A jornalista que relatou o início da II Guerra Mundial fez 100 anos

17-10-2011
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Clare Hollingworth é um nome mítico entre os correspondentes de guerra. Esteve nos palcos de conflito da II Guerra Mundial, Médio Oriente, Argélia, Índia, Vietname, vive agora a reforma em Hong Kong. E tudo começou num dia de Agosto, na fronteira entre a Alemanha e a Polónia.

A tarefa de um repórter é conseguir contar bem a história do que está a acontecer. O sonho de um jornalista é conseguir antecipar uma notícia. A britânica Clare Hollingworth atingiu esses dois objectivos logo no início da sua carreira: em 1939, numa visita à Polónia, detectou as movimentações alemãs junto à fronteira e foi a primeira a relatar o início da II Guerra Mundial. A semana passada, Clare completou 100 anos. Vive em Hong Kong e continua a ser uma lenda viva.

Há episódios marcantes na vida de toda a gente. Clare - que, ao longo de dezenas de anos de carreira, cobriu grandes acontecimentos da história mundial e escapou incólume da explosão no Hotel King David, em Jerusalém (uma bomba colocada por extremistas israelitas de direita matou 91 pessoas) - tem as suas, claro. Mas uma delas, em especial, marca o início do maior conflito da história da humanidade.

A jovem jornalista de 27 anos tinha sido enviada pelo jornal britânico Daily Telegraph para a Polónia, com a missão de elaborar uma série de trabalhos sobre a crescente tensão na Europa. Que o jornal tenha enviado para tal serviço uma rapariga que só estava nos quadros da empresa há uma semana dará, talvez, a noção de como as ameaças veladas de Adolf Hitler e da Alemanha nazi ainda não eram levadas a sério... Bom, ela já era jornalista e vivera na Polónia. Qualificava-se para o cargo de correspondente em Katowice.

E Clare foi. Conversou com o cônsul-geral britânico, enviou os seus primeiros despachos. Como a fronteira estava fechada à circulação automóvel, pediu ao diplomata britânico que lhe emprestasse o carro com as insígnias diplomáticas, porque só mesmo esses podiam entrar na Alemanha. Sentou-se ao volante e fez-se à estrada. Na Alemanha, foi às compras e muniu-se de vinho e material fotográfico. Já então tinha notado a omnipresença de militares nas estradas. Mas foi no regresso que o acaso e a sua atenção revelaram um segredo terrível.

A jornalista conduzia de regresso à Polónia, relata um artigo do Guardian, quando, numa subida pronunciada, reparou nas enormes barreiras de juta que tinham sido colocadas junto à estrada, bloqueando a visão dos vales. Nessa altura, uma rajada de vento deslocou um pedaço de oleado e expôs o que a Alemanha tentava esconder: uma maciça concentração de tropas. Centenas de tanques, carros blindados, peças de artilharia. Todos prontos para entrarem em combate. E apontados à Polónia.

Clare avisou o consulado britânico. E relatou o que viu aos seus leitores. A BBC online recupera um excerto de uma das suas peças, publicada a 29 de Agosto: "Cruzei hoje a fronteira entre a Polónia e a região alemã da Alta Silésia e passei várias horas em Beuthen, Hindenburg e Gleiwitz. A fronteira está fechada a todo o tráfego local. Vi por todo o lado sinais de intensa actividade militar. Nas duas milhas [pouco mais de três quilómetros] entre Hindenburg e Gleiwitz, cruzei-me com 65 estafetas militares em motos. Os únicos carros à vista eram de militares."

Cenários de guerra

Três dias depois, a 1 de Setembro, as tropas do III Reich invadiram a Polónia, o primeiro acto militar da II Guerra Mundial. A repórter, que, em miúda, sempre se sentira fascinada por batalhas e estratégias militares, estava bem no centro dos acontecimentos. De tal maneira que foi ela a primeira britânica a dar conta da invasão - telefonou para a embaixada em Varsóvia e, para comprovar a sua história, pôs o telefone do lado de fora da janela, de forma a que os diplomatas pudessem ouvir o ruído dos tanques.

Os dias seguintes encontraram-na a fugir pela Polónia, muitas vezes sem conseguir evitar ficar para trás das linhas alemãs, e a reportar as incidências da guerra. A maior parte dos seus textos, no entanto, nunca chegou à redacção do Daily Telegraph, devido a problemas de comunicações. Quando, a 3 de Setembro, a Grã-Bretanha declarou guerra à Alemanha, a sua situação tornou-se ainda mais complicada.

