Mulheres que se tornaram donas da sua liberdade

20-06-2011
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O escritor Vitorino Nemésio descreveu a sua musa e amante como uma "mais que arrojada - arrojadíssima". No Museu Carlos Machado, em Ponta Delgada, podemos observar agora as roupas, "talvez exageradas para a época, mas sem deixar ver nada, simplesmente deixando adivinhar", da marquesa Margarida Victória Jácome Correia (1919-1996) e de outras figuras como ela. É uma exposição para ver como se viveram os anos 1960-70 na ilha de São Miguel, nos Açores.

Rory tinha 22 anos em 1970. "A gente fazia toilette para ir ao cinema, à missa, a casa das pessoas. Neste recôndito cantinho perdido no meio do Atlântico, usávamos a moda como se estivéssemos em Londres." Os pais de Rory não a deixavam usar minissaias ou hot pants, mas, como ela era muito "reivindicativa" e "tinha o espírito dos anos 70" dentro dela, pensava: "Cá por mim: quando casar, vou começar a usar."

Entre as roupas que Rory guardou desses tempos e que estão na exposição Irreverência e Requinte - 1964-1974 Moda, Mulheres, Mudanças, no Museu Carlos Machado, em Ponta Delgada, destaca-se uma saia comprida, feita com capulana (pano trazido de Moçambique durante a guerra colonial pelos militares que depois os ofereciam às meninas da ilha de São Miguel). "Usava-a para festinhas à tarde, como ir ao Café Central", explicou ela a Anne Stichelmans, comissária da mostra, que pode ser visitada até ao dia 25 de Setembro.

Apesar de a colecção de peças do guarda-roupa da Marquesa Margarida Victória Jácome Correia (1919-1969), que o Museu Carlos Machado adquiriu nos anos 1980 e onde a estrela é um vestido comprido "cai-cai", de tule de seda preta assinado por Hubert Givenchy, ter sido o ponto de partida para a exposição Irreverência e Requinte, a mostra inclui também roupas e objectos dos anos 1960 e 1970 que alguns micaelenses guardaram da época em que as boutiques de moda eram raras em São Miguel e a informação chegava através das revistas estrangeiras (a RTP só foi para o ar nos Açores em 1975).

Irreverência e Requinte nasceu do desafio que o director do museu, Duarte Melo, fez à sua equipa e à socióloga Anne Stichelmans (voluntária no museu) para resgatarem a colecção de trajes que tinha pertencido à marquesa e que estava esquecida nas reservas. Na verdade, a colecção de roupa de Margarida Jácome Correia tinha entrado no museu e nunca tinha sido limpa, tratada, inventariada ou estudada. "Se permanecesse mais tempo assim, corria risco. Trabalhámos a colecção e contextualizámos as peças para enriquecer a exposição para além das peças isoladas de Margarida", explica Adelaide Teixeira, gestora da colecção do traje do Museu Carlos Machado.

Fizeram um protocolo com o Museu do Traje de Lisboa para datarem as peças, pois era essencial chegar-se a uma baliza temporal, e o criador de moda José António Tenente foi o consultor artístico. "Ele criou uma tipologia da colecção. Ao ver as peças de Margarida Jácome Correia, dividiu-as em peças de dia, de cocktail, de noite. Redesenhou a forma como as apresentar de acordo com o contexto em que seriam usadas", continua Maria Adelaide Teixeira. "Era essencial que a colecção ficasse valorizada, tivesse brilho. Porque é quase uma raridade nesta terra ter peças desta qualidade. É um privilégio", acrescenta Anne Stichelmans.

Inspiração e etiqueta

Margarida Jácome Correia foi uma mulher à frente do seu tempo. Filha do marquês de Jácome Correia, que foi adido cultural na embaixada de Portugal em Londres, nasceu em Ponta Delgada e viveu em Lisboa, em Paris e no Cairo. Casou, entre outros, com Armando Côrtes-Rodrigues, poeta açoriano do grupo do Orpheu e durante um período director do museu de Ponta Delgada. Por isso encontraram-se fotografias de Margarida no espólio do museu, mas só numa delas a marquesa aparece com uma peça que pode ser vista na exposição.

