O Acidental: Peter Pan

24-01-2012
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Não sabia, mas fiquei a saber através do DN, num atempado artigo de Eurico de Barros: faz hoje 100 anos que a peça Peter Pan, de J.M. Barrie, estreou em Londres. Muito ocupado a ler o último amontoado de letras assinado por um qualquer escritor em moda (da lésbica nigeriana ao comunista português), o intelectual ocidental não tem tempo para livros infantis. E, no entanto, as melhores histórias infantis deveriam contar-se entre a leitura obrigatória de qualquer adulto civilizado: para mencionar só algumas, Alice no País das Maravilhas, os Contos de Hans Christian Andersen, Pinóquio, Cuore ou, claro, Peter Pan. Lidos com 30 ou 40 anos de idade e não apenas com 3 ou 4. A boa literatura infantil é a única que na época contemporânea mantém características que o resto dos géneros (excepção feita a alguns escritores) foi perdendo: a dimensão trágica, no sentido grego (antigo) do termo. Sobre a tragédia, dizia Nietzsche que ela era a única tradição intelectual assente numa moral vital que o Ocidente teria criado, por oposição ao idealismo e racionalismo socráticos e platónicos (e, logo, cristãos), inevitavelmente decadentistas e suicidários. Só a tragédia assentaria numa moral que estaria para além do Bem e do Mal. Nietzsche nunca disse que não existiam Bem e Mal. Sempre disse que existiam, faziam parte da vida, mas que esta só era possível incluindo-os aos dois e superando-os.
Toda a gente gosta de Peter Pan: as crianças divertem-se. Os adultos também. Até ao dia em que começam a pensar naquilo. A pensar na tragédia de Peter Pan, encerrado na sua perpétua infantilidade, desconhecedor da felicidade (porque desconhecedor da infelicidade), eternamente (e infrutiferamente) em busca de uma mãe (que nunca teve); na tragédia de Wendy e Jane, encerradas num corpo e numa imaginação que vão envelhecendo, contactando com Peter uma única vez e viajando até à Terra do Nunca, para jamais lá voltarem. Na tragédia resultante da impossibilidade de coexistência comunicante destes dois mundos.
Tragédia não é melodrama. O meodrama é desgraças e choradinho. A tragédia representa antes o carácter irremediável e absoluto da vida. Para além do Bem e do Mal. Exactamente como Peter Pan.
[Luciano Amaral]

Não sabia, mas fiquei a saber através do DN, num atempado artigo de Eurico de Barros: faz hoje 100 anos que a peça Peter Pan, de J.M. Barrie, estreou em Londres. Muito ocupado a ler o último amontoado de letras assinado por um qualquer escritor em moda (da lésbica nigeriana ao comunista português), o intelectual ocidental não tem tempo para livros infantis. E, no entanto, as melhores histórias infantis deveriam contar-se entre a leitura obrigatória de qualquer adulto civilizado: para mencionar só algumas, Alice no País das Maravilhas, os Contos de Hans Christian Andersen, Pinóquio, Cuore ou, claro, Peter Pan. Lidos com 30 ou 40 anos de idade e não apenas com 3 ou 4. A boa literatura infantil é a única que na época contemporânea mantém características que o resto dos géneros (excepção feita a alguns escritores) foi perdendo: a dimensão trágica, no sentido grego (antigo) do termo. Sobre a tragédia, dizia Nietzsche que ela era a única tradição intelectual assente numa moral vital que o Ocidente teria criado, por oposição ao idealismo e racionalismo socráticos e platónicos (e, logo, cristãos), inevitavelmente decadentistas e suicidários. Só a tragédia assentaria numa moral que estaria para além do Bem e do Mal. Nietzsche nunca disse que não existiam Bem e Mal. Sempre disse que existiam, faziam parte da vida, mas que esta só era possível incluindo-os aos dois e superando-os.
Toda a gente gosta de Peter Pan: as crianças divertem-se. Os adultos também. Até ao dia em que começam a pensar naquilo. A pensar na tragédia de Peter Pan, encerrado na sua perpétua infantilidade, desconhecedor da felicidade (porque desconhecedor da infelicidade), eternamente (e infrutiferamente) em busca de uma mãe (que nunca teve); na tragédia de Wendy e Jane, encerradas num corpo e numa imaginação que vão envelhecendo, contactando com Peter uma única vez e viajando até à Terra do Nunca, para jamais lá voltarem. Na tragédia resultante da impossibilidade de coexistência comunicante destes dois mundos.
Tragédia não é melodrama. O meodrama é desgraças e choradinho. A tragédia representa antes o carácter irremediável e absoluto da vida. Para além do Bem e do Mal. Exactamente como Peter Pan.
[Luciano Amaral]

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