O Informador

08-11-2013
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Ontem foi lançada a biografia de António Guterres. A obra foi escrita pelo meu amigo Adelino Cunha. Além de jornalista, ele é historiador e professor universitário. E uma das melhores “cabeças políticas” que conheço. Nos últimos dias tenho visto vários artigos mais ou menos destrutivos sobre o livro. Que tem erros. Omissões. Falhas. Claro que tem. Só quem já tentou escrever um livro é que o pode compreender. Não há obras perfeitas. Livros sem falhas. Às vezes são simples gralhas. Outras são erros graves que escaparam ao mais meticuloso processo de confirmação. Porque é assim: os livros são o resultado do trabalho de pessoas. Por definição, falíveis.

Aqui prefiro centrar-me nos méritos deste livro. Desde logo na ideia: ao fim de todo este tempo ainda ninguém se tinha debruçado desta forma sobre a vida de António Guterres. O Adelino tem depois o mérito de trazer para a praça pública uma história que há muito corria nas redacções e nos partidos políticos: a famosa frase do “é fazer as contas”, que se colou à pele de António Guterres, foi proferida num contexto muito especial – e dramático. O estado de saúde da sua mulher piorara e o ex-primeiro-ministro tinha acabado de receber a notícia. Este é o caso paradigmático de que o lado pessoal que Guterres tanto se esforçou por manter influencia o político. Há ainda muitas outras histórias aqui contadas. Como a de que António Guterres teria escolhido José Sócrates para lhe suceder em 2001, caso não tivessem havido eleições. Ou esta, da passagem do ex-primeiro-ministro pela Mocidade Portuguesa, que o Adelino amavelmente permitiu que aqui publicasse.

“Missionário na Mocidade Portuguesa

Guterres aproxima-se da entrada principal do Palácio da Independência guiado pelo hábito dos pés. O jovem finalista do IST (1970) entra no imponente edifício da Praça dos Restaurantes e informa sem chama interior que tem uma audiência marcada com o padre António Alves de Campos. A Igreja anda a farejar estudantes universitários com potencial de persuasão para prescrever a cartilha do Estado Novo aos jovens ligeiramente mais novos.

Indicam‑lhe um gabinete onde o Assistente Nacional da Mocidade Portuguesa o espera para uma conversa plena de expectativas. “Guterres foi-me indicado por ser um rapaz muito bem formado, com profundos valores religiosos e de trato fácil com os outros jovens”, recorda António Alves de Campos.

A obra voluntarista desenvolvida por Guterres nos seus tempos livres rende frutos na colheita primaveril de Caetano e o regime tenta deitar a mão ao jovem missionário. António Alves de Campos, nomeado directamente pelo cardeal Cerejeira, deixa‑se emocionar pelo desfiar da conversa com o jovem e convida‑o para ajudar na catequização dos jovens lusitanos abençoados por um regime inspirado por Nossa Senhora de Fátima e temperado pela nostalgia do fado.

“Ele já tinha dado provas do seu empenhamento como bom cristão e, acima de tudo, como bom católico, no apostolado da juventude e numa área tão sensível como a assistência nos bairros degradados através do CASU”.

Esse “notável trabalho” é destacado pelo Assistente Nacional da JUC. “O padre Alves de Campos solicitou-me informações sobre jovens que fossem capazes de ajudar nos cursos de formação moral. Não hesitei em indicar Guterres”. Ponces de Carvalho destaca ainda o “brilhantismo intelectual” e o “imenso mérito” nos trabalhos de apoio social. Acrescenta um dado curricular que não é despiciendo: “Não se metia nas coisas da política e a Mocidade não gostava dessas pessoas que estavam conotadas com os partidos”.

A meio da conversa, “muito agradável”, surge um elo emocional que suscita ainda mais a admiração de António Alves de Campos. Guterres recordava em palavras soltas as suas raízes beirãs em Donas e confessava a admiração pelo pároco Alfredo Fernandes de Brito. É a divina providência que se manifesta no instante. Este padre, falecido quando desempenhava funções de vigário episcopal em Setúbal, era natural de Vila Cova à Coelheira e estudara no seminário no Fundão na mesma altura do próprio António Alves de Campos, natural de Torrosêlo, concelho de Seia. Duas aldeias separadas por escassos quilómetros. Mais do que naturais da mesma região, os ex-seminaristas do Fundão eram amigos.

