Teve uma ideia de ficção que quase viu transformada em realidade. Ex-jornalista do New York Times, Amy Waldman cobriu os ataques às Torres Gémeas e depois voltou-se para a literatura. A Submissão, o seu primeiro romance, é do melhor que já se escreveu sobre o 11 de Setembro.
Quando se deu o ataque terrorista às Torres Gémeas, a 11 de Setembro de 2001, Amy Waldman trabalhava no New York Times (NYT). Foi repórter daquele jornal norte-americano durante oito anos, dirigiu o escritório do NYT no Sul da Ásia e chegou a ser correspondente da revista The Atlantic. Mais de uma década depois, atende o telefone, em Nova Iorque, para responder às perguntas do Ípsilon a propósito do seu primeiro romance, A Submissão, editado em Portugal pela Teorema.
A ideia é simples: anos após os atentados de 11 de Setembro, o júri de um concurso tem de seleccionar um projecto para um memorial em homenagem às vítimas. Quando abre o envelope do projecto escolhido - O Jardim - para saber a identidade do arquitecto, aparece um nome muçulmano: Mohammad Khan.
Onde estava no dia 11 de Setembro de 2001?
Em Nova Iorque, a trabalhar como repórter para o. Soube o que estava a acontecer quando cheguei ao trabalho. Estava nodo edifício quando ouvi quem estava à espera do elevador comentar que um avião tinha embatido numa das Torres Gémeas. Subimos e quando saímos do elevador disseram-nos que um outro avião tinha embatido no World Trade Center. Nessa altura percebemos que não se tratava de um acidente. Passei o dia no edifício a receber os relatos de outros jornalistas que estavam no centro da cidade e a ver as televisões. Passei as seis semanas seguintes a fazer reportagens do rescaldo.
Depois de ter escrito sobre o ataque como jornalista, por que razão considerou importante tratar do assunto num romance (embora nunca use as palavras 11 de Setembro ou Ground Zero)?
Muitas questões e emoções postas em evidência com o 11 de Setembro eram difíceis de tratar jornalisticamente. Grande parte delas estava relacionada com o quanto estávamos confusos como americanos, não sabendo o que pensar sobre o islão e as consequências do ataque. Era mais fácil explorar esse tipo de incerteza através da ficção. Às vezes eu própria não sabia o que pensar. Essa foi a razão principal. A ideia que tive para escrever sobre o assunto - um americano muçulmano que ganha o concurso para a construção do memorial - era uma ideia de ficção. Pareceu-me uma maneira indirecta mas, de certa maneira, mais reveladora de fazer o rescaldo dos ataques. Estava muito interessada nas coisas que estavam a acontecer à superfície, mas também no que estava a acontecer por baixo da superfície - o que as pessoas estavam a matar em si, por exemplo - e a ficção ajudava-me a explorar isso. Descobri também que na ficção há lugar para o mistério. Acabei por não me preocupar em explicar as personagens porque queria deixar o leitor a lutar com o que elas são e a decidir porque fizeram o que fizeram.
Como lhe surgiu esta ideia?
Estava a conversar com uma amiga que é artista sobre o concurso para o memorial, que decorria naquela altura. Também falámos do Memorial dos Veteranos do Vietname, em Washington, projecto que foi escolhido através de um concurso anónimo e que Maya Lin venceu. Houve uma grande controvérsia - em parte por causa do design, em parte porque ela é sino-americana e algumas pessoas acharam desapropriado. De repente lembrei-me do que aconteceria se um americano muçulmano vencesse o concurso para o memorial do 11 de Setembro. Imediatamente pensei que estava ali um romance que alguém devia escrever.
Mo, o arquitecto que vence o concurso, só começa a ver-se como muçulmano depois do ataque - até aí via-se como americano...
No início pensei que ele seria só este homem que ganha o concurso, mas depois vi que também era importante pelas suas acções. Não era só uma vítima da situação, para o bem e para o mal ele estava a criar a situação, era a sua natureza. A identidade e a relação do indivíduo com o grupo, o poder do luto, a forma como lemos os símbolos, a relação entre o Ocidente e o Oriente e o modo como a arquitectura a ilustra (sempre houve troca de influências) são temas do livro. A maneira como olhamos para aquele jardim muda quando se sabe a identidade de quem o desenhou.
Quando foi bolseira do Instituto Radcliffe da Universidade de Harvard, tinha como projecto um trabalho sobre a história social e intelectual dos muçulmanos na Grã-Bretanha. Isso está relacionado com este livro?
