O Acidental: Tema do traidor e do herói

03-07-2011
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Pedro, lá arranjei algum tempo, entre terminar compromissos profissionais e partir de férias, para uma réplica. É bastante longa. Como aqui o patrão do estabelecimento não providencia um Acidental Rebelo de Sousa, escrevo mesmo no corpo do blog. Entretanto, despeço-me para férias. Vai por pontos, que é mais rápido:
1. Existe, desde logo, na posição de Kerry um problema pessoal. Kerry foi um activista radical contra a guerra do Vietname. Construiu inicialmente (e manteve) a sua carreira política com base nessa posição. Nas declarações ao Senado e nas várias posições que tomou à época não se limitou a registar os crimes de guerra esporádicos que os soldados americanos cometeram. Atribuiu a esses soldados um padrão sistemático de barbárie, afirmando que ele se inseria numa política genérica, em última instância definida pelo próprio governo americano. Por essa via (e por outras) renegou inteiramente qualquer valor (político, estratégico ou outro) à guerra do Vietname. Para ele, essa guerra passou a ser a partir de determinada altura inteiramente injustificada. Explica-me com que cara pode ele vir agora construir uma figura presidenciável na base de um passado que renegou inteiramente. A isso chama-se oportunismo. E muitos eleitores americanos terão percebido isto mesmo. Haverá veteranos do Vietname a reagir a esta postura por más razões. Mas quantos veteranos não estão a reagir por orgulho perante uma pessoa que no passado os acusou de serem quase carniceiros de Auschwitz. Imagina-te como veterano de uma guerra onde desempenhaste o teu serviço dentro do mais estrito cumprimento das leis da guerra. E imagina-te a ver uma pessoa que contruiu uma carreira política bem sucedida na base de te considerar um facínora e que vem agora reclamar-se de um heroísmo que te negou a ti. Ainda por cima tendo apresentado factos que entretanto se provou serem falsos.
2. Depois há o problema da guerra propriamente dita. Muita gente considerou a guerra do Vietname um erro estratégico, inclusivé dentro das administrações Kennedy, Johnson e Nixon (McNamara, por exemplo), pelo menos a partir de certa altura. Fizeram-no considerando que a guerra prestava um mau serviço à estratégia de contenção do comunismo. Kerry não fez parte dessa categoria de pessoas. Kerry criticou a guerra do Vietname na base de uma crítica civilizacional mais alargada ao Ocidente, tal como ele se materializava nos EUA. Para Kerry a existência do comunismo não era um problema – no Vietname, na URSS, na China ou até, talvez, nos próprios EUA. Muito francamente, toda a gente sabia que largar o Vietname correspondia a entregá-lo à violência comunista, a mesma violência que acompanhou o comunismo institucionalizado desde 1917. Se Kerry não o sabia, então é porque era burro. Se sabia, então era porque não se importava.
3. Mas para muita gente não era assim. Talvez o primeiro episódio que mereça ser recordado aqui é o da guerra da Coreia. Uma situação idêntica à do Vietname, com um país dividido entre uma metade apoiada por regimes comunistas e outra por regimes ocidentais. Na Coreia, ao contrário do Vietname, prevaleceu a divisão. Infelizmente para os coreanos, mas felizmente para a política comparativa, a península coreana ainda hoje está dividida nesses dois campos. De um lado temos um regime assassino e louco. Do outro uma próspera democracia que (tendo sido uma ditadura moderada durante bastante tempo) até tem um presidente de esquerda (mais ou menos social-democrata). Quem sabe no Vietname as coisas não se poderiam ter passado assim? Dir-me-ás: sim, Luciano, mas os amigos dos americanos no Vietname do Sul não se recomendavam. Numa guerra tão cheia de lendas, eis outra que foi impressa em detrimento da verdade. Diem não era flor que se cheirasse, não senhor. Mas depois do seu assassinato em 1965, entrou-se, sob patrocínio americano, num processo constitucional (com eleições e uma assembleia constitutinte e uma eleição presidencial limpa). Estava-se, portanto, a entrar, numa espécie de “cenário coreano”. O que teria acontecido ao Vietname do Sul se não tivesse sido entregue ao comunismo do Norte? Nunca saberemos, mas talvez fosse melhor do que a barbárie (essa sim, verdadeira) que se seguiu.
