O Acidental: O 38 e as meninas do Piaget: “Mamadu não é um tretas”.

25-01-2012
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Hoje, o 38 estava caótico. Vejam se me entendem: o 38 é sempre caótico, mas hoje estava particularmente caótico. Parecia um pedacinho de Colômbia a cirandar de um lado para o outro em Lisboa. E por isso mesmo é tão divertido, tão representativo. Neste caos movido a gasóleo, encontramos Portugal. O 38 é a nossa síntese: da senhora da frutaria até à futura psicóloga formada no Piaget, estão lá todos. E, aliás, as meninas do Piaget são mesmo… representativas. Ao lado de uma senhora que erguia bem alto a sua couve, e por cima de um tipo que preparava, sem qualquer pudor, um daqueles “filtros” para actividades ilícitas, uma menina do Piaget lia. Em pé. Estava rodeada de um mar de gente. Mas lia. Qual é o problema? Aquele teatro literário dependia de uma coisa: os seus cotovelos tinham de estar levantados. E adivinhem onde é que estavam os cotovelos? Nas minhas costas, é claro. Não protestei contra tamanho acto de afectação. Em nome da cultura, é claro. Mas, de repente, o drama avoluma-se. A menina do cotovelo pedante começa a falar com outra menina do Piaget. Eram colegas. De carteira. Começam a falar. Às tantas, a nova rapariga lamenta-se:- Isso da astrologia, das cartas, da sina é uma treta. É religião indolor que não exige sacrifício. Fiquei maravilhado. Aquela lucidez, emitida num pedaço de Colômbia, parecia-me Kant com voz de Shakira.- Também acho. Aquelas tipas que fazem isso na TV são umas tretas – Esta foi a óbvia resposta da menina do cotovelo (para meu espanto, continuava de cotovelo em riste. Já não lia, mas o cotovelo continuava nas minhas costas. Será uma espécie de esclerose de pedantes?) A selva do 38 permanecia impávida. Não ligava à conversa matinal das meninas do Piaget. O miúdo do filtro, já queimava qualquer coisa. A senhora da couve já fazia o caldo verde. Tudo na paz do Senhor. Até que, do nada, surge um “passarinho amarelo” (isto é uma ode ao maior escritor de língua portuguesa depois de Pessoa: Nelson Rodrigues. Viva a prosa brasileira). Após os três “pius” da praxe, o dito-cujo amarelo poisou no ombro da senhora do caldo verde e perguntou às meninas: - Então, e o Professor Mamadu? Também é um tretas? Resposta unânime, inequívoca, como se fosse o “óbvio ululante”:- Claro que não. É membro de outra cultura que deve ser respeitada.O passarinho amarelo ouviu e calou. Antes de voar pela janela, pousou no meu ombro e disse:- Pá, um tretas que se chame Jorge António é mesmo um tretas. Um tretas que tenha a sorte de se chamar Mamadu não é bem um tretas. É uma especificidade cultural. E voou. Tenho saudades dos “passarinhos amarelos”.[Henrique Raposo]

Hoje, o 38 estava caótico. Vejam se me entendem: o 38 é sempre caótico, mas hoje estava particularmente caótico. Parecia um pedacinho de Colômbia a cirandar de um lado para o outro em Lisboa. E por isso mesmo é tão divertido, tão representativo. Neste caos movido a gasóleo, encontramos Portugal. O 38 é a nossa síntese: da senhora da frutaria até à futura psicóloga formada no Piaget, estão lá todos. E, aliás, as meninas do Piaget são mesmo… representativas. Ao lado de uma senhora que erguia bem alto a sua couve, e por cima de um tipo que preparava, sem qualquer pudor, um daqueles “filtros” para actividades ilícitas, uma menina do Piaget lia. Em pé. Estava rodeada de um mar de gente. Mas lia. Qual é o problema? Aquele teatro literário dependia de uma coisa: os seus cotovelos tinham de estar levantados. E adivinhem onde é que estavam os cotovelos? Nas minhas costas, é claro. Não protestei contra tamanho acto de afectação. Em nome da cultura, é claro. Mas, de repente, o drama avoluma-se. A menina do cotovelo pedante começa a falar com outra menina do Piaget. Eram colegas. De carteira. Começam a falar. Às tantas, a nova rapariga lamenta-se:- Isso da astrologia, das cartas, da sina é uma treta. É religião indolor que não exige sacrifício. Fiquei maravilhado. Aquela lucidez, emitida num pedaço de Colômbia, parecia-me Kant com voz de Shakira.- Também acho. Aquelas tipas que fazem isso na TV são umas tretas – Esta foi a óbvia resposta da menina do cotovelo (para meu espanto, continuava de cotovelo em riste. Já não lia, mas o cotovelo continuava nas minhas costas. Será uma espécie de esclerose de pedantes?) A selva do 38 permanecia impávida. Não ligava à conversa matinal das meninas do Piaget. O miúdo do filtro, já queimava qualquer coisa. A senhora da couve já fazia o caldo verde. Tudo na paz do Senhor. Até que, do nada, surge um “passarinho amarelo” (isto é uma ode ao maior escritor de língua portuguesa depois de Pessoa: Nelson Rodrigues. Viva a prosa brasileira). Após os três “pius” da praxe, o dito-cujo amarelo poisou no ombro da senhora do caldo verde e perguntou às meninas: - Então, e o Professor Mamadu? Também é um tretas? Resposta unânime, inequívoca, como se fosse o “óbvio ululante”:- Claro que não. É membro de outra cultura que deve ser respeitada.O passarinho amarelo ouviu e calou. Antes de voar pela janela, pousou no meu ombro e disse:- Pá, um tretas que se chame Jorge António é mesmo um tretas. Um tretas que tenha a sorte de se chamar Mamadu não é bem um tretas. É uma especificidade cultural. E voou. Tenho saudades dos “passarinhos amarelos”.[Henrique Raposo]

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