Tive a ideia de fazer o romance uns anos antes, no final de 2003; depois, em 2006, tive a bolsa de Harvard e fui para lá trabalhar nesse projecto. Chamei-lhe o islão britânico porque estava a tentar perceber como é que a Grã-Bretanha moldou o desenvolvimento do islão nas suas colónias da Ásia do Sul e, paralelamente, como o islão estava a regressar à Grã-Bretanha através da imigração de muçulmanos. Durante a primeira parte da bolsa fiz muita pesquisa, mas nunca cheguei a escrever. Na segunda parte decidi começar a escrever o romance. Sendo jornalista, tinha muito pouco tempo livre. Percebi que nunca iria voltar a ter uma janela de tempo como aquela para tentar levar a cabo a ideia que tinha tido. Comecei a escrever o romance e concluí que queria ir até ao fim.
O mais desafiador foi a linguagem ou o que a atraía na ficção era permitir-lhe não escrever sobre pessoas reais?
Em termos de linguagem, gostei muito de experimentar a ficção porque por vezes, como jornalista, sentia-me frustrada pelos limites impostos; há uma data de convenções. Na ficção tudo me parecia muito mais livre: podia usar imagens, podia dar a volta a clichés, podia usar o humor muito mais do que alguma vez pude. Tudo me parecia muito libertador. Quanto às personagens, fui cuidadosa e definitivamente não quis escrever sobre pessoas reais. Quando comecei a escrever o romance nem sequer quis ir falar com ninguém, principalmente com aqueles que perderam alguém: isso iria restringir a minha liberdade. Achei que se tivesse as vozes deles na minha cabeça, ou se estivesse preocupada com o facto de determinada pessoa ir ler o que eu escrevesse, seria mais difícil. Quis estar sozinha enquanto escrevia o livro.
Mas não foi assistir a uma manifestação contra a construção da mesquita perto do Ground Zero, Park51?
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Quando a controvérsia por causa da construção da mesquita perto do Ground Zero explodiu eu já tinha acabado o primeiro rascunho do romance, estava a tentar trabalhar no segundo. Achei tão pouco usual, como romancista, que um cenário inventado acontecesse na vida real... Embora fosse um caso diferente [do que conto no romance], a parte emocional era muito semelhante e as questões levantadas similares. Estar a escrever um romance é como entrar num quarto às escuras: não vemos nada e tentamos descrevê-lo. Neste caso, senti que era como se alguém tivesse acendido a luz e finalmente eu pudesse ver o quarto como realmente era. Percebi é que era muito maior do que eu julgava e isso deu-me uma certa dimensão do que poderia ser a controvérsia, o conflito, o despertar da violência. Fui a alguns dos encontros da comunidade à volta daquele centro e também fui a um protesto, quando estava grávida de gémeos, para sentir o que seria. Fiquei contente por já não ser jornalista e não ter de entrevistar toda a gente. Queria comparar com o que eu já tinha escrito, para ver se era verdadeiro.
O título A Submissão (The Submission, no original) pode ser literal ou não. No romance diz-se que Mo, o arquitecto, "esquecera-se de si próprio, e essa era a mais verdadeira forma de submissão".
A palavra tem o mesmo duplo significado em português? Este título servia-me para a submissão de um projecto a um concurso, mas islão também significa submissão. À medida que ia trabalhando no livro comecei a ver diferentes ressonâncias. Quem se submete a quê e a quem? O que fazem as pessoas sob pressão de um grupo, da família, da religião ou de um país? Mo, de alguma maneira, está a resistir à submissão. O título capta muitas das questões com que todos nós temos de lidar na vida: quando resistir, quando desistir, quando fazer compromissos, como nos definimos quando nos relacionamos com outras pessoas, onde nos colocamos quando estamos sob a autoridade de alguém...
É um romance muito americano e, ao mesmo tempo, universal. Os não-americanos lêem-no de outra maneira?
A grande diferença é que estão a olhar para o aconteceu na América por uma janela. Mas ao mesmo tempo poucos países, nesta era, não foram tocados por questões relacionadas com o islão: como integrar a imigração muçulmana, o que pensar do islão e do terrorismo, como lidar com os medos e com a confiança, como ler os símbolos? Muito do que está no livro é universal.
Está a escrever um novo romance? Li no Twitter que estava escrever sobre os EUA e o Afeganistão, país que conhece dos tempos de jornalista.
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Passei muito tempo no Afeganistão no período a seguir ao 11 de Setembro. Não me lembro de ter posto isso no Twitter, mas se calhar alguém pôs [risos]. O próximo romance é em parte sobre a guerra no Afeganistão; em ficção não há muita coisa sobre isso, pareceu-me interessante. Estou a fazer pequenos progressos na escrita: tenho gémeos pequenos, não tenho o mesmo tempo para a escrita, está a ir devagarinho.