4. Ah, mas os B 52s e o napalm. Existiram e foram horríveis. Mas outra das coisas que se esquece na guerra do Vietname é que só em parte ela foi uma guerra de guerrilha. A guerra do Vietname foi em larga medida uma guerra convencional. O Norte tinha apoio soviético e chinês, que o fornecia do armamento mais sofisticado. Em 1973, no final da guerra, o Vietname do Norte tinha o terceiro maior exército do mundo. Os EUA limitaram a sua ajuda sobretudo a apoio aéreo e certas missões especializadas. Essas acções miltares (por horríveis que possam ter sido) devem entender-se dentro deste contexto. E as acusações de barbárie ao exército americano deviam ser inteiramente devolvidas ao Vietname do Norte. Não só no Vietname do Norte, muito antes da queda de Saigão, já havia notícia de campos de concentração e exceuções sumárias, como o próprio exército do Vietname do Norte perpetrava chacinas sistemáticas nas suas incursões no sul. O massacre de My Lai empalidece perante a colecção de horrores praticados pelos soldados norte-vietnamitas relativamente à população do sul.
5. Já agora, um exercício. Foi horrível o napalm e o carpet bombing. Mas olhemos então para a única guerra na qual todos parecemos estar de acordo: a II Guerra Mundial. Será que Dresden (200.00 mortos numa só noite, sob bombardeamento aliado) e o restante bombardeamento estratégico, as notícias de crimes de guerra perpetrados por soldados aliados perante soldados alemães em Itália, em França, na Alemanha, a coligação com Estaline (um horrível ditador), foram ou não um preço trágico mas justificável a pagar para derrotar o nazismo? Podemos considerar o bombardeamento estratégico um dos maiores horrores militares do século XX. Podemos achar que foi um erro trágico, que custou muitas vidas inocentes. Mas isso muda o sentido essencialmente justo da guerra? Também se poderia criticar o naplam e o carpet bombing sem pôr em causa a justiça última da guerra do Vietname. Não foi isso que Kerry fez, nem é isso que tu fazes.
6. A guerra do Vietname não é uma guerra qualquer. É um símbolo. E a derrota americana simboliza o início de um período de incapacidade americana e ocidental para projectar força no mundo. A derrota americana abriu a porta ao último grande fôlego do comunismo (e respectivos horrores) no mundo. Para além da Ásia, seguiram-se até ao fim da década de 70 todas as antigas colónias portuguesas africanas, a guerra do Afeganistão, a revolução iraniana e uma nova vaga (extremamente violenta) de terrorismo islâmico. Eu sei que existe uma certa tradição de irresponsabilidade perante o passado da esquerda. Cuba? Lá se diz timidamente que, sim senhor, é uma ditadura. Que importa que, no passado, Cuba tenha sido um lugar utópico para a esquerda ocidental? A URSS? Pois, foi “uma experiência” que “correu mal”, que efectivamente trouxe “muita violência”. Que importa que, durante quase todo o século XX, a URSS tenha sempre sido uma referência, mesmo para aquela esquerda que a criticava mais ou menos timidamente? Também Kerry deveria ser confrontado com o seu passado anti-ocidental e promotor do comunismo na Ásia. Por uma questão de coerência política, certamente. Mas sobretudo para que se saiba qual a determinação que pode mostrar, hoje e agora, na preservação dessa mesma sociedade ocidental que já tanto odiou.
7. No fundo, Kerry meteu-se num buraco do qual terá dificuldade em sair. Estivesse ele calado sobre as suas proezas militares (como John McCain o faz, mesmo que tenha estado preso sete anos às mãos do Vietname do Norte) e provavelmente ninguém viria pedir contas. Se calhar, levar-se-ia à conta de devaneios de juventude os seus assomos radicais. Mas decidiu explorar um passado nebuloso e assim fez a cama de pregos, abriu-a e agora nela se terá de deitar. Quis agradar a dois eleitorados: o velho povo de esquerda, que preza o seu passado radical dos anos 60, e o povo de direita que exige uma postura sólida na defesa dos EUA. Por enquanto, a gracinha está-lhe a sair mal.