“Guterres disse-me nessa conversa que o padre Alfredo Brito era uma pessoa que muita estimava e com quem tinha convivido muito perto na sua aldeia”. O destino juntava-os em toda a sua magnificência. “Ganhei imediatamente uma estima acrescida por ele”, confessa Alves de Campos.

O Portugal salazarista continuava assim nas boas graças de Deus. “Com todos estes pormenores fiquei completamente convencido de todas as suas qualidades para monitor do curso anual de formação moral e religiosa”.

Guterres mostra-se agora mais pragmático: “Fui convidado para essa iniciativa, mas antes de aceitar perguntei a opinião de um padre amigo. Disse-me: ‘A palavra de Deus deve florir em todo o lado’. Aceitei e fiz o meu ‘número’, mas não fiquei ‘freguês’. Não voltei a participar em mais nenhuma coisa da Assistência Nacional”, adverte em tom bíblico.

As iniciativas pastorais decorriam no âmbito dos gabinetes de formação moral. Segundo um documento interno da Mocidade Portuguesa ‑ Assistência Nacional para a Formação Moral, estas estruturas constituía “uma máquina de mentalização e de acção em condições de atingirem a maior parte da juventude no âmbito escolar” no continente e no ultramar.

Os cursos de base realizavam-se até às férias do Carnaval, os cursos distritais durante as férias da Páscoa e os de âmbito nacional em pleno Verão. A ascensão pelos vários graus dependia, obviamente, da prestação catequista dos iniciáticos.

“Jovens de variados ramos de ensino, incluindo mesmo seminaristas e dos mais diversos meios sociais, passam pelos cursos, afirmando‑se como germens de genuínas novas comunidades juvenis, que, pela tónica dos mesmos cursos e pelo clima de autêntica comunhão juvenil e participação activa na definição da sua dinâmica, bem se poderão considerar comunidades a equacionar em quatro dimensões: comunidade que crê e canta, comunidade que estuda e pensa, comunidade que trabalha e serve, comunidade que cria e vive na amizade”.

Alves de Campos acrescenta: “Estávamos a formar homens, mas, acima de tudo, estávamos a formar homens cristãos, homens católicos de acordo com a doutrina da Igreja. Queríamos que fossem uma elite social”.

Os cursos iniciaram‑se em 1967, em Sagres, com trinta e quatro participantes. No ano seguinte foram reunidos cinquenta e sete jovens no Sameiro. Em 1969, o rebanho já chegava aos sessenta e dois formandos.

O curso 1970 realizou‑se em Ponta Delgada e a missão foi sabiamente delegada em Guterres, na altura com 21 anos. A delegação parte para a aventura açoriana a bordo do Carvalho Araújo, um navio hidrográfico construído em 1930 nos estaleiros italianos de Monfalcone. “Aqueles dias longe de casa eram uma oportunidade única de divertimento para muitos de nós”, recorda Pedro Mourão, participante desse curso.

A Mocidade Portuguesa esperava a continuidade do vigorante sucesso dos anteriores cursos. “Jovens que se colocam inteiramente ao serviço dos outros jovens numa doação que, por vezes, surpreende e outras vezes ultrapassa todas as expectativas”, segundo a orientação dos ideólogos da Igreja.

Os jovens assistem às palestras e são avaliados pelos conteúdos dos cadernos que usam para tirar notas e para acrescentar opiniões pessoais. Têm de entregá-los para posterior avaliação. Pedro Mourão atreveu-se a fazer uma referência no seu caderno ao escândalo Ballet Rose. Os padres que avaliam os alunos registam o desafio e classificam-no em primeiro lugar do curso. “Devem ter interpretado como um acto de irreverência e de alguma coragem, ainda que inconsciente, por parte de um jovem”, explica Mourão.

Guterres cumpre a sua parte como monitor. “Revelou um dinamismo fora do vulgar. Entregou-se aos jovens de alma e coração e deu uma enorme colaboração a transmitir uma mensagem espiritual e também política”, recorda Alves de Campos. Pedro Mourão regista alguma sintonia. “Os padres eram uns ‘trutas’ e debaixo da capa da ditadura conseguiam patrocinar algumas acções críticas”.