É um vestido comprido de malha executada com fio de seda e lhama de fio artificial dourado, sugerindo tule bordado com strasses e pérolas. A etiqueta é da Casa Bobone. "Várias casas de costura reproduziam os modelos que vinham de França. Iam duas vezes por ano assistir aos desfiles em Paris e depois compravam licenças para poderem reproduzir os vestidos. A Margarida recorreu muito à Casa Bobone e à Candidinha", afirma Anne Stichelmans.

Entre as peças agora expostas encontram-se sapatos e botas (anos 1970, etiqueta Christian Dior; um vestido preto de tafetá de linho e algodão (anos 1960, Jeanne Lanvin); um chapéu (anos 1950, Pierre Balmain); um vestido cinzento e preto (Hubert de Givenchy); um robe-manteaux de pêlo de lontra sem etiqueta e um vestido (anos 1970, Ossie Clark).

Há ainda um vestido e capa, do final de 1960, com etiqueta Louis Féraud e, por fim, um conjunto de vestido e corpinho, sem etiqueta, mas que a comissária por acaso encontrou reproduzido numa revista da época. "Não tem etiqueta, mas quando Anne estava na Feira da Ladra em Lisboa a folhear uma revista viu uma reportagem sobre a Casa Dior e a colecção de 1971. Estava lá o vestido! Telefonou-me logo a dizer que tínhamos fotografado mal o vestido porque eu tinha posto o manequim com a blusa por fora. Sabemos qual foi a inspiração sem ter a etiqueta. O tecido da blusa é igual e o resto é linho, de qualidade, acetinado", conta a gestora da colecção do traje do Museu Carlos Machado.

Margarida Jácome Correia foi a grande amiga (musa e amante) de Vitorino Nemésio até ao final da vida do escritor. Ele dedicou-lhe o conjunto de poemas Macaca de Fogo e levou-a a escrever as memórias Amores da Cadela "Pura" (ed. Bertrand) que foram publicadas, pela primeira vez, em 1976. Nelas Margarida conta que Nemésio participava num congresso de escritores em Nice com Natália Correia e David Mourão-Ferreira mas morria de saudades dela. Ordenou-lhe que fosse ter com ele. Ela foi. Em cima da cama tinha um presente: "Um colar enorme com rodelas muito grandes." Nas suas memórias Margarida conta que a vendeuse teria perguntado a Vitorino se a mulher a quem ele ia oferecer a jóia era arrojada para tal fantasia. "Vitorino rindo respondera-lhe: "Mais que arrojada, arrojadíssima!""

A vida de Margarida foi fascinante e a sua rebeldia inspirou o criador de moda português Nuno Baltazar, que lhe dedicou uma das suas colecções. "Ela deve ter tido muito mais roupa na sua vida, não há dúvida. Nas memórias faz referência a outras roupas que não apareceram. A roupa que ela vendeu é de finais dos anos 50 até 79", explica a comissária desta exposição no núcleo de Santa Bárbara do museu de Ponta Delgada.

A determinada altura, Margarida escreve: "Não gosto muito de falar de mim, em certas coisas, mas desta vez não resisto. O meu vestido era deslumbrante, todo pailleté branco, mas muito discreto, cingido ao corpo, com um decote em bico, talvez exagerado para a época, mas sem deixar ver nada, simplesmente deixando adivinhar." E, mais para o final dos dois volumes de memórias, conta: "Os meus vestidos, todos bordados à mão e alguns revestidos de pedras semipreciosas, esses, ficaram no Museu de Ponta Delgada para que, se entendessem, com eles fazerem uma pequena secção de traje."

Gesto corajoso

A colecção entrou no museu, que já tinha outras colecções de roupa (principalmente traje do século XIX), entre 1979 e 1980. "O gesto de se ter comprado esta colecção foi corajoso e particularmente avançado para a época. Não fazia parte de uma continuidade, a roupa que o museu possuía era do século XIX. Foi um gesto bonito e moderno. Posso estar enganada, mas parece-me que a cultura local está muito focada no século XIX", afirma Anne Stichelmans.

