portugal dos pequeninos: INTRODUÇÃO AO ESTUDO DOS TUDÓLOGOS

27-01-2012
marcar artigo


«Em França, onde as realidades vernáculas se elevam facilmente ao estatuto da grandeur cartesiana, chama-se aos tudólogos os “editocratas”, comunicadores que “falam de (quase) tudo dizendo (realmente) o que quer que seja”, como escrevem os quatro autores do livro Les Éditocrates, de 2009. Enquanto o conceito de tudólogo refere ironicamente um suposto conhecimento universal, o de editocrata coloca a questão onde deve estar: a detenção do poder de editorializar a realidade, de a pôr na agenda mediática. Os tudólogos franceses têm uma presença ainda mais alargada do que os portugueses, porventura porque o sistema mediático arrancou décadas antes: Alain Duhamel, um dos analisados no livro, começou a “editorializar” na imprensa em 1963, antes de passar para a rádio, a TV e os escaparates das livrarias. Leva mais uma década do que Marcelo Rebelo de Sousa. No seu conjunto, os editocratas franceses falam “o tempo todo, de manhã à noite, da noite à manhã, de segunda a domingo.” E “nunca se calam”. Quem “fizer a aposta um pouco louca de atravessar uma semana inteira sem tropeçar em Jacques Attali ou Bernand-Henri Lévy em todos os cantos dos media, saberá, pela amarga experiência do fracasso, que tal desafio é impossível de vencer.” Segundo os autores, esta “elite” por ninguém eleita formata o pensamento consoante a onda do momento e opina sobre tudo. Os editocratas “podem, com a mesma segurança, dissertar hoje sobre a crise financeira, amanhã sobre o desaparecimento de Michael Jackson ou a urgente necessidade de economizar água da torneira, e ainda, depois de amanhã, sobre a guerra do Afeganistão”. Muito dados ao “ar do tempo”, tendem a partilhar as mesmas “ideias”, com pequenos matizes, embora se digam “destruidores de tabus”. Vai-se o mesmo caminho nos media portugueses. A televisão precisa de “talking heads”, por não ter para mostrar outras imagens, mais baratas, por não ter mais reportagens, notícias, documentários. Recorrem aos mesmos tudólogos a toda a hora, fazendo do comentário entretém e passatempo. Os canais de notícias como a SICN, a TVI24 e a RTPN abundam em “tudólogos encartados”, como lhes chama um blogue, mas os generalistas também os utilizam para que, com os seus comentários, reorganizem ideologicamente o mundo caótico das notícias. Os tudólogos mais referidos pela blogosfera são Miguel Sousa Tavares, Marcelo Rebelo de Sousa, Clara Ferreira Alves, José Pacheco Pereira, Ricardo Costa, Moita Flores, e Pedro Marques Lopes, este uma personagem que foi invadindo diversos media e a quem, de facto, nunca ouvi uma única ideia interessante. Segundo o leitor Q num blogue, ele “transformou-se em vedeta nacional de um dia para o outro, desde que foi recomendado por Fernanda Câncio, é mais um especialista em tudo, ou ‘tudólogo’, a acrescentar à lista nacional.” O destino cumpriu-se: juntou-se aos outros tudólogos de Eixo do Mal, o insuportável programa de má-língua política da SICN. Alguns internéticos distinguem entre os tudólogos do género de Pedro M. Lopes e os especialistas que falam do que sabem ou que se preparam estudando as matérias e não alinhavam umas “bocas”. Como escreveu Isabel, numa caixa de comentários: a opinião dum conhecedor como Rui Ramos “deveria valer a de cem mil tudólogos que falam e escrevem sem fundamentação, só porque sim e só porque lhes facultaram o poleiro de onde debitam.” A praga do ruído tudólogo nos media acaba, assim, por prejudicar a atenção por quem realmente pode acrescentar o conhecimento e o raciocínio de leitores e espectadores. Os tudólogos parecem entreter, mas afinal contribuem para um generalizado cansaço noticioso das pessoas, uma irritação latente para com a vida colectiva. Como Isabel, o internético Ricardo Valente fez uma sábia observação, referindo que os tudólogos são um sinal da liberdade de expressão: “lê-se dia sim, dia sim pela internet (…) a crítica ao ‘tudólogo’. Dezenas e dezenas de vezes Marcelo Rebelo