A Assistência Nacional funcionava como um importante departamento oficial do Estado Novo e gozava de alguma autonomia dentro da estrutura da Mocidade Portuguesa. Esta organização pretendia formar os jovens portugueses segundo os valores do catolicismo tradicional e impregnava os valores patrióticos através do seu carácter para-militar. Os jovens aprendiam a retórica do regime e declamavam mecanicamente invocações inflamadas sobre o heroísmo imperial português.

A Assistência tinha como “finalidade expressa” garantir a “formação moral e espiritual dos jovens, quando empenhados e livremente inscritos nas suas actividades” dentro da Mocidade. Esta organização foi criada em Maio de 1936 e agregava uma direcção de serviços de formação moral, mais tarde transformada em Assistência Nacional.

O primeiro responsável foi o cónego Francisco Maria da

Silva, nos anos 50, futuro arcebispo de Braga.

O Ministério da Educação Nacional definia os gabinetes de formação moral como “uma máquina de mentalização e de acção” preparada para “atingir a maior parte da juventude no âmbito escolar. O trabalho desenvolvido ao longo dos anos levaria à apresentação de uma proposta junto do governo para criar uma estrutura totalmente nova, edificada a partir dos chamados círculos de formação juvenil. O sucesso prescrito pela evangelização parecia evidente.

Um documento de Alves Campos sobre o papel da Assistência refere que o governo teria já aprovado as bases de uma nova associação nacional de juventude, autónoma da Mocidade Portuguesa, designada por Movimento Nacional de Formação Juvenil (MONAFE). O MONAFE teria como base o trabalho desenvolvido pelos alunos e monitores que, como António Guterres, participaram nos cursos iniciais. Esta nova organização juvenil do Estado acabou por ser condenada devido à queda do Estado Novo.

Tratava ‑se de um projecto para criar uma organização de “reconhecida utilidade pública” orientada para os problemas em geral da juventude do nosso país, com relevância particular para a sua formação moral orientação e integração social”. O mesmo documento acrescenta que “nas actuais circunstâncias sociais e políticas, uma tal iniciativa mantém idêntica actualidade, se é que não maior e

mais premente necessidade”.

Os mentores destas organizações do Estado Novo pretendiam absorver os jovens que tivessem frequentado com sucesso os cursos de formação juvenil, previamente seleccionados pelos centros existentes em todas as escolas públicas e em muitas particulares. Exigia-se aos distintos universitários finalistas capacidade de liderança para pastorear os valores católicos por um rebanho de jovens recrutados entre os melhores alunos do ensino secundário de Portugal e do Ultramar. Jovens promissores escolhidos pelos assistentes entre os melhores participantes a nível local, distrital e nacional.

Apesar do empenho substantivo, Guterres criou vários incidentes durante o curso em que desempenhou funções de liderança enquanto monitor. Pretendia “marcar posições políticas ainda que de acordo com a doutrina social da Igreja”, absolve o antigo dirigente António Alves Campos. Não esconde a sensibilidade que o problema suscitou na altura em que exercia o cargo de “representante directo da hierarquia da Igreja na Mocidade Portuguesa”.

Revolta contra o visconde

O anfiteatro engalanado da Universidade dos Açores começa por encher ‑se de estudantes aprumados em trajes domingueiros. Chegam depois as éminences grises da pedagogia local e os tradicionais representantes do dinheiro, da política e da religião. É o típico dia solene em que se reivindica direito à glorificação.

O escritor açoriano Vitorino Nemésio tinha sido convidado como orador principal para abrir os trabalhos do IV Curso Nacional da Assistência Nacional da Mocidade Portuguesa, seguindo ‑se a intervenção de um plenipotenciário da região, o visconde do Botelho.

Trata ‑se de José Gago da Câmara de Medeiros, um armador que enriquecera com negócios na marinha mercante e na construção naval e que o historiador José Freire Antunes identifica como um “franco‑atirador” dos corredores diplomáticos. Usufruía de “multifacetados contactos internacionais”. Representou o governo em comissões da NATO, foi procurador à Câmara Corporativa e ainda conselheiro oficioso de Marcelo Caetano.

No final das palestras, Guterres, monitor do curso, deixa que os alunos terminem as suas perguntas pacíficas aos dois oradores e inicia por sua conta e risco um raid sobre o visconde. Bombardeia o ilustre açoreano com perguntas incómodas com a determinação de quem se tinha preparado para uma batalha. Guterres sentia‑se um homem da doutrina social da Igreja e convivia mal com a fama de José Gago da Câmara de Medeiros, titulado como um avarento e explorador.