Com esta colecção de traje adquirida por Nestor de Sousa, director do Museu Carlos Machado de 1975 a 1985, ficaram expostas outras coisas, entre as quais mobiliário do séc. XIX, e aí pode estar em parte a explicação para esta decisão. "Foi uma dupla intenção", explica Adelaide Teixeira.

Para a comissária da exposição, belga com casa em São Miguel, era importante perceber se a marquesa Margarida Jácome Correia, que tinha 51 anos em 1970, era ou não um caso único na ilha. "Será que ela foi uma extraterrestre ou havia outras mulheres, sobretudo, que se interessavam pela moda apesar do contexto territorial, cultural, económico e político de Portugal na altura?", questionou.

Ao falar com alguém apercebeu-se de que havia outras pessoas na ilha que também seguiam a moda e tinham ficado com essas peças em casa, o que era essencial para conseguir pôr de pé a exposição. "Nós podemos ter vivido naquela altura, mas deitámos fora as roupas, a maior parte das pessoas faz isso. Como em São Miguel as pessoas permanecem nas suas casas e não mudam de residência ao longo da vida, têm guardado muita coisa, inclusive a roupa."

Embora fossem contemporâneas, havia uma diferença: a roupa de Margarida Jácome Correia era de alta-costura. "As peças que temos da Margarida não são do quotidiano - são de determinadas festas, cocktails -, enquanto as peças que estão na outra sala são do dia-a-dia", diz Adelaide Teixeira. Nas suas memórias, Margarida não se coibiu de realçar as diferenças: "Aquela sociedade nunca evoluiu; manteve-se tacanha de ideias, impessoal, numa preocupação única: estar à la page, imitar Paris, mas sem classe nenhuma para o fazer. Pirosa e arrogante, isso sim."

Ana Maria tinha 25 anos em 1970. No princípio de cada estação, duas vezes por ano, enviava cartas para a Casa Sousa, a David e David, a Último Figurino e à Ramiro Leão, em Lisboa, a pedir amostras de tecido. "O carteiro era esperadíssimo! Ficava com um monte de amostras, para toda a família. Era uma festa!", conta no seu depoimento, que pode ser lido junto às peças expostas.

Em cada estação, Ana Maria tinha por hábito mandar fazer um tailleur com blusa a condizer e um vestido. Havia na ilha o Bureau de Turismo onde chegavam as revistas estrangeiras (Marie Claire, Burda, Elle, Paris-Match, etc.) que serviam de inspiração para as roupas que se mandavam fazer nas costureiras. Um dia foi buscar "o futuro" marido ao Cais da Rocha. "Estava vestida com uma minissaia de lã azul. Ele ficou chocado, disse-me que era muito curta!", afirma. "Às cinco ou seis horas, a mulher tinha que estar toda arranjada para receber o marido. Foi um escândalo quando resolvi matricular-me numa aula de ginástica, ao fim da tarde, porque deixava os filhos e o marido. Mas continuei!"

Por vezes, nesta exposição, há histórias comuns. Um irmão e uma irmã, o Carlos e a Paula, tinham 20 e 24 anos em 1970. Quando Paula fez uma viagem a Londres, Carlos pediu-lhe que ela lhe trouxesse qualquer coisa da famosa Carnaby Street. Ela trouxe-lhe um blusão e ele usou, usou, usou. "Vestia-o todos os dias, dia e noite. Usava-se muito curto, era a moda." Na exposição pode ser vista também a mobília que os pais deles tinham na sala. Numa época em que nos Açores não havia televisão, o gira-discos era o rei. "Eu era adolescente. A música era um desabafo. Ouvíamos música na sala. Às vezes, o nosso pai dizia: "Põe a música mais baixo!""

Lorena e Jorge tinham 20 anos em 1970. Eram namorados. Jorge era cantor de um grupo pop, Os Académicos, que actuava no Clube Micaelense e nas festas com ambiente das Mil e Uma Noites em casa de Margarida Victória Jácome Correia. Tinham roupas feitas com os mesmos tecidos. Lorena comprava tecido com malmequeres, fazia uma minissaia para si própria e calças à boca-de-sino para Jorge. Às vezes passeavam pela ilha vestidos de igual.

