O Acidental: Política e Arte. Arquitectura e Sexo

01-07-2011
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Caro Morgado Louro,1. V. toca num ponto essencial: a ligação entre Política e Talento para escrever. Que é perigosa. 2. Escrever sobre Política é uma coisa. Escrever sobre o pré-político (sociedade, cultura, arte) é outra coisa bem diferente. Se acha que tenho talento, então, tenho de lhe dizer que o talento é o mesmo. Tem é várias faces. Não posso usar o mesmo tom ou "talento" para escrever sobre cinema e política. São dois campos diferentes. O "talento" tem de ser diferente. Recusar esta diferença significa não perceber nada dos dois campos. 3. Quando se escreve sobre Política, é preciso aprender a fazer uma coisa: moderar o tal “talento” de que V. fala, isto é, é preciso moderar a retórica, a graça, a ironia, enfim, o estilo, a forma. É preciso um auto-sacrifício. Todo o escritor vê-se naquilo que não escreveu. Isso é ainda mais evidente quando se escreve sobre Política. Quando apresento 10 páginas sobre algo político, é sinal de que escrevi 30. As 10 páginas são o fruto de sucessivos cortes. E esses cortes são feitos sobre as frases pelas quais sinto mais atracção formal, digamos assim. As metáforas e os excessos demiúrgicos. Quando se aplica o tal “talento” de que V. fala à Política, o resultado é uma coisa exaltante e, por isso, perigosa. E sem coerência.Escrever sobre livros, sobre filmes, sobre música (no pré-político) dá-nos a liberdade que não podemos ter em política. Política exige moderação, sensatez. Exige um talento invisível que se esconde a cada linha. É preciso humildade perante a realidade. Ao invés, quando se escreve sobre arte, podemos soltar as amarras. Podemos transformar as coisas. Por vezes, o único critério é o estético. Na Política, não é assim. Em política, o critério estético é o último de uma extensa lista. 4. A exaltação estética aplicada à política deve ficar guardada para momentos de crise. Para alturas de guerra, revolução, etc. Momentos em que temos de fazer tudo para defender a nossa posição. Felizmente, não vivemos tempos de ruptura ou de pólvora. Se chegarmos a viver um momento desses, então, V. ver-me-á a escrever de política com a mesma paixão assolapada que agora uso para escrever sobre filmes. Mas só aí. Em tempos de paz, não se deve transformar a política numa questão de estilo ou de paixão. 5. Cá em casa, Nietzsche é sagrado. E, por ser sagrado, é privado. Logo, posso usá-lo numa avaliação de um filme, de um romance, de um quadro. Nunca usarei Nietzsche numa questão pública. Isso é loucura. Isso é transformar os outros em meros ouvidos da minha posição. Nietzsche serve para a Arte. Posso ser Nietzscheano quando escrevo sobre o Clint Eastwood. Não o posso ser quando escrevo sobre Bush. 6. Escrever sobre política é como fazer arquitectura. É preciso pensar o texto de uma ponta a outra. É preciso estar atento à coerência interna. Porque se não existir essa coerência, o edifício cairá. A lei da gravidade é mesmo assim: selecciona os mais coerentes. A política é uma máquina. Com princípio, meio e fim.A Arte é um organismo. Escrever sobre arte é como fazer amor. Não interessa a coerência mecânica. Não se pensa. Faz-se. Organicamente. É a sedução embriagante. É um caos de humidades. É a febre. Sem o princípio. Sem o fim. Só com o meio. Se o mundo fosse perfeito, só faria amor. Mas como não é, tenho de ser arquitecto durante o dia para que haja algum tempo para o amor durante a noite.Muito obrigado pela conversa e um abraço,[Henrique Raposo]

Caro Morgado Louro,1. V. toca num ponto essencial: a ligação entre Política e Talento para escrever. Que é perigosa. 2. Escrever sobre Política é uma coisa. Escrever sobre o pré-político (sociedade, cultura, arte) é outra coisa bem diferente. Se acha que tenho talento, então, tenho de lhe dizer que o talento é o mesmo. Tem é várias faces. Não posso usar o mesmo tom ou "talento" para escrever sobre cinema e política. São dois campos diferentes. O "talento" tem de ser diferente. Recusar esta diferença significa não perceber nada dos dois campos. 3. Quando se escreve sobre Política, é preciso aprender a fazer uma coisa: moderar o tal “talento” de que V. fala, isto é, é preciso moderar a retórica, a graça, a ironia, enfim, o estilo, a forma. É preciso um auto-sacrifício. Todo o escritor vê-se naquilo que não escreveu. Isso é ainda mais evidente quando se escreve sobre Política. Quando apresento 10 páginas sobre algo político, é sinal de que escrevi 30. As 10 páginas são o fruto de sucessivos cortes. E esses cortes são feitos sobre as frases pelas quais sinto mais atracção formal, digamos assim. As metáforas e os excessos demiúrgicos. Quando se aplica o tal “talento” de que V. fala à Política, o resultado é uma coisa exaltante e, por isso, perigosa. E sem coerência.Escrever sobre livros, sobre filmes, sobre música (no pré-político) dá-nos a liberdade que não podemos ter em política. Política exige moderação, sensatez. Exige um talento invisível que se esconde a cada linha. É preciso humildade perante a realidade. Ao invés, quando se escreve sobre arte, podemos soltar as amarras. Podemos transformar as coisas. Por vezes, o único critério é o estético. Na Política, não é assim. Em política, o critério estético é o último de uma extensa lista. 4. A exaltação estética aplicada à política deve ficar guardada para momentos de crise. Para alturas de guerra, revolução, etc. Momentos em que temos de fazer tudo para defender a nossa posição. Felizmente, não vivemos tempos de ruptura ou de pólvora. Se chegarmos a viver um momento desses, então, V. ver-me-á a escrever de política com a mesma paixão assolapada que agora uso para escrever sobre filmes. Mas só aí. Em tempos de paz, não se deve transformar a política numa questão de estilo ou de paixão. 5. Cá em casa, Nietzsche é sagrado. E, por ser sagrado, é privado. Logo, posso usá-lo numa avaliação de um filme, de um romance, de um quadro. Nunca usarei Nietzsche numa questão pública. Isso é loucura. Isso é transformar os outros em meros ouvidos da minha posição. Nietzsche serve para a Arte. Posso ser Nietzscheano quando escrevo sobre o Clint Eastwood. Não o posso ser quando escrevo sobre Bush. 6. Escrever sobre política é como fazer arquitectura. É preciso pensar o texto de uma ponta a outra. É preciso estar atento à coerência interna. Porque se não existir essa coerência, o edifício cairá. A lei da gravidade é mesmo assim: selecciona os mais coerentes. A política é uma máquina. Com princípio, meio e fim.A Arte é um organismo. Escrever sobre arte é como fazer amor. Não interessa a coerência mecânica. Não se pensa. Faz-se. Organicamente. É a sedução embriagante. É um caos de humidades. É a febre. Sem o princípio. Sem o fim. Só com o meio. Se o mundo fosse perfeito, só faria amor. Mas como não é, tenho de ser arquitecto durante o dia para que haja algum tempo para o amor durante a noite.Muito obrigado pela conversa e um abraço,[Henrique Raposo]

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