“Aquilo acabou por ser ostensivo demais. Não podia ser feito publicamente”, lamenta Alves de Campos, mas já sem esconder uma certa simpatia pela determinação revelada diante toda a elite regional que assistia à referencial cerimónia do Estado Novo em plena universidade.

Pedro Mourão destaca a “camaradagem” que Guterres conseguia estabelecer com os mais novos. “Era brilhante na oratória e cativava os mais jovens quebrando as barreiras da distância. Guterres gostava da proximidade e, apesar de ser monitor, nós víamo-lo como um dos nossos. Não se envolvia directamente nas nossas brincadeiras, mas também não tentava controlá‑las”, sintetiza. A intervenção crítica contra o visconde demonstrou coragem. “Era um provocador que sabia criticar sem extravasar”. Os laços entre os jovens ficam mais fortes.

Perante a estupefacção de Alves de Campos, Guterres tomara‑se de coragem para enfrentar o homem a quem algum povo açoriano não poupava críticas surdas. “Ele reagiu com um profundo incómodo por saber que as pessoas acusavam o visconde de ser um explorador. Eu queria isentar os cursos de mensagem política, mas ele não resistiu. Foi mais forte do ele”, recorda o padre.

Os protestos não ficaram por aqui. O Assistente Nacional solicitou depois autorização para celebrar uma missa na capela particular da sua quinta. O visconde não só aceitou de imediato ser o anfitrião dessa cerimónia religiosa como decidiu convidar todos os alunos do curso para um reconfortante repasto depois do cerimonial religioso. Alves de Campos comunicou a Guterres o roteiro das actividades espirituais e pediu-lhe que informasse todos os outros jovens de que haveria uma missa para a qual estavam todos convidados. “Eles não eram obrigados. Podiam participar ou não, mas eu esperava que fossem”, recorda o religioso. Aquele dia tinha reservado mais uma desagradável surpresa. Guterres iria aproveitar o facto de ser “um líder natural que impunha facilmente a sua mensagem” para forçar mais um incidente com José Gago da Câmara de Medeiros.

Devidamente paramentado, Alves de Campos manda um acólito espreitar a capela para saber se podia iniciar a celebração. No entanto, à hora combinada não está um único jovem dentro da capela. O padre fica estarrecido com a desobediência organizada. Guterres tinha mobilizado o grupo como sinal de protesto.

“Fiquei espantadíssimo com aquilo!”.

O Assistente percebeu a tentativa de insurreição e, incomodado com o constrangimento que o caso já estava a provocar nas relações com o anfitrião, mandou chamar o inconfesso contestatário.

“Confrontei‑o com a capela vazia e Guterres respondeu que ninguém era obrigado a assistir. Os rapazitos lá acabaram por ir e fingimos todos não ter percebido a intenção dele. Guterres era um rapaz muito determinado e inconformado com as injustiças. Tinha uma visão correcta da doutrina social da Igreja e fez bem o casamento entre o ideal cristão e católico e a política. Teve coragem para fazer aquilo porque sempre acreditou nas causas sociais”.

Estes cursos da Mocidade mudavam anualmente de monitores e mesmo os sentidos elogios à forma como Guterres encarnava a doutrina social da Igreja foram insuficientes para justificar futuras participações suas nas actividades docentes. “É natural que tenham tentado ‘apanhar’ um jovem crente brilhante e levá‑lo para a militância católica, mas dificilmente ele iria fazer carreira porque nunca se comprometeu com a estrutura da Mocidade Portuguesa”, afirma Pedro Mourão. “Guterres era um progressista com uma linguagem ousada e a conflitualidade era inevitável”, acrescenta.

Alves de Campos justifica que a estrutura do seu gabinete era constituída por padres de carreira que exerciam funções de assistentes religiosos e aos leigos estavam destinadas apenas funções administrativas. “Acabou por ser uma colaboração eventual, mas muito do meu agrado”. Guterres guarda desta colaboração a ideia de que, de facto, conseguiu dar um sinal, mas um “sinal de ruptura”.

O episódio fica encerrado com o necessário ritual post mortem. “O curso não era uma coisa inocente, eles não gostaram do que eu disse, e eu não gostei daquilo. Nunca mais me convidaram. Foi uma participação inofensiva e sem consequências”, garante Guterres.”

