaram-no e dispararam dois tiros. Um tiro à queima-roupa, em pleno peito, deitou-o por terra; o outro foi disparado com ele já no chão. Os assassinos meteram-no no carro e partiram a toda a velocidade. Só duas horas depois, quando estava a expirar, o entregaram no Hospital da CUF.»«Artista plástico de mérito reconhecido, José Dias Coelho aderiu ao PCP com pouco mais de vinte anos e algum tempo depois passou a funcionário clandestino. Entre muitas tarefas que desempenhou, nomeadamente a de responsável pelo Sector Intelectual de Lisboa do PCP, da actividade de José Dias Coelho enquanto funcionário do Partido, sobressai o importante trabalho, realizado com Margarida Tengarrinha, relacionado com a falsificação de documentos de identidade necessários aos quadros clandestinos do Partido.»«De todas as sementes deitadas à terra, é o sangue derramado pelos mártires que faz levantar as mais copiosas searas»: eis a legenda que José Dias Coelho escreveu na sua última gravura, criada um mês antes de ser assassinado, e representando o assassínio do operário Cândido Martins (Capilé) à frente de uma manifestação popular.»Poetas e cantores - como Eugénio de Andrade e José Afonso - escreveram e cantaram belos poemas e canções de homenagem a José Dias Coelho.O Cravo de Abril publica hoje um poema possivelmente desconhecido por muitos dos nossos visitantes.É a nossa homenagem ao camarada José Dias Coelho.VIAGEM ATRAVÉS DE UMA FATIA DE BOLO-REICorria o ano de 1961.Estávamos à porta do Natal.Eram quase duas horas da manhãe eu perguntei-lhese queria comer alguma coisa.Disse que sim. Mas queestava com muita pressa.Enquanto vestia a gabardina, trouxe-lheuma sanduíche de fiambreum copo de vinhouma fatia de bolo-rei.Estava de pécomia como se fosse a primeira vezdesde a infância.- Há quantos anosdeixa cá verhá quantos anos é que eu não comiabolo-rei?Este é bom, sabe a erva-docee a ovos.(Caíam-lhe migalhasaparava-as com a outra mãoem concha)- Comes outra fatia, camarada?- Isso não.Estou atrasado já.Mas se ma embrulhasses...Através da janelado quarto às escurasfico a vê-lo atravessar a Rua da Crecheseguir pela Rua dos Lusíadas.Nenhum de nós sabiaque estava já erguida a pirâmide do silêncioà espera delenum breve prazo.Quando talvez o gosto do bolo-reimais forte do que nuncativesse ainda na boca.Mário Castrim(«Viagens», edição da Célula do PCP da Renascença Gráfica/Diário de Lisboa, para a Festa do Avante/77)

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