de Sousa é acusado por... ‘falar sobre tudo’”, mas “quem pensa assim é que está muito mal. Alguém conhece alguma razão minimamente compatível com as ideias de democracia e liberdade que justifique que uma pessoa se dedique a um só assunto e que, de preferência, opine pouco, e fique caladinha?” Os tudólogos são, digo eu, um preço a pagar pela liberdade e pela necessidade dos canais de TV de encher 24 horas por dia. Para beneficiarmos de um bom tudólogo ou especialista, que contribua com qualidade para a esfera pública, precisamos de passar por cima das manadas de tudólogos que poluem o “media ambiente”. Diderot, no século XVIII, estabeleceu o “achismo” e a crítica como criação de espaços de liberdade. Mas também disse que o aparecimento da crítica tinha tornado melhores os melhores, mais exigentes consigo, enquanto “as pessoas sem talento, pelo contrário, se tornaram atrevidas”.»Eduardo Cintra Torres, Público (sublinhados meus)Adenda: ECT refere Rui Ramos. Ramos é das poucas pessoas "públicas" por quem nutro uma genuína estima pessoal e intelectual. Há dias perguntei-lhe se lhe tinha "acontecido" alguma coisa na tvi24 de onde, subitamente, desapareceu. O próprio não tinha explicação para o facto porque, tipicamente, ninguém lhe tinha dito nada. Apesar disto, a tvi24 (tal como a sicn ou a outra pública que não vejo) continua a apostar em programas de tudologia em que vigora uma espécie de cumplicidade engraçadista. Dizem todos as mesmas coisas de forma aparentemente diversa e, depois, riem-se muito. Li agora, enquanto comia umas salsichas frescas com couve-lombarda, o Correio da Manhã. Na sua coluna, Francisco José Viegas costuma recomendar livros. Desta vez sugere um, da D. Câncio, e remata dizendo que "fazem falta pispinetas". Só se for a ele que, na qualidade de membro da comissão política da candidatura do prof. Cavaco, devia antes responder a isto. Todavia, a ideia é idêntica - "quadratura do círculo", mesmice, amiguismo, ruído, emptiness. Estão bem uns para os outros na sua pseudo-diferença indiferente.


«Em França, onde as realidades vernáculas se elevam facilmente ao estatuto da grandeur cartesiana, chama-se aos tudólogos os “editocratas”, comunicadores que “falam de (quase) tudo dizendo (realmente) o que quer que seja”, como escrevem os quatro autores do livro Les Éditocrates, de 2009. Enquanto o conceito de tudólogo refere ironicamente um suposto conhecimento universal, o de editocrata coloca a questão onde deve estar: a detenção do poder de editorializar a realidade, de a pôr na agenda mediática. Os tudólogos franceses têm uma presença ainda mais alargada do que os portugueses, porventura porque o sistema mediático arrancou décadas antes: Alain Duhamel, um dos analisados no livro, começou a “editorializar” na imprensa em 1963, antes de passar para a rádio, a TV e os escaparates das livrarias. Leva mais uma década do que Marcelo Rebelo de Sousa. No seu conjunto, os editocratas franceses falam “o tempo todo, de manhã à noite, da noite à manhã, de segunda a domingo.” E “nunca se calam”. Quem “fizer a aposta um pouco louca de atravessar uma semana inteira sem tropeçar em Jacques Attali ou Bernand-Henri Lévy em todos os cantos dos media, saberá, pela amarga experiência do fracasso, que tal desafio é impossível de vencer.” Segundo os autores, esta “elite” por ninguém eleita formata o pensamento consoante a onda do momento e opina sobre tudo. Os editocratas “podem, com a mesma segurança, dissertar hoje sobre a crise financeira, amanhã sobre o desaparecimento de Michael Jackson ou a urgente necessidade de economizar água da torneira, e ainda, depois de amanhã, sobre a guerra do Afeganistão”. Muito dados ao “ar do tempo”, tendem a partilhar as mesmas “ideias”, com pequenos matizes, embora se digam “destruidores de tabus”. Vai-se o mesmo caminho nos media portugueses. A televisão precisa de “talking heads”, por não ter para mostrar outras imagens, mais baratas, por não ter mais reportagens, notícias, documentários. Recorrem aos mesmos