Ontem foi lançada a biografia de António Guterres. A obra foi escrita pelo meu amigo Adelino Cunha. Além de jornalista, ele é historiador e professor universitário. E uma das melhores “cabeças políticas” que conheço. Nos últimos dias tenho visto vários artigos mais ou menos destrutivos sobre o livro. Que tem erros. Omissões. Falhas. Claro que tem. Só quem já tentou escrever um livro é que o pode compreender. Não há obras perfeitas. Livros sem falhas. Às vezes são simples gralhas. Outras são erros graves que escaparam ao mais meticuloso processo de confirmação. Porque é assim: os livros são o resultado do trabalho de pessoas. Por definição, falíveis.

Aqui prefiro centrar-me nos méritos deste livro. Desde logo na ideia: ao fim de todo este tempo ainda ninguém se tinha debruçado desta forma sobre a vida de António Guterres. O Adelino tem depois o mérito de trazer para a praça pública uma história que há muito corria nas redacções e nos partidos políticos: a famosa frase do “é fazer as contas”, que se colou à pele de António Guterres, foi proferida num contexto muito especial – e dramático. O estado de saúde da sua mulher piorara e o ex-primeiro-ministro tinha acabado de receber a notícia. Este é o caso paradigmático de que o lado pessoal que Guterres tanto se esforçou por manter influencia o político. Há ainda muitas outras histórias aqui contadas. Como a de que António Guterres teria escolhido José Sócrates para lhe suceder em 2001, caso não tivessem havido eleições. Ou esta, da passagem do ex-primeiro-ministro pela Mocidade Portuguesa, que o Adelino amavelmente permitiu que aqui publicasse.

“Missionário na Mocidade Portuguesa

Guterres aproxima-se da entrada principal do Palácio da Independência guiado pelo hábito dos pés. O jovem finalista do IST (1970) entra no imponente edifício da Praça dos Restaurantes e informa sem chama interior que tem uma audiência marcada com o padre António Alves de Campos. A Igreja anda a farejar estudantes universitários com potencial de persuasão para prescrever a cartilha do Estado Novo aos jovens ligeiramente mais novos.

Indicam‑lhe um gabinete onde o Assistente Nacional da Mocidade Portuguesa o espera para uma conversa plena de expectativas. “Guterres foi-me indicado por ser um rapaz muito bem formado, com profundos valores religiosos e de trato fácil com os outros jovens”, recorda António Alves de Campos.

A obra voluntarista desenvolvida por Guterres nos seus tempos livres rende frutos na colheita primaveril de Caetano e o regime tenta deitar a mão ao jovem missionário. António Alves de Campos, nomeado directamente pelo cardeal Cerejeira, deixa‑se emocionar pelo desfiar da conversa com o jovem e convida‑o para ajudar na catequização dos jovens lusitanos abençoados por um regime inspirado por Nossa Senhora de Fátima e temperado pela nostalgia do fado.

“Ele já tinha dado provas do seu empenhamento como bom cristão e, acima de tudo, como bom católico, no apostolado da juventude e numa área tão sensível como a assistência nos bairros degradados através do CASU”.

Esse “notável trabalho” é destacado pelo Assistente Nacional da JUC. “O padre Alves de Campos solicitou-me informações sobre jovens que fossem capazes de ajudar nos cursos de formação moral. Não hesitei em indicar Guterres”. Ponces de Carvalho destaca ainda o “brilhantismo intelectual” e o “imenso mérito” nos trabalhos de apoio social. Acrescenta um dado curricular que não é despiciendo: “Não se metia nas coisas da política e a Mocidade não gostava dessas pessoas que estavam conotadas com os partidos”.

A meio da conversa, “muito agradável”, surge um elo emocional que suscita ainda mais a admiração de António Alves de Campos. Guterres recordava em palavras soltas as suas raízes beirãs em Donas e confessava a admiração pelo pároco Alfredo Fernandes de Brito. É a divina providência que se manifesta no instante. Este padre, falecido quando desempenhava funções de vigário episcopal em Setúbal, era natural de Vila Cova à Coelheira e estudara no seminário no Fundão na mesma altura do próprio António Alves de Campos, natural de Torrosêlo, concelho de Seia. Duas aldeias separadas por escassos quilómetros. Mais do que naturais da mesma região, os ex-seminaristas do Fundão eram amigos.