"As minhas minissaias não eram tão mini como isso. Na freguesia, a mãe não concordava em deixar-me ir à rua com saias muito curtas. Na cidade era diferente: mal tinha saído de casa, enrolava a saia no cinto. Eu era dona da minha liberdade. Não tinha que prestar contas a ninguém", conta Lorena no seu depoimento.

Lili tinha 22 anos em 1970. Quando se casou, o seu vestido de noiva era "um bocado radical". Foi mandado fazer em Lisboa na Casa Africana: "O capucho foi inspirado no vestido de noiva da Sylvie Vartan com o Johnny Hallyday."

Além do seu vestido de noiva, Lili guardou também um bâton e uma caixa com as pestanas postiças, ambos da famosa marca de Mary Quant (que inventou a minissaia).

Graça tinha 22 anos em 1970. Na exposição, ela é um caso à parte porque já não tem a roupa mas guardou objectos. Vivia em Lisboa. Não tinha dinheiro e teve de ser criativa. "Começou a copiar peças de design em vez de copiar vestuário. Era muito mais avançada", afirma a comissária da exposição. Comprou uma saladeira cor de laranja, pediu a um serralheiro para fazer a base do candeeiro e o marido electrificou-o. Começou a vender. Passou a ir comprar as taças na fábrica para conseguir um preço mais acessível. Fez um segundo candeeiro que não correu tão bem porque o acrílico ficou muito caro. As peças estão expostas no museu.

Não só quem cedeu as peças para Irreverência e Requinte gostou de lembrar os tempos da juventude, como quem visita esta mostra se revê naquilo que ali é contado. Os miúdos têm também oportunidade de visitar a exposição (que inclui uma sala de contextualização com uma cronologia dos eventos que marcaram o mundo entre 1964-1974), com pais e avós para ouvir o que contam daquele tempo, e podem participar em ateliers de Verão relacionados com a exposição.

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A exposição pode ser visitada até 25 de Setembro no Museu Carlos Machado, núcleo de Santa Bárbara, Ponta Delgada, Açores. De terça a sexta das 10h às 12h30 e das 14h às 17h30. Encerra aos domingos e feriados. (www.museucarlosmachado.azores.gov.pt).

O escritor Vitorino Nemésio descreveu a sua musa e amante como uma "mais que arrojada - arrojadíssima". No Museu Carlos Machado, em Ponta Delgada, podemos observar agora as roupas, "talvez exageradas para a época, mas sem deixar ver nada, simplesmente deixando adivinhar", da marquesa Margarida Victória Jácome Correia (1919-1996) e de outras figuras como ela. É uma exposição para ver como se viveram os anos 1960-70 na ilha de São Miguel, nos Açores.

Rory tinha 22 anos em 1970. "A gente fazia toilette para ir ao cinema, à missa, a casa das pessoas. Neste recôndito cantinho perdido no meio do Atlântico, usávamos a moda como se estivéssemos em Londres." Os pais de Rory não a deixavam usar minissaias ou hot pants, mas, como ela era muito "reivindicativa" e "tinha o espírito dos anos 70" dentro dela, pensava: "Cá por mim: quando casar, vou começar a usar."

Entre as roupas que Rory guardou desses tempos e que estão na exposição Irreverência e Requinte - 1964-1974 Moda, Mulheres, Mudanças, no Museu Carlos Machado, em Ponta Delgada, destaca-se uma saia comprida, feita com capulana (pano trazido de Moçambique durante a guerra colonial pelos militares que depois os ofereciam às meninas da ilha de São Miguel). "Usava-a para festinhas à tarde, como ir ao Café Central", explicou ela a Anne Stichelmans, comissária da mostra, que pode ser visitada até ao dia 25 de Setembro.

Apesar de a colecção de peças do guarda-roupa da Marquesa Margarida Victória Jácome Correia (1919-1969), que o Museu Carlos Machado adquiriu nos anos 1980 e onde a estrela é um vestido comprido "cai-cai", de tule de seda preta assinado por Hubert Givenchy, ter sido o ponto de partida para a exposição Irreverência e Requinte, a mostra inclui também roupas e objectos dos anos 1960 e 1970 que alguns micaelenses guardaram da época em que as boutiques de moda eram raras em São Miguel e a informação chegava através das revistas estrangeiras (a RTP só foi para o ar nos Açores em 1975).