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Teve uma ideia de ficção que quase viu transformada em realidade. Ex-jornalista do New York Times, Amy Waldman cobriu os ataques às Torres Gémeas e depois voltou-se para a literatura. A Submissão, o seu primeiro romance, é do melhor que já se escreveu sobre o 11 de Setembro.
Quando se deu o ataque terrorista às Torres Gémeas, a 11 de Setembro de 2001, Amy Waldman trabalhava no New York Times (NYT). Foi repórter daquele jornal norte-americano durante oito anos, dirigiu o escritório do NYT no Sul da Ásia e chegou a ser correspondente da revista The Atlantic. Mais de uma década depois, atende o telefone, em Nova Iorque, para responder às perguntas do Ípsilon a propósito do seu primeiro romance, A Submissão, editado em Portugal pela Teorema.
A ideia é simples: anos após os atentados de 11 de Setembro, o júri de um concurso tem de seleccionar um projecto para um memorial em homenagem às vítimas. Quando abre o envelope do projecto escolhido - O Jardim - para saber a identidade do arquitecto, aparece um nome muçulmano: Mohammad Khan.
Onde estava no dia 11 de Setembro de 2001?
Em Nova Iorque, a trabalhar como repórter para o. Soube o que estava a acontecer quando cheguei ao trabalho. Estava nodo edifício quando ouvi quem estava à espera do elevador comentar que um avião tinha embatido numa das Torres Gémeas. Subimos e quando saímos do elevador disseram-nos que um outro avião tinha embatido no World Trade Center. Nessa altura percebemos que não se tratava de um acidente. Passei o dia no edifício a receber os relatos de outros jornalistas que estavam no centro da cidade e a ver as televisões. Passei as seis semanas seguintes a fazer reportagens do rescaldo.
Depois de ter escrito sobre o ataque como jornalista, por que razão considerou importante tratar do assunto num romance (embora nunca use as palavras 11 de Setembro ou Ground Zero)?
Muitas questões e emoções postas em evidência com o 11 de Setembro eram difíceis de tratar jornalisticamente. Grande parte delas estava relacionada com o quanto estávamos confusos como americanos, não sabendo o que pensar sobre o islão e as consequências do ataque. Era mais fácil explorar esse tipo de incerteza através da ficção. Às vezes eu própria não sabia o que pensar. Essa foi a razão principal. A ideia que tive para escrever sobre o assunto - um americano muçulmano que ganha o concurso para a construção do memorial - era uma ideia de ficção. Pareceu-me uma maneira indirecta mas, de certa maneira, mais reveladora de fazer o rescaldo dos ataques. Estava muito interessada nas coisas que estavam a acontecer à superfície, mas também no que estava a acontecer por baixo da superfície - o que as pessoas estavam a matar em si, por exemplo - e a ficção ajudava-me a explorar isso. Descobri também que na ficção há lugar para o mistério. Acabei por não me preocupar em explicar as personagens porque queria deixar o leitor a lutar com o que elas são e a decidir porque fizeram o que fizeram.
Como lhe surgiu esta ideia?
Estava a conversar com uma amiga que é artista sobre o concurso para o memorial, que decorria naquela altura. Também falámos do Memorial dos Veteranos do Vietname, em Washington, projecto que foi escolhido através de um concurso anónimo e que Maya Lin venceu. Houve uma grande controvérsia - em parte por causa do design, em parte porque ela é sino-americana e algumas pessoas acharam desapropriado. De repente lembrei-me do que aconteceria se um americano muçulmano vencesse o concurso para o memorial do 11 de Setembro. Imediatamente pensei que estava ali um romance que alguém devia escrever.
Mo, o arquitecto que vence o concurso, só começa a ver-se como muçulmano depois do ataque - até aí via-se como americano...
No início pensei que ele seria só este homem que ganha o concurso, mas depois vi que também era importante pelas suas acções. Não era só uma vítima da situação, para o bem e para o mal ele estava a criar a situação, era a sua natureza. A identidade e a relação do indivíduo com o grupo, o poder do luto, a forma como lemos os símbolos, a relação entre o Ocidente e o Oriente e o modo como a arquitectura a ilustra (sempre houve troca de influências) são temas do livro. A maneira como olhamos para aquele jardim muda quando se sabe a identidade de quem o desenhou.
Quando foi bolseira do Instituto Radcliffe da Universidade de Harvard, tinha como projecto um trabalho sobre a história social e intelectual dos muçulmanos na Grã-Bretanha. Isso está relacionado com este livro?