“Guterres disse-me nessa conversa que o padre Alfredo Brito era uma pessoa que muita estimava e com quem tinha convivido muito perto na sua aldeia”. O destino juntava-os em toda a sua magnificência. “Ganhei imediatamente uma estima acrescida por ele”, confessa Alves de Campos.

O Portugal salazarista continuava assim nas boas graças de Deus. “Com todos estes pormenores fiquei completamente convencido de todas as suas qualidades para monitor do curso anual de formação moral e religiosa”.

Guterres mostra-se agora mais pragmático: “Fui convidado para essa iniciativa, mas antes de aceitar perguntei a opinião de um padre amigo. Disse-me: ‘A palavra de Deus deve florir em todo o lado’. Aceitei e fiz o meu ‘número’, mas não fiquei ‘freguês’. Não voltei a participar em mais nenhuma coisa da Assistência Nacional”, adverte em tom bíblico.

As iniciativas pastorais decorriam no âmbito dos gabinetes de formação moral. Segundo um documento interno da Mocidade Portuguesa ‑ Assistência Nacional para a Formação Moral, estas estruturas constituía “uma máquina de mentalização e de acção em condições de atingirem a maior parte da juventude no âmbito escolar” no continente e no ultramar.

Os cursos de base realizavam-se até às férias do Carnaval, os cursos distritais durante as férias da Páscoa e os de âmbito nacional em pleno Verão. A ascensão pelos vários graus dependia, obviamente, da prestação catequista dos iniciáticos.

“Jovens de variados ramos de ensino, incluindo mesmo seminaristas e dos mais diversos meios sociais, passam pelos cursos, afirmando‑se como germens de genuínas novas comunidades juvenis, que, pela tónica dos mesmos cursos e pelo clima de autêntica comunhão juvenil e participação activa na definição da sua dinâmica, bem se poderão considerar comunidades a equacionar em quatro dimensões: comunidade que crê e canta, comunidade que estuda e pensa, comunidade que trabalha e serve, comunidade que cria e vive na amizade”.

Alves de Campos acrescenta: “Estávamos a formar homens, mas, acima de tudo, estávamos a formar homens cristãos, homens católicos de acordo com a doutrina da Igreja. Queríamos que fossem uma elite social”.

Os cursos iniciaram‑se em 1967, em Sagres, com trinta e quatro participantes. No ano seguinte foram reunidos cinquenta e sete jovens no Sameiro. Em 1969, o rebanho já chegava aos sessenta e dois formandos.

O curso 1970 realizou‑se em Ponta Delgada e a missão foi sabiamente delegada em Guterres, na altura com 21 anos. A delegação parte para a aventura açoriana a bordo do Carvalho Araújo, um navio hidrográfico construído em 1930 nos estaleiros italianos de Monfalcone. “Aqueles dias longe de casa eram uma oportunidade única de divertimento para muitos de nós”, recorda Pedro Mourão, participante desse curso.

A Mocidade Portuguesa esperava a continuidade do vigorante sucesso dos anteriores cursos. “Jovens que se colocam inteiramente ao serviço dos outros jovens numa doação que, por vezes, surpreende e outras vezes ultrapassa todas as expectativas”, segundo a orientação dos ideólogos da Igreja.

Os jovens assistem às palestras e são avaliados pelos conteúdos dos cadernos que usam para tirar notas e para acrescentar opiniões pessoais. Têm de entregá-los para posterior avaliação. Pedro Mourão atreveu-se a fazer uma referência no seu caderno ao escândalo Ballet Rose. Os padres que avaliam os alunos registam o desafio e classificam-no em primeiro lugar do curso. “Devem ter interpretado como um acto de irreverência e de alguma coragem, ainda que inconsciente, por parte de um jovem”, explica Mourão.

Guterres cumpre a sua parte como monitor. “Revelou um dinamismo fora do vulgar. Entregou-se aos jovens de alma e coração e deu uma enorme colaboração a transmitir uma mensagem espiritual e também política”, recorda Alves de Campos. Pedro Mourão regista alguma sintonia. “Os padres eram uns ‘trutas’ e debaixo da capa da ditadura conseguiam patrocinar algumas acções críticas”.