Irreverência e Requinte nasceu do desafio que o director do museu, Duarte Melo, fez à sua equipa e à socióloga Anne Stichelmans (voluntária no museu) para resgatarem a colecção de trajes que tinha pertencido à marquesa e que estava esquecida nas reservas. Na verdade, a colecção de roupa de Margarida Jácome Correia tinha entrado no museu e nunca tinha sido limpa, tratada, inventariada ou estudada. "Se permanecesse mais tempo assim, corria risco. Trabalhámos a colecção e contextualizámos as peças para enriquecer a exposição para além das peças isoladas de Margarida", explica Adelaide Teixeira, gestora da colecção do traje do Museu Carlos Machado.

Fizeram um protocolo com o Museu do Traje de Lisboa para datarem as peças, pois era essencial chegar-se a uma baliza temporal, e o criador de moda José António Tenente foi o consultor artístico. "Ele criou uma tipologia da colecção. Ao ver as peças de Margarida Jácome Correia, dividiu-as em peças de dia, de cocktail, de noite. Redesenhou a forma como as apresentar de acordo com o contexto em que seriam usadas", continua Maria Adelaide Teixeira. "Era essencial que a colecção ficasse valorizada, tivesse brilho. Porque é quase uma raridade nesta terra ter peças desta qualidade. É um privilégio", acrescenta Anne Stichelmans.

Inspiração e etiqueta

Margarida Jácome Correia foi uma mulher à frente do seu tempo. Filha do marquês de Jácome Correia, que foi adido cultural na embaixada de Portugal em Londres, nasceu em Ponta Delgada e viveu em Lisboa, em Paris e no Cairo. Casou, entre outros, com Armando Côrtes-Rodrigues, poeta açoriano do grupo do Orpheu e durante um período director do museu de Ponta Delgada. Por isso encontraram-se fotografias de Margarida no espólio do museu, mas só numa delas a marquesa aparece com uma peça que pode ser vista na exposição.

É um vestido comprido de malha executada com fio de seda e lhama de fio artificial dourado, sugerindo tule bordado com strasses e pérolas. A etiqueta é da Casa Bobone. "Várias casas de costura reproduziam os modelos que vinham de França. Iam duas vezes por ano assistir aos desfiles em Paris e depois compravam licenças para poderem reproduzir os vestidos. A Margarida recorreu muito à Casa Bobone e à Candidinha", afirma Anne Stichelmans.

Entre as peças agora expostas encontram-se sapatos e botas (anos 1970, etiqueta Christian Dior; um vestido preto de tafetá de linho e algodão (anos 1960, Jeanne Lanvin); um chapéu (anos 1950, Pierre Balmain); um vestido cinzento e preto (Hubert de Givenchy); um robe-manteaux de pêlo de lontra sem etiqueta e um vestido (anos 1970, Ossie Clark).

Há ainda um vestido e capa, do final de 1960, com etiqueta Louis Féraud e, por fim, um conjunto de vestido e corpinho, sem etiqueta, mas que a comissária por acaso encontrou reproduzido numa revista da época. "Não tem etiqueta, mas quando Anne estava na Feira da Ladra em Lisboa a folhear uma revista viu uma reportagem sobre a Casa Dior e a colecção de 1971. Estava lá o vestido! Telefonou-me logo a dizer que tínhamos fotografado mal o vestido porque eu tinha posto o manequim com a blusa por fora. Sabemos qual foi a inspiração sem ter a etiqueta. O tecido da blusa é igual e o resto é linho, de qualidade, acetinado", conta a gestora da colecção do traje do Museu Carlos Machado.

Margarida Jácome Correia foi a grande amiga (musa e amante) de Vitorino Nemésio até ao final da vida do escritor. Ele dedicou-lhe o conjunto de poemas Macaca de Fogo e levou-a a escrever as memórias Amores da Cadela "Pura" (ed. Bertrand) que foram publicadas, pela primeira vez, em 1976. Nelas Margarida conta que Nemésio participava num congresso de escritores em Nice com Natália Correia e David Mourão-Ferreira mas morria de saudades dela. Ordenou-lhe que fosse ter com ele. Ela foi. Em cima da cama tinha um presente: "Um colar enorme com rodelas muito grandes." Nas suas memórias Margarida conta que a vendeuse teria perguntado a Vitorino se a mulher a quem ele ia oferecer a jóia era arrojada para tal fantasia. "Vitorino rindo respondera-lhe: "Mais que arrojada, arrojadíssima!""

