O Acidental: Somewhere Over the Rainbow

22-01-2012
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Pode ler-se hoje no Público on-line que José Barroso (o presidente da Comissão Europeia) não acredita que a Europa se possa transformar no "espaço económico mais competitivo do mundo em 2010", embora essa tenha sido a aposta da famosa cimeira de Lisboa de 2000. É sempre reconfortante sentir a chegada de um certo realismo ao topo de uma organização habitualmente tão dada ao delírio como é a União Europeia. Mas cabe perguntar se José Barroso terá efectivamente percebido o que está em causa, já que (para já) a única coisa que lhe ocorre sugerir a este respeito é que se "altere a data". Em tempos, durante a minha brevíssima experiência enquanto colunista do jornal O Independente , expendi a vasta sabedoria que possuo sobre o assunto num pequeno artigo. Como me parece que vem a propósito, reproduzo-o abaixo:
Estranha forma de vida É muito acarinhada na fantasmagoria europeia uma determinada linguagem de tipo tarológico. Nessa linguagem, os “grandes” eventos da UE são remetidos para certas capitais provinciais do continente: Laeken, Nice, Maastricht, Bruxelas, Lisboa, para nomear apenas algumas. A cada uma é feita corresponder (no jargão do clube) uma “agenda” ou “estratégia”, cujo efectivo conteúdo normalmente escapa ao comum dos terráqueos. Por exemplo, a famosa “agenda de Lisboa”, da cimeira de 2000, propunha transformar a UE no “espaço económico mais competitivo do mundo” já em 2010 (ui, que medo…). Para espanto geral, a Comissão Europeia veio agora verberar o atraso generalizado na “implementação” da dita “estratégia”. Tal como aqueles artistas de circo que dobram colheres com o poder da mente, também a UE acredita que dobra a realidade por decreto. Convém, porém, lembrar o continente em que vivemos: este é o continente onde cerca de metade da riqueza é aspirada em impostos para depois ser regurgitada enquanto despesa pública, onde mais de metade da população depende directamente do Estado, seja pelas pensões de reforma, os subsídios de desemprego ou o emprego em empresas públicas e na função pública (desculpe, disse pública?), o continente onde às mais excêntricas actividades vai sempre adstrito um pequeno subsídio, onde nem um só trabalhador está disposto a largar uma profissão obsoleta e reciclar-se numa nova, onde há vinte anos a taxa de desemprego não baixa dos 10%, onde qualquer empresa nova tem de defrontar uma muralha de interesses instalados, quase sempre em prazenteiro conluio com governos e partidos. Isto para nos ficarmos por uma listagem sumária e meramente ilustrativa.
Enfrentar tamanha embrulhada requer mais do que rabiscar uns desejos no papel, com o estuário do Tejo enquanto cenário. Requer coragem política, uma mercadoria escassa na Europa de hoje. E Lisboa, a consabida capital planetária da competitividade, arrisca-se a ficar como o justo símbolo da decadência europeia. Para citar uma bela canção dessa bela cidade: tudo isto existe, tudo isto é triste, tudo isto é fado. [Luciano Amaral]

Pode ler-se hoje no Público on-line que José Barroso (o presidente da Comissão Europeia) não acredita que a Europa se possa transformar no "espaço económico mais competitivo do mundo em 2010", embora essa tenha sido a aposta da famosa cimeira de Lisboa de 2000. É sempre reconfortante sentir a chegada de um certo realismo ao topo de uma organização habitualmente tão dada ao delírio como é a União Europeia. Mas cabe perguntar se José Barroso terá efectivamente percebido o que está em causa, já que (para já) a única coisa que lhe ocorre sugerir a este respeito é que se "altere a data". Em tempos, durante a minha brevíssima experiência enquanto colunista do jornal O Independente , expendi a vasta sabedoria que possuo sobre o assunto num pequeno artigo. Como me parece que vem a propósito, reproduzo-o abaixo:
Estranha forma de vida É muito acarinhada na fantasmagoria europeia uma determinada linguagem de tipo tarológico. Nessa linguagem, os “grandes” eventos da UE são remetidos para certas capitais provinciais do continente: Laeken, Nice, Maastricht, Bruxelas, Lisboa, para nomear apenas algumas. A cada uma é feita corresponder (no jargão do clube) uma “agenda” ou “estratégia”, cujo efectivo conteúdo normalmente escapa ao comum dos terráqueos. Por exemplo, a famosa “agenda de Lisboa”, da cimeira de 2000, propunha transformar a UE no “espaço económico mais competitivo do mundo” já em 2010 (ui, que medo…). Para espanto geral, a Comissão Europeia veio agora verberar o atraso generalizado na “implementação” da dita “estratégia”. Tal como aqueles artistas de circo que dobram colheres com o poder da mente, também a UE acredita que dobra a realidade por decreto. Convém, porém, lembrar o continente em que vivemos: este é o continente onde cerca de metade da riqueza é aspirada em impostos para depois ser regurgitada enquanto despesa pública, onde mais de metade da população depende directamente do Estado, seja pelas pensões de reforma, os subsídios de desemprego ou o emprego em empresas públicas e na função pública (desculpe, disse pública?), o continente onde às mais excêntricas actividades vai sempre adstrito um pequeno subsídio, onde nem um só trabalhador está disposto a largar uma profissão obsoleta e reciclar-se numa nova, onde há vinte anos a taxa de desemprego não baixa dos 10%, onde qualquer empresa nova tem de defrontar uma muralha de interesses instalados, quase sempre em prazenteiro conluio com governos e partidos. Isto para nos ficarmos por uma listagem sumária e meramente ilustrativa.
Enfrentar tamanha embrulhada requer mais do que rabiscar uns desejos no papel, com o estuário do Tejo enquanto cenário. Requer coragem política, uma mercadoria escassa na Europa de hoje. E Lisboa, a consabida capital planetária da competitividade, arrisca-se a ficar como o justo símbolo da decadência europeia. Para citar uma bela canção dessa bela cidade: tudo isto existe, tudo isto é triste, tudo isto é fado. [Luciano Amaral]

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