A Assistência Nacional funcionava como um importante departamento oficial do Estado Novo e gozava de alguma autonomia dentro da estrutura da Mocidade Portuguesa. Esta organização pretendia formar os jovens portugueses segundo os valores do catolicismo tradicional e impregnava os valores patrióticos através do seu carácter para-militar. Os jovens aprendiam a retórica do regime e declamavam mecanicamente invocações inflamadas sobre o heroísmo imperial português.

A Assistência tinha como “finalidade expressa” garantir a “formação moral e espiritual dos jovens, quando empenhados e livremente inscritos nas suas actividades” dentro da Mocidade. Esta organização foi criada em Maio de 1936 e agregava uma direcção de serviços de formação moral, mais tarde transformada em Assistência Nacional.

O primeiro responsável foi o cónego Francisco Maria da

Silva, nos anos 50, futuro arcebispo de Braga.

O Ministério da Educação Nacional definia os gabinetes de formação moral como “uma máquina de mentalização e de acção” preparada para “atingir a maior parte da juventude no âmbito escolar. O trabalho desenvolvido ao longo dos anos levaria à apresentação de uma proposta junto do governo para criar uma estrutura totalmente nova, edificada a partir dos chamados círculos de formação juvenil. O sucesso prescrito pela evangelização parecia evidente.

Um documento de Alves Campos sobre o papel da Assistência refere que o governo teria já aprovado as bases de uma nova associação nacional de juventude, autónoma da Mocidade Portuguesa, designada por Movimento Nacional de Formação Juvenil (MONAFE). O MONAFE teria como base o trabalho desenvolvido pelos alunos e monitores que, como António Guterres, participaram nos cursos iniciais. Esta nova organização juvenil do Estado acabou por ser condenada devido à queda do Estado Novo.

Tratava ‑se de um projecto para criar uma organização de “reconhecida utilidade pública” orientada para os problemas em geral da juventude do nosso país, com relevância particular para a sua formação moral orientação e integração social”. O mesmo documento acrescenta que “nas actuais circunstâncias sociais e políticas, uma tal iniciativa mantém idêntica actualidade, se é que não maior e

mais premente necessidade”.

Os mentores destas organizações do Estado Novo pretendiam absorver os jovens que tivessem frequentado com sucesso os cursos de formação juvenil, previamente seleccionados pelos centros existentes em todas as escolas públicas e em muitas particulares. Exigia-se aos distintos universitários finalistas capacidade de liderança para pastorear os valores católicos por um rebanho de jovens recrutados entre os melhores alunos do ensino secundário de Portugal e do Ultramar. Jovens promissores escolhidos pelos assistentes entre os melhores participantes a nível local, distrital e nacional.

Apesar do empenho substantivo, Guterres criou vários incidentes durante o curso em que desempenhou funções de liderança enquanto monitor. Pretendia “marcar posições políticas ainda que de acordo com a doutrina social da Igreja”, absolve o antigo dirigente António Alves Campos. Não esconde a sensibilidade que o problema suscitou na altura em que exercia o cargo de “representante directo da hierarquia da Igreja na Mocidade Portuguesa”.

Revolta contra o visconde

O anfiteatro engalanado da Universidade dos Açores começa por encher ‑se de estudantes aprumados em trajes domingueiros. Chegam depois as éminences grises da pedagogia local e os tradicionais representantes do dinheiro, da política e da religião. É o típico dia solene em que se reivindica direito à glorificação.

O escritor açoriano Vitorino Nemésio tinha sido convidado como orador principal para abrir os trabalhos do IV Curso Nacional da Assistência Nacional da Mocidade Portuguesa, seguindo ‑se a intervenção de um plenipotenciário da região, o visconde do Botelho.

Trata ‑se de José Gago da Câmara de Medeiros, um armador que enriquecera com negócios na marinha mercante e na construção naval e que o historiador José Freire Antunes identifica como um “franco‑atirador” dos corredores diplomáticos. Usufruía de “multifacetados contactos internacionais”. Representou o governo em comissões da NATO, foi procurador à Câmara Corporativa e ainda conselheiro oficioso de Marcelo Caetano.

No final das palestras, Guterres, monitor do curso, deixa que os alunos terminem as suas perguntas pacíficas aos dois oradores e inicia por sua conta e risco um raid sobre o visconde. Bombardeia o ilustre açoreano com perguntas incómodas com a determinação de quem se tinha preparado para uma batalha. Guterres sentia‑se um homem da doutrina social da Igreja e convivia mal com a fama de José Gago da Câmara de Medeiros, titulado como um avarento e explorador.