A vida de Margarida foi fascinante e a sua rebeldia inspirou o criador de moda português Nuno Baltazar, que lhe dedicou uma das suas colecções. "Ela deve ter tido muito mais roupa na sua vida, não há dúvida. Nas memórias faz referência a outras roupas que não apareceram. A roupa que ela vendeu é de finais dos anos 50 até 79", explica a comissária desta exposição no núcleo de Santa Bárbara do museu de Ponta Delgada.

A determinada altura, Margarida escreve: "Não gosto muito de falar de mim, em certas coisas, mas desta vez não resisto. O meu vestido era deslumbrante, todo pailleté branco, mas muito discreto, cingido ao corpo, com um decote em bico, talvez exagerado para a época, mas sem deixar ver nada, simplesmente deixando adivinhar." E, mais para o final dos dois volumes de memórias, conta: "Os meus vestidos, todos bordados à mão e alguns revestidos de pedras semipreciosas, esses, ficaram no Museu de Ponta Delgada para que, se entendessem, com eles fazerem uma pequena secção de traje."

Gesto corajoso

A colecção entrou no museu, que já tinha outras colecções de roupa (principalmente traje do século XIX), entre 1979 e 1980. "O gesto de se ter comprado esta colecção foi corajoso e particularmente avançado para a época. Não fazia parte de uma continuidade, a roupa que o museu possuía era do século XIX. Foi um gesto bonito e moderno. Posso estar enganada, mas parece-me que a cultura local está muito focada no século XIX", afirma Anne Stichelmans.

Com esta colecção de traje adquirida por Nestor de Sousa, director do Museu Carlos Machado de 1975 a 1985, ficaram expostas outras coisas, entre as quais mobiliário do séc. XIX, e aí pode estar em parte a explicação para esta decisão. "Foi uma dupla intenção", explica Adelaide Teixeira.

Para a comissária da exposição, belga com casa em São Miguel, era importante perceber se a marquesa Margarida Jácome Correia, que tinha 51 anos em 1970, era ou não um caso único na ilha. "Será que ela foi uma extraterrestre ou havia outras mulheres, sobretudo, que se interessavam pela moda apesar do contexto territorial, cultural, económico e político de Portugal na altura?", questionou.

Ao falar com alguém apercebeu-se de que havia outras pessoas na ilha que também seguiam a moda e tinham ficado com essas peças em casa, o que era essencial para conseguir pôr de pé a exposição. "Nós podemos ter vivido naquela altura, mas deitámos fora as roupas, a maior parte das pessoas faz isso. Como em São Miguel as pessoas permanecem nas suas casas e não mudam de residência ao longo da vida, têm guardado muita coisa, inclusive a roupa."

Embora fossem contemporâneas, havia uma diferença: a roupa de Margarida Jácome Correia era de alta-costura. "As peças que temos da Margarida não são do quotidiano - são de determinadas festas, cocktails -, enquanto as peças que estão na outra sala são do dia-a-dia", diz Adelaide Teixeira. Nas suas memórias, Margarida não se coibiu de realçar as diferenças: "Aquela sociedade nunca evoluiu; manteve-se tacanha de ideias, impessoal, numa preocupação única: estar à la page, imitar Paris, mas sem classe nenhuma para o fazer. Pirosa e arrogante, isso sim."

Ana Maria tinha 25 anos em 1970. No princípio de cada estação, duas vezes por ano, enviava cartas para a Casa Sousa, a David e David, a Último Figurino e à Ramiro Leão, em Lisboa, a pedir amostras de tecido. "O carteiro era esperadíssimo! Ficava com um monte de amostras, para toda a família. Era uma festa!", conta no seu depoimento, que pode ser lido junto às peças expostas.