[Luciano Amaral]

Pedro, lá arranjei algum tempo, entre terminar compromissos profissionais e partir de férias, para uma réplica. É bastante longa. Como aqui o patrão do estabelecimento não providencia um Acidental Rebelo de Sousa, escrevo mesmo no corpo do blog. Entretanto, despeço-me para férias. Vai por pontos, que é mais rápido:
1. Existe, desde logo, na posição de Kerry um problema pessoal. Kerry foi um activista radical contra a guerra do Vietname. Construiu inicialmente (e manteve) a sua carreira política com base nessa posição. Nas declarações ao Senado e nas várias posições que tomou à época não se limitou a registar os crimes de guerra esporádicos que os soldados americanos cometeram. Atribuiu a esses soldados um padrão sistemático de barbárie, afirmando que ele se inseria numa política genérica, em última instância definida pelo próprio governo americano. Por essa via (e por outras) renegou inteiramente qualquer valor (político, estratégico ou outro) à guerra do Vietname. Para ele, essa guerra passou a ser a partir de determinada altura inteiramente injustificada. Explica-me com que cara pode ele vir agora construir uma figura presidenciável na base de um passado que renegou inteiramente. A isso chama-se oportunismo. E muitos eleitores americanos terão percebido isto mesmo. Haverá veteranos do Vietname a reagir a esta postura por más razões. Mas quantos veteranos não estão a reagir por orgulho perante uma pessoa que no passado os acusou de serem quase carniceiros de Auschwitz. Imagina-te como veterano de uma guerra onde desempenhaste o teu serviço dentro do mais estrito cumprimento das leis da guerra. E imagina-te a ver uma pessoa que contruiu uma carreira política bem sucedida na base de te considerar um facínora e que vem agora reclamar-se de um heroísmo que te negou a ti. Ainda por cima tendo apresentado factos que entretanto se provou serem falsos.
2. Depois há o problema da guerra propriamente dita. Muita gente considerou a guerra do Vietname um erro estratégico, inclusivé dentro das administrações Kennedy, Johnson e Nixon (McNamara, por exemplo), pelo menos a partir de certa altura. Fizeram-no considerando que a guerra prestava um mau serviço à estratégia de contenção do comunismo. Kerry não fez parte dessa categoria de pessoas. Kerry criticou a guerra do Vietname na base de uma crítica civilizacional mais alargada ao Ocidente, tal como ele se materializava nos EUA. Para Kerry a existência do comunismo não era um problema – no Vietname, na URSS, na China ou até, talvez, nos próprios EUA. Muito francamente, toda a gente sabia que largar o Vietname correspondia a entregá-lo à violência comunista, a mesma violência que acompanhou o comunismo institucionalizado desde 1917. Se Kerry não o sabia, então é porque era burro. Se sabia, então era porque não se importava.
3. Mas para muita gente não era assim. Talvez o primeiro episódio que mereça ser recordado aqui é o da guerra da Coreia. Uma situação idêntica à do Vietname, com um país dividido entre uma metade apoiada por regimes comunistas e outra por regimes ocidentais. Na Coreia, ao contrário do Vietname, prevaleceu a divisão. Infelizmente para os coreanos, mas felizmente para a política comparativa, a península coreana ainda hoje está dividida nesses dois campos. De um lado temos um regime assassino e louco. Do outro uma próspera democracia que (tendo sido uma ditadura moderada durante bastante tempo) até tem um presidente de esquerda (mais ou menos social-democrata). Quem sabe no Vietname as coisas não se poderiam ter passado assim? Dir-me-ás: sim, Luciano, mas os amigos dos americanos no Vietname do Sul não se recomendavam. Numa guerra tão cheia de lendas, eis outra que foi impressa em detrimento da verdade. Diem não era flor que se cheirasse, não senhor. Mas depois do seu assassinato em 1965, entrou-se, sob patrocínio americano, num processo constitucional (com eleições e uma assembleia constitutinte e uma eleição presidencial limpa). Estava-se, portanto, a entrar, numa espécie de “cenário coreano”. O que teria acontecido ao Vietname do Sul se não tivesse sido entregue ao comunismo do Norte? Nunca saberemos, mas talvez fosse melhor do que a barbárie (essa sim, verdadeira) que se seguiu.