Tive a ideia de fazer o romance uns anos antes, no final de 2003; depois, em 2006, tive a bolsa de Harvard e fui para lá trabalhar nesse projecto. Chamei-lhe o islão britânico porque estava a tentar perceber como é que a Grã-Bretanha moldou o desenvolvimento do islão nas suas colónias da Ásia do Sul e, paralelamente, como o islão estava a regressar à Grã-Bretanha através da imigração de muçulmanos. Durante a primeira parte da bolsa fiz muita pesquisa, mas nunca cheguei a escrever. Na segunda parte decidi começar a escrever o romance. Sendo jornalista, tinha muito pouco tempo livre. Percebi que nunca iria voltar a ter uma janela de tempo como aquela para tentar levar a cabo a ideia que tinha tido. Comecei a escrever o romance e concluí que queria ir até ao fim.
O mais desafiador foi a linguagem ou o que a atraía na ficção era permitir-lhe não escrever sobre pessoas reais?
Em termos de linguagem, gostei muito de experimentar a ficção porque por vezes, como jornalista, sentia-me frustrada pelos limites impostos; há uma data de convenções. Na ficção tudo me parecia muito mais livre: podia usar imagens, podia dar a volta a clichés, podia usar o humor muito mais do que alguma vez pude. Tudo me parecia muito libertador. Quanto às personagens, fui cuidadosa e definitivamente não quis escrever sobre pessoas reais. Quando comecei a escrever o romance nem sequer quis ir falar com ninguém, principalmente com aqueles que perderam alguém: isso iria restringir a minha liberdade. Achei que se tivesse as vozes deles na minha cabeça, ou se estivesse preocupada com o facto de determinada pessoa ir ler o que eu escrevesse, seria mais difícil. Quis estar sozinha enquanto escrevia o livro.
Mas não foi assistir a uma manifestação contra a construção da mesquita perto do Ground Zero, Park51?
O melhor do Público no email Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Subscrever ×
Quando a controvérsia por causa da construção da mesquita perto do Ground Zero explodiu eu já tinha acabado o primeiro rascunho do romance, estava a tentar trabalhar no segundo. Achei tão pouco usual, como romancista, que um cenário inventado acontecesse na vida real... Embora fosse um caso diferente [do que conto no romance], a parte emocional era muito semelhante e as questões levantadas similares. Estar a escrever um romance é como entrar num quarto às escuras: não vemos nada e tentamos descrevê-lo. Neste caso, senti que era como se alguém tivesse acendido a luz e finalmente eu pudesse ver o quarto como realmente era. Percebi é que era muito maior do que eu julgava e isso deu-me uma certa dimensão do que poderia ser a controvérsia, o conflito, o despertar da violência. Fui a alguns dos encontros da comunidade à volta daquele centro e também fui a um protesto, quando estava grávida de gémeos, para sentir o que seria. Fiquei contente por já não ser jornalista e não ter de entrevistar toda a gente. Queria comparar com o que eu já tinha escrito, para ver se era verdadeiro.
O título A Submissão (The Submission, no original) pode ser literal ou não. No romance diz-se que Mo, o arquitecto, "esquecera-se de si próprio, e essa era a mais verdadeira forma de submissão".
A palavra tem o mesmo duplo significado em português? Este título servia-me para a submissão de um projecto a um concurso, mas islão também significa submissão. À medida que ia trabalhando no livro comecei a ver diferentes ressonâncias. Quem se submete a quê e a quem? O que fazem as pessoas sob pressão de um grupo, da família, da religião ou de um país? Mo, de alguma maneira, está a resistir à submissão. O título capta muitas das questões com que todos nós temos de lidar na vida: quando resistir, quando desistir, quando fazer compromissos, como nos definimos quando nos relacionamos com outras pessoas, onde nos colocamos quando estamos sob a autoridade de alguém...
É um romance muito americano e, ao mesmo tempo, universal. Os não-americanos lêem-no de outra maneira?
A grande diferença é que estão a olhar para o aconteceu na América por uma janela. Mas ao mesmo tempo poucos países, nesta era, não foram tocados por questões relacionadas com o islão: como integrar a imigração muçulmana, o que pensar do islão e do terrorismo, como lidar com os medos e com a confiança, como ler os símbolos? Muito do que está no livro é universal.
Está a escrever um novo romance? Li no Twitter que estava escrever sobre os EUA e o Afeganistão, país que conhece dos tempos de jornalista.
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Passei muito tempo no Afeganistão no período a seguir ao 11 de Setembro. Não me lembro de ter posto isso no Twitter, mas se calhar alguém pôs [risos]. O próximo romance é em parte sobre a guerra no Afeganistão; em ficção não há muita coisa sobre isso, pareceu-me interessante. Estou a fazer pequenos progressos na escrita: tenho gémeos pequenos, não tenho o mesmo tempo para a escrita, está a ir devagarinho.