Acabou por seguir para a Roménia (onde passou a escrever para o Daily Express), daí para a Grécia, Roménia outra vez, Turquia, Egipto. Na viagem para o Cairo, feita a bordo de um cargueiro, os aviões alemães sobrevoaram o navio a baixa altitude, mas terão decidido que não valia a pena afundá-lo. No Egipto, tratou de seguir no terreno as operações no Norte de África, mas teve problemas com o comandante das tropas britânicas, o general Montgomery, que a mandou embora, por considerar que as mulheres não tinham lugar num cenário de guerra. Resolveu o problema juntando-se às forças americanas, comandadas por Eisenhower.

A seguir à guerra, e depois de sobreviver ao atentado de 1946 no Hotel King David, divorciou-se do primeiro marido e casou-se com um camarada de profissão, em 1951. Viajou. Conseguiu grandes reportagens e exclusivos - como a primeira entrevista ao jovem, 21 anos, xá do Irão, Reza Pahlevi, ou a história completa da deserção dos espiões Donald Maclean e Guy Burgess para a URSS durante a Guerra Fria (incrivelmente, Clare e o marido tinham sido vizinhos e tornaram-se amigos dos Maclean no Cairo...).

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Esteve na guerra da Argélia, no Vietname, na zona de conflito indo-paquistanesa, foi correspondente em Pequim numa altura em que a vida dos jornalistas estrangeiros era vigiada e controlada ao milímetro pelas autoridades comunistas

Regressou a Londres em 1976, mas acabou por se reformar em 1981, aos 70 anos. Retirou-se para Hong Kong, onde ainda foi enviando trabalhos durante uma década. Hoje, Clare Hollingworth continua a frequentar o Clube dos Correspondentes Estrangeiros e, algures pelos anos de 1990, garantiu, após uma operação: "Se a minha perna e o meu pé estiverem melhores amanhã e houver uma guerra aqui por perto, eu vou!" Já não pode cumprir a promessa, mas, acreditem, ela continua atenta ao que se passa.

Clare Hollingworth é um nome mítico entre os correspondentes de guerra. Esteve nos palcos de conflito da II Guerra Mundial, Médio Oriente, Argélia, Índia, Vietname, vive agora a reforma em Hong Kong. E tudo começou num dia de Agosto, na fronteira entre a Alemanha e a Polónia.

A tarefa de um repórter é conseguir contar bem a história do que está a acontecer. O sonho de um jornalista é conseguir antecipar uma notícia. A britânica Clare Hollingworth atingiu esses dois objectivos logo no início da sua carreira: em 1939, numa visita à Polónia, detectou as movimentações alemãs junto à fronteira e foi a primeira a relatar o início da II Guerra Mundial. A semana passada, Clare completou 100 anos. Vive em Hong Kong e continua a ser uma lenda viva.

Há episódios marcantes na vida de toda a gente. Clare - que, ao longo de dezenas de anos de carreira, cobriu grandes acontecimentos da história mundial e escapou incólume da explosão no Hotel King David, em Jerusalém (uma bomba colocada por extremistas israelitas de direita matou 91 pessoas) - tem as suas, claro. Mas uma delas, em especial, marca o início do maior conflito da história da humanidade.

A jovem jornalista de 27 anos tinha sido enviada pelo jornal britânico Daily Telegraph para a Polónia, com a missão de elaborar uma série de trabalhos sobre a crescente tensão na Europa. Que o jornal tenha enviado para tal serviço uma rapariga que só estava nos quadros da empresa há uma semana dará, talvez, a noção de como as ameaças veladas de Adolf Hitler e da Alemanha nazi ainda não eram levadas a sério... Bom, ela já era jornalista e vivera na Polónia. Qualificava-se para o cargo de correspondente em Katowice.

E Clare foi. Conversou com o cônsul-geral britânico, enviou os seus primeiros despachos. Como a fronteira estava fechada à circulação automóvel, pediu ao diplomata britânico que lhe emprestasse o carro com as insígnias diplomáticas, porque só mesmo esses podiam entrar na Alemanha. Sentou-se ao volante e fez-se à estrada. Na Alemanha, foi às compras e muniu-se de vinho e material fotográfico. Já então tinha notado a omnipresença de militares nas estradas. Mas foi no regresso que o acaso e a sua atenção revelaram um segredo terrível.

