O Acidental: Fachadas, miolos e traves

03-07-2011
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Da fachada,Gastar duzentos mil contos para salvar uma casa onde Garrett passou escassos meses e morreu? Onde só sobra a fachada? Onde não existe espólio nem absolutamente nada que testemunhe a sua presença por ali? Que ninguém quis pegar? Caramba! O Adolfo arrumou o assunto. Mesmo que puxe agora ao sentimento, tenho bem a noção que os meus sentimentos são fachada que não vale tanto dinheiro. Se fosse cínico diria que os duzentos mil contos seriam melhor empregues em outdoors com erros ortográficos ou em telas anunciando que “Lisboa está mais bonita”. Não o farei. Concedo. Sobra uma fachada de uma casa que ninguém quis. Para poupar tempo e trabalho, vou directo ao assunto. Falemos pois sobre fachadas. A obra que para ali se projecta é um pequeno empreendimento com cinco andares que duplicará o actual índice de contrução. Numa zona da cidade que tem estado particularmente sensível à especulação imobiliária, sem que tenha tido as respectivas melhorias em matéria de infraestruturas, é papel do Estado evitar a descaracterização urbanística preservando a qualidade de vida dos residentes. Até porque, a médio prazo, o aumento descontrolado do preço por metro quadrado provoca a desertificação dos centros da cidade. Coloquemos como hipótese que a causa da requalificação urbana vale, pelo menos, duzentos mil contos no orçamento. Que vale. Admitindo esse simples princípio, apenas por uma questão de fachada até podíamos defender a preservação da casa inteira. Ai! Peço desculpa pela minha parvoíce. Que estupidez esta de dar valor monetário a ideias ou causas. Retiro o meu último comentário. A casa só tem fachada. Não tem miolo. Falemos pois sobre miolos. Do miolo,O Partido Socialista borrifou para a casa Almeida Garrett. Um ministro socialista comprou a casa ao banco. Um ministro socialista quer deitar um símbolo cultural abaixo para construir um condomínio. Vários socialistas pronunciam-se e obram contra a demolição da casa. Um “intelectual” socialista candidata-se à Câmara de Lisboa. O intelectual socialista não fala sobre a casa Almeida Garrett. A Câmara Municipal de Lisboa é gerida por uma coligação de centro-direita. E enquanto a esquerda discute entre si a importância dos símbolos nacionais, a Câmara de Lisboa nada faz e a “intelectualidade” do centro-direita diz que a fachada não vale duzentos mil contos. Sim. Concedo, é uma questão de falta de miolo. Vamos lá outra vez. Coloquemos como hipótese que a sensibilidade dos eleitores em relação ao espaço centro-direita vale pelo menos cem mil contos – e todos nós sabemos que se gasta muito mais nisso. Ficava metade da casa paga. Se o “valor da casa é o da memória de Almeida Garrett” isso quanto é que dá? Cinquenta mil, oitenta mil? Bem negociado, outros cem mil?Mas que parvoíce a minha. Estar a dar preços à memória das coisas! Garrett tem o nome na rua, em sala de teatro, em biblioteca municipal e numa casa museu. Serve o meu propósito, mas digo-te honestamente que nem me lembrava de tais evocações. À excepção da rua, é claro. Mas mesmo em relação à viela que me alimenta os vícios, perguntar-te-ei por São João Nepumoceno, placa toponímica colocada no prédio onde cresci. Saberás quem foi? Onde nasceu? Que obra deixou? Fraco consolo para um homem que, ao contrário do nosso romancista, até foi santo.A casa não tem miolo, nem tem traves. Falemos pois sobre traves. Das traves,Sobre traves, dou três para o pensamento actual: os estados morreram, as nações morreram e as línguas, quando não são úteis, também morrem. Se eu hoje para ganhar a vida tenho de saber falar inglês, o mesmo princípio aplica-se a um moçambicano. São miudezas que os nossos vizinhos do lado há muito que já perceberam. Por isso gastam milhões a ensinar marroquinos, brasileiros, americanos e franceses a falar castelhano. Por isso gastam outros milhões a preservar fachadas e a colocar estatuetas em todas as ruas por onde Cervantes terá ou não passado. E estamos a falar sobre a direita espanhola. Um desperdício de massa. Mas se não consigo convencer ninguém da importância estratégica, social, política e económica da língua, utilizo o argumento inverso e digo apenas que a História está cheia de línguas mortas. Certa está a nossa direita que deixou a esquerda roubar-lhe o monopólio da cultura para financiar programas da Bárbara Guimarães e empreendimentos para ministros. Certa está a nossa direita, que em vez de tentar combater esse preconceito ideológico, optou por ser reaccionária. Doutrinariamente, a língua é muito à frente. Bastante mais à frente que a maior parte dos nossos políticos. Falemos sobre a gestão de espaços culturais. Falemos sobre a falta de políticas culturais. Sou conservador, sou daqueles que não acreditam numa orquestra sinfónica por concelho, num museu por junta de freguesia e numa biblioteca por lugarejo. Mas a má gestão da segurança social não me faz “adversário” da segurança social. Porque razão haveria de ser “adversário” da aquisição da casa Almeida Garrett? Que os socialistas comprem a casa! Depois, quando e se voltarmos ao poder, podemos tornar esse instrumento útil às nossas causas em vez de andarmos a discutir o défice. Mais assustador que a descaracterização urbanística, só mesmo a descaracterização ideológica. [Rodrigo Moita de Deus]

