Pulo do Lobo: Zeca, Aron e Outras Blasfémias

02-07-2011
marcar artigo

I.A uma semana da derrota nas urnas, a esquerda entrega-se a uma guerra cultural que faria as delícias de Bourdieu. O primeiro tiro até foi disparado por Cavaco, quando cantou o "Grândola, Vila Morena". Mário Mesquita, em crónica no Público, condenou-o por "apropriação de símbolos alheios", "hipocrisia" e até "blasfémia de religião-política" porque essa canção exprime "o imaginário do 25 de Abril, da esquerda e muito em especial dos comunistas". Vital Moreira chega mesmo a perguntar, em tom catilinário: "não haverá limites para o oportunismo eleitoral?" Ontem, foi Alegre a declarar-se "chocado" por ouvir de Ramalho Eanes que "Cavaco é o candidato do 25 de Abril". O mesmo Alegre que se multiplica em homenagens a Cunhal, Torga, Fernando Vale, Salgado Zenha, Sousa Franco... O mesmo Alegre por sua vez acusado de "oportunismo" pelo comunista Jerónimo de Sousa e de "uma espécie de memória de Abril pequenina e oportunista" por Joana Amaral Dias. "Se Álvaro Cunhal fosse vivo, teria dito que não era decente", queixa-se aquele. "Será que Alegre até gosta de ver Cavaco a cantar a Grândola?", interroga-se esta. II.O mesmo argumento em distintas versões: há símbolos com uma origem política tão marcante que não podem ser património de todos. Algo assim como o totem da tribo, já que é de tribos que se trata. Não discutamos com as tribos os respectivos totems - a memória dos seus (e de mais ninguém) mortos, a superstição de saber o que eles pensariam se fossem vivos, o direito histórico de amaldiçoar os ímpios, o exaltante consolo de nomear perfídias e traições. Não discutamos porque é uma questão de fé. Há muito que Raymond Aron nos avisara: a política é o ópio dos intelectuais, a religião sem Deus dos órfãos das utopias. Tal como Le Pen quer "a França para os franceses", a esquerda recusa partilhar a sagrada herança. A França de Le Pen é mística, só existe por meio de uma visão ideal da pátria. A herança da esquerda é igualmente mística, só existe por meio de uma "mitologia retrospectiva". Por isso, a França de Le Pen pára às portas de Paris. Por isso, o imaginário de Abril pára às portas de Cavaco. III. Não discuto totems, mas discuto tabus. Para Aron, a tal "mitologia retrospectiva" fundava-se em três mitos: o mito da esquerda, o mito da revolução e o mito do proletariado. Todos estão vivos e todos são falsos. A esquerda. Qual esquerda? A de Soares, a de Alegre, a de Louçã ou a de Jerónimo? Ou a de Garcia Pereira? Ou mesmo a de Sócrates? Qual delas é herdeira do imaginário de Abril? A revolução. Aquela que alguns proclamam que, afinal, não foi feita? Ou a que felizmente existe e foi feita também pela direita - no Palácio de Cristal, no 25 de Novembro, em todas as eleições (sempre limpas, mesmo quando a direita perdeu), na vitória da AD e nas maiorias de Cavaco? O proletariado. As massas? Mas as massas preparam-se para votar em massa no Cavaco "de direita", "liberal" e "dos interesses". Ou as sondagens reflectem um admirável país novo onde só há capitalistas e latifundiários?Nos trinta anos da democracia portuguesa, a alternativa nunca foi apenas entre o PS e o PCP. Se assim fosse, teríamos simplesmente substituído uma ditadura por outra. Era isso o que queriam? Eu não. E olhem que não sou o único.

I.A uma semana da derrota nas urnas, a esquerda entrega-se a uma guerra cultural que faria as delícias de Bourdieu. O primeiro tiro até foi disparado por Cavaco, quando cantou o "Grândola, Vila Morena". Mário Mesquita, em crónica no Público, condenou-o por "apropriação de símbolos alheios", "hipocrisia" e até "blasfémia de religião-política" porque essa canção exprime "o imaginário do 25 de Abril, da esquerda e muito em especial dos comunistas". Vital Moreira chega mesmo a perguntar, em tom catilinário: "não haverá limites para o oportunismo eleitoral?" Ontem, foi Alegre a declarar-se "chocado" por ouvir de Ramalho Eanes que "Cavaco é o candidato do 25 de Abril". O mesmo Alegre que se multiplica em homenagens a Cunhal, Torga, Fernando Vale, Salgado Zenha, Sousa Franco... O mesmo Alegre por sua vez acusado de "oportunismo" pelo comunista Jerónimo de Sousa e de "uma espécie de memória de Abril pequenina e oportunista" por Joana Amaral Dias. "Se Álvaro Cunhal fosse vivo, teria dito que não era decente", queixa-se aquele. "Será que Alegre até gosta de ver Cavaco a cantar a Grândola?", interroga-se esta. II.O mesmo argumento em distintas versões: há símbolos com uma origem política tão marcante que não podem ser património de todos. Algo assim como o totem da tribo, já que é de tribos que se trata. Não discutamos com as tribos os respectivos totems - a memória dos seus (e de mais ninguém) mortos, a superstição de saber o que eles pensariam se fossem vivos, o direito histórico de amaldiçoar os ímpios, o exaltante consolo de nomear perfídias e traições. Não discutamos porque é uma questão de fé. Há muito que Raymond Aron nos avisara: a política é o ópio dos intelectuais, a religião sem Deus dos órfãos das utopias. Tal como Le Pen quer "a França para os franceses", a esquerda recusa partilhar a sagrada herança. A França de Le Pen é mística, só existe por meio de uma visão ideal da pátria. A herança da esquerda é igualmente mística, só existe por meio de uma "mitologia retrospectiva". Por isso, a França de Le Pen pára às portas de Paris. Por isso, o imaginário de Abril pára às portas de Cavaco. III. Não discuto totems, mas discuto tabus. Para Aron, a tal "mitologia retrospectiva" fundava-se em três mitos: o mito da esquerda, o mito da revolução e o mito do proletariado. Todos estão vivos e todos são falsos. A esquerda. Qual esquerda? A de Soares, a de Alegre, a de Louçã ou a de Jerónimo? Ou a de Garcia Pereira? Ou mesmo a de Sócrates? Qual delas é herdeira do imaginário de Abril? A revolução. Aquela que alguns proclamam que, afinal, não foi feita? Ou a que felizmente existe e foi feita também pela direita - no Palácio de Cristal, no 25 de Novembro, em todas as eleições (sempre limpas, mesmo quando a direita perdeu), na vitória da AD e nas maiorias de Cavaco? O proletariado. As massas? Mas as massas preparam-se para votar em massa no Cavaco "de direita", "liberal" e "dos interesses". Ou as sondagens reflectem um admirável país novo onde só há capitalistas e latifundiários?Nos trinta anos da democracia portuguesa, a alternativa nunca foi apenas entre o PS e o PCP. Se assim fosse, teríamos simplesmente substituído uma ditadura por outra. Era isso o que queriam? Eu não. E olhem que não sou o único.

marcar artigo