A jornalista conduzia de regresso à Polónia, relata um artigo do Guardian, quando, numa subida pronunciada, reparou nas enormes barreiras de juta que tinham sido colocadas junto à estrada, bloqueando a visão dos vales. Nessa altura, uma rajada de vento deslocou um pedaço de oleado e expôs o que a Alemanha tentava esconder: uma maciça concentração de tropas. Centenas de tanques, carros blindados, peças de artilharia. Todos prontos para entrarem em combate. E apontados à Polónia.

Clare avisou o consulado britânico. E relatou o que viu aos seus leitores. A BBC online recupera um excerto de uma das suas peças, publicada a 29 de Agosto: "Cruzei hoje a fronteira entre a Polónia e a região alemã da Alta Silésia e passei várias horas em Beuthen, Hindenburg e Gleiwitz. A fronteira está fechada a todo o tráfego local. Vi por todo o lado sinais de intensa actividade militar. Nas duas milhas [pouco mais de três quilómetros] entre Hindenburg e Gleiwitz, cruzei-me com 65 estafetas militares em motos. Os únicos carros à vista eram de militares."

Cenários de guerra

Três dias depois, a 1 de Setembro, as tropas do III Reich invadiram a Polónia, o primeiro acto militar da II Guerra Mundial. A repórter, que, em miúda, sempre se sentira fascinada por batalhas e estratégias militares, estava bem no centro dos acontecimentos. De tal maneira que foi ela a primeira britânica a dar conta da invasão - telefonou para a embaixada em Varsóvia e, para comprovar a sua história, pôs o telefone do lado de fora da janela, de forma a que os diplomatas pudessem ouvir o ruído dos tanques.

Os dias seguintes encontraram-na a fugir pela Polónia, muitas vezes sem conseguir evitar ficar para trás das linhas alemãs, e a reportar as incidências da guerra. A maior parte dos seus textos, no entanto, nunca chegou à redacção do Daily Telegraph, devido a problemas de comunicações. Quando, a 3 de Setembro, a Grã-Bretanha declarou guerra à Alemanha, a sua situação tornou-se ainda mais complicada.

Acabou por seguir para a Roménia (onde passou a escrever para o Daily Express), daí para a Grécia, Roménia outra vez, Turquia, Egipto. Na viagem para o Cairo, feita a bordo de um cargueiro, os aviões alemães sobrevoaram o navio a baixa altitude, mas terão decidido que não valia a pena afundá-lo. No Egipto, tratou de seguir no terreno as operações no Norte de África, mas teve problemas com o comandante das tropas britânicas, o general Montgomery, que a mandou embora, por considerar que as mulheres não tinham lugar num cenário de guerra. Resolveu o problema juntando-se às forças americanas, comandadas por Eisenhower.

A seguir à guerra, e depois de sobreviver ao atentado de 1946 no Hotel King David, divorciou-se do primeiro marido e casou-se com um camarada de profissão, em 1951. Viajou. Conseguiu grandes reportagens e exclusivos - como a primeira entrevista ao jovem, 21 anos, xá do Irão, Reza Pahlevi, ou a história completa da deserção dos espiões Donald Maclean e Guy Burgess para a URSS durante a Guerra Fria (incrivelmente, Clare e o marido tinham sido vizinhos e tornaram-se amigos dos Maclean no Cairo...).

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Esteve na guerra da Argélia, no Vietname, na zona de conflito indo-paquistanesa, foi correspondente em Pequim numa altura em que a vida dos jornalistas estrangeiros era vigiada e controlada ao milímetro pelas autoridades comunistas

Regressou a Londres em 1976, mas acabou por se reformar em 1981, aos 70 anos. Retirou-se para Hong Kong, onde ainda foi enviando trabalhos durante uma década. Hoje, Clare Hollingworth continua a frequentar o Clube dos Correspondentes Estrangeiros e, algures pelos anos de 1990, garantiu, após uma operação: "Se a minha perna e o meu pé estiverem melhores amanhã e houver uma guerra aqui por perto, eu vou!" Já não pode cumprir a promessa, mas, acreditem, ela continua atenta ao que se passa.

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