Da fachada,Gastar duzentos mil contos para salvar uma casa onde Garrett passou escassos meses e morreu? Onde só sobra a fachada? Onde não existe espólio nem absolutamente nada que testemunhe a sua presença por ali? Que ninguém quis pegar? Caramba! O Adolfo arrumou o assunto. Mesmo que puxe agora ao sentimento, tenho bem a noção que os meus sentimentos são fachada que não vale tanto dinheiro. Se fosse cínico diria que os duzentos mil contos seriam melhor empregues em outdoors com erros ortográficos ou em telas anunciando que “Lisboa está mais bonita”. Não o farei. Concedo. Sobra uma fachada de uma casa que ninguém quis. Para poupar tempo e trabalho, vou directo ao assunto. Falemos pois sobre fachadas. A obra que para ali se projecta é um pequeno empreendimento com cinco andares que duplicará o actual índice de contrução. Numa zona da cidade que tem estado particularmente sensível à especulação imobiliária, sem que tenha tido as respectivas melhorias em matéria de infraestruturas, é papel do Estado evitar a descaracterização urbanística preservando a qualidade de vida dos residentes. Até porque, a médio prazo, o aumento descontrolado do preço por metro quadrado provoca a desertificação dos centros da cidade. Coloquemos como hipótese que a causa da requalificação urbana vale, pelo menos, duzentos mil contos no orçamento. Que vale. Admitindo esse simples princípio, apenas por uma questão de fachada até podíamos defender a preservação da casa inteira. Ai! Peço desculpa pela minha parvoíce. Que estupidez esta de dar valor monetário a ideias ou causas. Retiro o meu último comentário. A casa só tem fachada. Não tem miolo. Falemos pois sobre miolos. Do miolo,O Partido Socialista borrifou para a casa Almeida Garrett. Um ministro socialista comprou a casa ao banco. Um ministro socialista quer deitar um símbolo cultural abaixo para construir um condomínio. Vários socialistas pronunciam-se e obram contra a demolição da casa. Um “intelectual” socialista candidata-se à Câmara de Lisboa. O intelectual socialista não fala sobre a casa Almeida Garrett. A Câmara Municipal de Lisboa é gerida por uma coligação de centro-direita. E enquanto a esquerda discute entre si a importância dos símbolos nacionais, a Câmara de Lisboa nada faz e a “intelectualidade” do centro-direita diz que a fachada não vale duzentos mil contos. Sim. Concedo, é uma questão de falta de miolo. Vamos lá outra vez. Coloquemos como hipótese que a sensibilidade dos eleitores em relação ao espaço centro-direita vale pelo menos cem mil contos – e todos nós sabemos que se gasta muito mais nisso. Ficava metade da casa paga. Se o “valor da casa é o da memória de Almeida Garrett” isso quanto é que dá? Cinquenta mil, oitenta mil? Bem negociado, outros cem mil?Mas que parvoíce a minha. Estar a dar preços à memória das coisas! Garrett tem o nome na rua, em sala de teatro, em biblioteca municipal e numa casa museu. Serve o meu propósito, mas digo-te honestamente que nem me lembrava de tais evocações. À excepção da rua, é claro. Mas mesmo em relação à viela que me alimenta os vícios, perguntar-te-ei por São João Nepumoceno, placa toponímica colocada no prédio onde cresci. Saberás quem foi? Onde nasceu? Que obra deixou? Fraco consolo para um homem que, ao contrário do nosso romancista, até foi santo.A casa não tem miolo, nem tem traves. Falemos pois sobre traves. Das traves,Sobre traves, dou três para o pensamento actual: os estados morreram, as nações morreram e as línguas, quando não são úteis, também morrem. Se eu hoje para ganhar a vida tenho de saber falar inglês, o mesmo princípio aplica-se a um moçambicano. São miudezas que os nossos vizinhos do lado há muito que já perceberam. Por isso gastam milhões a ensinar marroquinos, brasileiros, americanos e franceses a falar castelhano. Por isso gastam outros milhões a preservar fachadas e a colocar estatuetas em todas as ruas por onde Cervantes terá ou não passado. E estamos a falar sobre a direita espanhola. Um desperdício de massa. Mas se não consigo convencer ninguém da importância estratégica, social, política e económica da língua, utilizo o argumento inverso e digo apenas que a História está cheia de línguas mortas. Certa está a nossa direita que deixou a esquerda roubar-lhe o monopólio da cultura para financiar programas da Bárbara Guimarães e empreendimentos para ministros. Certa está a nossa direita, que em vez de tentar combater esse preconceito ideológico, optou por ser reaccionária. Doutrinariamente, a língua é muito à frente. Bastante mais à frente que a maior parte dos nossos políticos. Falemos sobre a gestão de espaços culturais. Falemos sobre a falta de políticas culturais. Sou conservador, sou daqueles que não acreditam numa orquestra sinfónica por concelho, num museu por junta de freguesia e numa biblioteca por lugarejo. Mas a má gestão da segurança social não me faz “adversário” da segurança social. Porque razão haveria de ser “adversário” da aquisição da casa Almeida Garrett? Que os socialistas comprem a casa! Depois, quando e se voltarmos ao poder, podemos tornar esse instrumento útil às nossas causas em vez de andarmos a discutir o défice. Mais assustador que a descaracterização urbanística, só mesmo a descaracterização ideológica. [Rodrigo Moita de Deus]

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