tudólogos a toda a hora, fazendo do comentário entretém e passatempo. Os canais de notícias como a SICN, a TVI24 e a RTPN abundam em “tudólogos encartados”, como lhes chama um blogue, mas os generalistas também os utilizam para que, com os seus comentários, reorganizem ideologicamente o mundo caótico das notícias. Os tudólogos mais referidos pela blogosfera são Miguel Sousa Tavares, Marcelo Rebelo de Sousa, Clara Ferreira Alves, José Pacheco Pereira, Ricardo Costa, Moita Flores, e Pedro Marques Lopes, este uma personagem que foi invadindo diversos media e a quem, de facto, nunca ouvi uma única ideia interessante. Segundo o leitor Q num blogue, ele “transformou-se em vedeta nacional de um dia para o outro, desde que foi recomendado por Fernanda Câncio, é mais um especialista em tudo, ou ‘tudólogo’, a acrescentar à lista nacional.” O destino cumpriu-se: juntou-se aos outros tudólogos de Eixo do Mal, o insuportável programa de má-língua política da SICN. Alguns internéticos distinguem entre os tudólogos do género de Pedro M. Lopes e os especialistas que falam do que sabem ou que se preparam estudando as matérias e não alinhavam umas “bocas”. Como escreveu Isabel, numa caixa de comentários: a opinião dum conhecedor como Rui Ramos “deveria valer a de cem mil tudólogos que falam e escrevem sem fundamentação, só porque sim e só porque lhes facultaram o poleiro de onde debitam.” A praga do ruído tudólogo nos media acaba, assim, por prejudicar a atenção por quem realmente pode acrescentar o conhecimento e o raciocínio de leitores e espectadores. Os tudólogos parecem entreter, mas afinal contribuem para um generalizado cansaço noticioso das pessoas, uma irritação latente para com a vida colectiva. Como Isabel, o internético Ricardo Valente fez uma sábia observação, referindo que os tudólogos são um sinal da liberdade de expressão: “lê-se dia sim, dia sim pela internet (…) a crítica ao ‘tudólogo’. Dezenas e dezenas de vezes Marcelo Rebelo de Sousa é acusado por... ‘falar sobre tudo’”, mas “quem pensa assim é que está muito mal. Alguém conhece alguma razão minimamente compatível com as ideias de democracia e liberdade que justifique que uma pessoa se dedique a um só assunto e que, de preferência, opine pouco, e fique caladinha?” Os tudólogos são, digo eu, um preço a pagar pela liberdade e pela necessidade dos canais de TV de encher 24 horas por dia. Para beneficiarmos de um bom tudólogo ou especialista, que contribua com qualidade para a esfera pública, precisamos de passar por cima das manadas de tudólogos que poluem o “media ambiente”. Diderot, no século XVIII, estabeleceu o “achismo” e a crítica como criação de espaços de liberdade. Mas também disse que o aparecimento da crítica tinha tornado melhores os melhores, mais exigentes consigo, enquanto “as pessoas sem talento, pelo contrário, se tornaram atrevidas”.»Eduardo Cintra Torres, Público (sublinhados meus)Adenda: ECT refere Rui Ramos. Ramos é das poucas pessoas "públicas" por quem nutro uma genuína estima pessoal e intelectual. Há dias perguntei-lhe se lhe tinha "acontecido" alguma coisa na tvi24 de onde, subitamente, desapareceu. O próprio não tinha explicação para o facto porque, tipicamente, ninguém lhe tinha dito nada. Apesar disto, a tvi24 (tal como a sicn ou a outra pública que não vejo) continua a apostar em programas de tudologia em que vigora uma espécie de cumplicidade engraçadista. Dizem todos as mesmas coisas de forma aparentemente diversa e, depois, riem-se muito. Li agora, enquanto comia umas salsichas frescas com couve-lombarda, o Correio da Manhã. Na sua coluna, Francisco José Viegas costuma recomendar livros. Desta vez sugere um, da D. Câncio, e remata dizendo que "fazem falta pispinetas". Só se for a ele que, na qualidade de membro da comissão política da candidatura do prof. Cavaco, devia antes responder a isto. Todavia, a ideia é idêntica - "quadratura do círculo", mesmice, amiguismo, ruído, emptiness. Estão bem uns para os outros na sua pseudo-diferença indiferente.

marcar artigo