Em cada estação, Ana Maria tinha por hábito mandar fazer um tailleur com blusa a condizer e um vestido. Havia na ilha o Bureau de Turismo onde chegavam as revistas estrangeiras (Marie Claire, Burda, Elle, Paris-Match, etc.) que serviam de inspiração para as roupas que se mandavam fazer nas costureiras. Um dia foi buscar "o futuro" marido ao Cais da Rocha. "Estava vestida com uma minissaia de lã azul. Ele ficou chocado, disse-me que era muito curta!", afirma. "Às cinco ou seis horas, a mulher tinha que estar toda arranjada para receber o marido. Foi um escândalo quando resolvi matricular-me numa aula de ginástica, ao fim da tarde, porque deixava os filhos e o marido. Mas continuei!"

Por vezes, nesta exposição, há histórias comuns. Um irmão e uma irmã, o Carlos e a Paula, tinham 20 e 24 anos em 1970. Quando Paula fez uma viagem a Londres, Carlos pediu-lhe que ela lhe trouxesse qualquer coisa da famosa Carnaby Street. Ela trouxe-lhe um blusão e ele usou, usou, usou. "Vestia-o todos os dias, dia e noite. Usava-se muito curto, era a moda." Na exposição pode ser vista também a mobília que os pais deles tinham na sala. Numa época em que nos Açores não havia televisão, o gira-discos era o rei. "Eu era adolescente. A música era um desabafo. Ouvíamos música na sala. Às vezes, o nosso pai dizia: "Põe a música mais baixo!""

Lorena e Jorge tinham 20 anos em 1970. Eram namorados. Jorge era cantor de um grupo pop, Os Académicos, que actuava no Clube Micaelense e nas festas com ambiente das Mil e Uma Noites em casa de Margarida Victória Jácome Correia. Tinham roupas feitas com os mesmos tecidos. Lorena comprava tecido com malmequeres, fazia uma minissaia para si própria e calças à boca-de-sino para Jorge. Às vezes passeavam pela ilha vestidos de igual.

"As minhas minissaias não eram tão mini como isso. Na freguesia, a mãe não concordava em deixar-me ir à rua com saias muito curtas. Na cidade era diferente: mal tinha saído de casa, enrolava a saia no cinto. Eu era dona da minha liberdade. Não tinha que prestar contas a ninguém", conta Lorena no seu depoimento.

Lili tinha 22 anos em 1970. Quando se casou, o seu vestido de noiva era "um bocado radical". Foi mandado fazer em Lisboa na Casa Africana: "O capucho foi inspirado no vestido de noiva da Sylvie Vartan com o Johnny Hallyday."

Além do seu vestido de noiva, Lili guardou também um bâton e uma caixa com as pestanas postiças, ambos da famosa marca de Mary Quant (que inventou a minissaia).

Graça tinha 22 anos em 1970. Na exposição, ela é um caso à parte porque já não tem a roupa mas guardou objectos. Vivia em Lisboa. Não tinha dinheiro e teve de ser criativa. "Começou a copiar peças de design em vez de copiar vestuário. Era muito mais avançada", afirma a comissária da exposição. Comprou uma saladeira cor de laranja, pediu a um serralheiro para fazer a base do candeeiro e o marido electrificou-o. Começou a vender. Passou a ir comprar as taças na fábrica para conseguir um preço mais acessível. Fez um segundo candeeiro que não correu tão bem porque o acrílico ficou muito caro. As peças estão expostas no museu.

Não só quem cedeu as peças para Irreverência e Requinte gostou de lembrar os tempos da juventude, como quem visita esta mostra se revê naquilo que ali é contado. Os miúdos têm também oportunidade de visitar a exposição (que inclui uma sala de contextualização com uma cronologia dos eventos que marcaram o mundo entre 1964-1974), com pais e avós para ouvir o que contam daquele tempo, e podem participar em ateliers de Verão relacionados com a exposição.

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A exposição pode ser visitada até 25 de Setembro no Museu Carlos Machado, núcleo de Santa Bárbara, Ponta Delgada, Açores. De terça a sexta das 10h às 12h30 e das 14h às 17h30. Encerra aos domingos e feriados. (www.museucarlosmachado.azores.gov.pt).

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