portugal dos pequeninos: 20.13, O PURGATÓRIO

27-01-2012
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Venho do filme de Joaquim Leitão, 20,13. Tem a estrutura da tragédia, com coro, música, unidade de espaço e de tempo a preceito. A coisa resume-se à noite da consoada, passada num aquartelamento do exército português em plena guerra colonial. Moçambique, 1969. Num helicóptero chega inesperadamente a mulher do comandante, o capitão Correia (na foto). Já lá está outra mulher, a do alferes médico, um casal sem sentido. A segunda figura do quartel é o alferes Gaio, um "revoltado" da metrópole a cumprir o serviço obrigatório. O capitão lembra o oficial japonês de Merry Christmas, Mr. Lawrence ou o capitão do barco em Querelle. Honra, dever, orgulho, patriotismo, um casamento falhado com uma filha-família e um affair de caserna com o cabo enfermeiro. A mulher perturbada do alferes médico tem aparentemente uma fixação pelo capitão atormentado e não hesita em matar para que isso fique claro. Para proteger um assassínio, outro assassínio e a imolação final do capitão que procura deliberadamente a morte numa acção militar. Tudo termina pelo fogo, pelos tiros e pela arma branca. O alferes Gaio sabe a verdade por uma carta que lhe deixou o capitão. A hierarquia militar deseja heróis, mortos em combate, e não "larilas". A carta e a história de Gaio desaparecem num pequeno lume ateado num cinzeiro. O tenente-coronel profere a frase decisiva do filme: "no exército português não há maricas nem oficiais que matam soldados". Há uma "história" na guerra colonial portuguesa que ficou por fazer e que esta frase singular e "oficial" resume. Apenas a ficção - uma tão corajosa quanto medíocre, de Guilherme de Melo ("A sombra dos dias", da Bertrand) e outra mais cruel e "realista" de Eduardo Pitta ("Persona" - ficções, da Angelus Novus, particularmente "Pesadelo", a páginas 27 e seguintes) - tocou este pathos, já que o regime sempre se recusou a aceitar "escândalos", mandando para o "mato" ou para a "metrópole" os casos mais bicudos. Fizeram-se inquéritos e mais inquéritos que ficaram apenas na memória dos seus principais protagonistas. A ditadura tinha destas subtilezas: podia fazer-se tudo desde que não se soubesse. O filme de Joaquim Leitão tem a configuração da tragédia clássica precisamente porque existe um reconhecimento, uma descoberta fatal, um "ágon", uma catástrofe. Toda aquela gente está condenada. Os soldados, à morte em campo aberto, os protagonistas (regime colonial incluído), à impossibilidade de lidar com a verdade. Um capitão de boas famílias e do exército colonial português não pode amar um cabo enfermeiro, tal como a mulher de outro homem não pode amar um homem casado e tal como o regime não pode aceitar a realidade. Por isso matam e se matam. A renúncia final ao mundo da mulher culpada é a única redenção consentida.


Venho do filme de Joaquim Leitão, 20,13. Tem a estrutura da tragédia, com coro, música, unidade de espaço e de tempo a preceito. A coisa resume-se à noite da consoada, passada num aquartelamento do exército português em plena guerra colonial. Moçambique, 1969. Num helicóptero chega inesperadamente a mulher do comandante, o capitão Correia (na foto). Já lá está outra mulher, a do alferes médico, um casal sem sentido. A segunda figura do quartel é o alferes Gaio, um "revoltado" da metrópole a cumprir o serviço obrigatório. O capitão lembra o oficial japonês de Merry Christmas, Mr. Lawrence ou o capitão do barco em Querelle. Honra, dever, orgulho, patriotismo, um casamento falhado com uma filha-família e um affair de caserna com o cabo enfermeiro. A mulher perturbada do alferes médico tem aparentemente uma fixação pelo capitão atormentado e não hesita em matar para que isso fique claro. Para proteger um assassínio, outro assassínio e a imolação final do capitão que procura deliberadamente a morte numa acção militar. Tudo termina pelo fogo, pelos tiros e pela arma branca. O alferes Gaio sabe a verdade por uma carta que lhe deixou o capitão. A hierarquia militar deseja heróis, mortos em combate, e não "larilas". A carta e a história de Gaio desaparecem num pequeno lume ateado num cinzeiro. O tenente-coronel profere a frase decisiva do filme: "no exército português não há maricas nem oficiais que matam soldados". Há uma "história" na guerra colonial portuguesa que ficou por fazer e que esta frase singular e "oficial" resume. Apenas a ficção - uma tão corajosa quanto medíocre, de Guilherme de Melo ("A sombra dos dias", da Bertrand) e outra mais cruel e "realista" de Eduardo Pitta ("Persona" - ficções, da Angelus Novus, particularmente "Pesadelo", a páginas 27 e seguintes) - tocou este pathos, já que o regime sempre se recusou a aceitar "escândalos", mandando para o "mato" ou para a "metrópole" os casos mais bicudos. Fizeram-se inquéritos e mais inquéritos que ficaram apenas na memória dos seus principais protagonistas. A ditadura tinha destas subtilezas: podia fazer-se tudo desde que não se soubesse. O filme de Joaquim Leitão tem a configuração da tragédia clássica precisamente porque existe um reconhecimento, uma descoberta fatal, um "ágon", uma catástrofe. Toda aquela gente está condenada. Os soldados, à morte em campo aberto, os protagonistas (regime colonial incluído), à impossibilidade de lidar com a verdade. Um capitão de boas famílias e do exército colonial português não pode amar um cabo enfermeiro, tal como a mulher de outro homem não pode amar um homem casado e tal como o regime não pode aceitar a realidade. Por isso matam e se matam. A renúncia final ao mundo da mulher culpada é a única redenção consentida.

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