4. Ah, mas os B 52s e o napalm. Existiram e foram horríveis. Mas outra das coisas que se esquece na guerra do Vietname é que só em parte ela foi uma guerra de guerrilha. A guerra do Vietname foi em larga medida uma guerra convencional. O Norte tinha apoio soviético e chinês, que o fornecia do armamento mais sofisticado. Em 1973, no final da guerra, o Vietname do Norte tinha o terceiro maior exército do mundo. Os EUA limitaram a sua ajuda sobretudo a apoio aéreo e certas missões especializadas. Essas acções miltares (por horríveis que possam ter sido) devem entender-se dentro deste contexto. E as acusações de barbárie ao exército americano deviam ser inteiramente devolvidas ao Vietname do Norte. Não só no Vietname do Norte, muito antes da queda de Saigão, já havia notícia de campos de concentração e exceuções sumárias, como o próprio exército do Vietname do Norte perpetrava chacinas sistemáticas nas suas incursões no sul. O massacre de My Lai empalidece perante a colecção de horrores praticados pelos soldados norte-vietnamitas relativamente à população do sul.
5. Já agora, um exercício. Foi horrível o napalm e o carpet bombing. Mas olhemos então para a única guerra na qual todos parecemos estar de acordo: a II Guerra Mundial. Será que Dresden (200.00 mortos numa só noite, sob bombardeamento aliado) e o restante bombardeamento estratégico, as notícias de crimes de guerra perpetrados por soldados aliados perante soldados alemães em Itália, em França, na Alemanha, a coligação com Estaline (um horrível ditador), foram ou não um preço trágico mas justificável a pagar para derrotar o nazismo? Podemos considerar o bombardeamento estratégico um dos maiores horrores militares do século XX. Podemos achar que foi um erro trágico, que custou muitas vidas inocentes. Mas isso muda o sentido essencialmente justo da guerra? Também se poderia criticar o naplam e o carpet bombing sem pôr em causa a justiça última da guerra do Vietname. Não foi isso que Kerry fez, nem é isso que tu fazes.
6. A guerra do Vietname não é uma guerra qualquer. É um símbolo. E a derrota americana simboliza o início de um período de incapacidade americana e ocidental para projectar força no mundo. A derrota americana abriu a porta ao último grande fôlego do comunismo (e respectivos horrores) no mundo. Para além da Ásia, seguiram-se até ao fim da década de 70 todas as antigas colónias portuguesas africanas, a guerra do Afeganistão, a revolução iraniana e uma nova vaga (extremamente violenta) de terrorismo islâmico. Eu sei que existe uma certa tradição de irresponsabilidade perante o passado da esquerda. Cuba? Lá se diz timidamente que, sim senhor, é uma ditadura. Que importa que, no passado, Cuba tenha sido um lugar utópico para a esquerda ocidental? A URSS? Pois, foi “uma experiência” que “correu mal”, que efectivamente trouxe “muita violência”. Que importa que, durante quase todo o século XX, a URSS tenha sempre sido uma referência, mesmo para aquela esquerda que a criticava mais ou menos timidamente? Também Kerry deveria ser confrontado com o seu passado anti-ocidental e promotor do comunismo na Ásia. Por uma questão de coerência política, certamente. Mas sobretudo para que se saiba qual a determinação que pode mostrar, hoje e agora, na preservação dessa mesma sociedade ocidental que já tanto odiou.
7. No fundo, Kerry meteu-se num buraco do qual terá dificuldade em sair. Estivesse ele calado sobre as suas proezas militares (como John McCain o faz, mesmo que tenha estado preso sete anos às mãos do Vietname do Norte) e provavelmente ninguém viria pedir contas. Se calhar, levar-se-ia à conta de devaneios de juventude os seus assomos radicais. Mas decidiu explorar um passado nebuloso e assim fez a cama de pregos, abriu-a e agora nela se terá de deitar. Quis agradar a dois eleitorados: o velho povo de esquerda, que preza o seu passado radical dos anos 60, e o povo de direita que exige uma postura sólida na defesa dos EUA. Por enquanto, a gracinha está-lhe a sair mal.
[Luciano Amaral]

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