“Aquilo acabou por ser ostensivo demais. Não podia ser feito publicamente”, lamenta Alves de Campos, mas já sem esconder uma certa simpatia pela determinação revelada diante toda a elite regional que assistia à referencial cerimónia do Estado Novo em plena universidade.

Pedro Mourão destaca a “camaradagem” que Guterres conseguia estabelecer com os mais novos. “Era brilhante na oratória e cativava os mais jovens quebrando as barreiras da distância. Guterres gostava da proximidade e, apesar de ser monitor, nós víamo-lo como um dos nossos. Não se envolvia directamente nas nossas brincadeiras, mas também não tentava controlá‑las”, sintetiza. A intervenção crítica contra o visconde demonstrou coragem. “Era um provocador que sabia criticar sem extravasar”. Os laços entre os jovens ficam mais fortes.

Perante a estupefacção de Alves de Campos, Guterres tomara‑se de coragem para enfrentar o homem a quem algum povo açoriano não poupava críticas surdas. “Ele reagiu com um profundo incómodo por saber que as pessoas acusavam o visconde de ser um explorador. Eu queria isentar os cursos de mensagem política, mas ele não resistiu. Foi mais forte do ele”, recorda o padre.

Os protestos não ficaram por aqui. O Assistente Nacional solicitou depois autorização para celebrar uma missa na capela particular da sua quinta. O visconde não só aceitou de imediato ser o anfitrião dessa cerimónia religiosa como decidiu convidar todos os alunos do curso para um reconfortante repasto depois do cerimonial religioso. Alves de Campos comunicou a Guterres o roteiro das actividades espirituais e pediu-lhe que informasse todos os outros jovens de que haveria uma missa para a qual estavam todos convidados. “Eles não eram obrigados. Podiam participar ou não, mas eu esperava que fossem”, recorda o religioso. Aquele dia tinha reservado mais uma desagradável surpresa. Guterres iria aproveitar o facto de ser “um líder natural que impunha facilmente a sua mensagem” para forçar mais um incidente com José Gago da Câmara de Medeiros.

Devidamente paramentado, Alves de Campos manda um acólito espreitar a capela para saber se podia iniciar a celebração. No entanto, à hora combinada não está um único jovem dentro da capela. O padre fica estarrecido com a desobediência organizada. Guterres tinha mobilizado o grupo como sinal de protesto.

“Fiquei espantadíssimo com aquilo!”.

O Assistente percebeu a tentativa de insurreição e, incomodado com o constrangimento que o caso já estava a provocar nas relações com o anfitrião, mandou chamar o inconfesso contestatário.

“Confrontei‑o com a capela vazia e Guterres respondeu que ninguém era obrigado a assistir. Os rapazitos lá acabaram por ir e fingimos todos não ter percebido a intenção dele. Guterres era um rapaz muito determinado e inconformado com as injustiças. Tinha uma visão correcta da doutrina social da Igreja e fez bem o casamento entre o ideal cristão e católico e a política. Teve coragem para fazer aquilo porque sempre acreditou nas causas sociais”.

Estes cursos da Mocidade mudavam anualmente de monitores e mesmo os sentidos elogios à forma como Guterres encarnava a doutrina social da Igreja foram insuficientes para justificar futuras participações suas nas actividades docentes. “É natural que tenham tentado ‘apanhar’ um jovem crente brilhante e levá‑lo para a militância católica, mas dificilmente ele iria fazer carreira porque nunca se comprometeu com a estrutura da Mocidade Portuguesa”, afirma Pedro Mourão. “Guterres era um progressista com uma linguagem ousada e a conflitualidade era inevitável”, acrescenta.

Alves de Campos justifica que a estrutura do seu gabinete era constituída por padres de carreira que exerciam funções de assistentes religiosos e aos leigos estavam destinadas apenas funções administrativas. “Acabou por ser uma colaboração eventual, mas muito do meu agrado”. Guterres guarda desta colaboração a ideia de que, de facto, conseguiu dar um sinal, mas um “sinal de ruptura”.

O episódio fica encerrado com o necessário ritual post mortem. “O curso não era uma coisa inocente, eles não gostaram do que eu disse, e eu não gostei daquilo. Nunca mais me convidaram. Foi uma participação inofensiva e sem consequências”, garante Guterres.”

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