O filho à solta

26-10-2012
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Parto é Vicente Palma a dar-se à luz. No seu disco de estreia, o filho de Jorge Palma escusa-se a renegar a herança paterna e avança decidido para a sua proclamação de independência. É dar-lhe atenção e não concluir que já se sabe ao que se vai.

Diz-nos a biologia que a longevidade das espécies é proporcional ao grau de dependência das crias relativamente aos progenitores. Nos mamíferos, por isso, o cortão umbilical simbólico corta-se mais tarde, não podendo contar com o instinto para entrar em campo e garantir a sobrevivência antes de esta ser devidamente treinada. A aquisição de competências sobrepõe-se às respostas ditadas pelos impulsos primários. Daí que, frequentemente, a autonomia seja um passo delicado e que, há quem defenda, o valor atribuído pelas gentes à liberdade seja uma resposta à consciência da dependência física inicial.

Vicente, filho de Jorge, cresceu a replicar em boa parte o percurso do progenitor, aprendendo piano e guitarra, juntando-lhe a voz, escolhendo um rumo que ameaçava aprisioná-lo enquanto imagem espelhada daquela construída por Jorge Palma. E como há já dez anos que sobem juntos a palco, só o nome do pai nos cartazes, Vicente surgia como se não fosse mais do que um silencioso seguidor, um filho como qualquer outro a tomar automaticamente o ofício do pai como seu, mas protegido das crueldades do mundo fora do ninho.

O primeiro indício de que a verdade poderia ser outra - após ter participado no disco ao vivo No Tempo dos Assassinos, que Jorge gravou em Junho de 2002 - foi quando, a convite de Henrique Amaro, Vicente apareceu como corpo estranho no álbum de homenagem a Adriano Correia de Oliveira (2007) para o qual haviam sido convocados Tim, Mazgani, Margarida Pinto (Coldfinger), Miguel Guedes (Blind Zero), Nuno Prata, Valete, Ana Deus com os Dead Combo ou Raquel Tavares. De todos, Vicente era o único sem lastro, sem história própria. Mas o lirismo melancólico ao piano de Para Rosalía não tardou a impor-se como um dos temas mais intensos do álbum. Se a dúvida do que valia Vicente Palma longe da asa protectora do seu pai parecia ter resposta à altura, era imediatamente substituída por uma outra: o que valeria Vicente Palma entregue ao seu próprio destino/reportório?

Na verdade, nem ele mesmo fazia bem ideia do que poderiam valer as suas canções. Por alturas de Para Rosalía, tinha 24 anos e sabia apenas que "estava muito verde e tinha ainda muito para crescer". Ia acumulando canções mas não sabia o que fazer-lhes nem como dar-lhes um sentido. Para Rosalía, inesperadamente, forçou-lhe a mão, atirou-o para o estúdio a ter de assumir uma pele pública e, admite, funcionou como o rastilho para a formação de uma linguagem ainda embrionária. "Foi o início de qualquer coisa que não sei bem explicar", confessa. Daí que agora tenha decidido, como agradecimento a Adriano, incluir o tema no seu disco de estreia, Parto, lançado cinco anos depois desse primeiro entrever da sua marca distintiva.

Curiosamente, Vicente não monta em torno de si um discurso que esconda fraquezas. Não lhe custa reconhecer que esta nova versão do tema cantado por Adriano "não ficou com a mesma magia que aquela primeira gravação tão verde". "Tecnicamente está mais bem conseguida, mas a outra tem qualquer coisa que não consegui replicar. Talvez por a música ser tão nova para mim na altura", aventa. Há, por isso, um conforto evidente com a adopção de um caminho e dos seus percalços, dispensando a imagem de perfeição a que grande maioria julga estar obrigada para defender as suas obras. Não se coíbe igualmente de falar das imperfeições, das falhas e das coisas que gostaria de ter feito melhor. Sem com isso baixar as guardas.

Da clássica ao heavy metal

Da mesma forma, Vicente tem plena consciência do sinuoso percurso das suas canções, perscrutadoras de uma grandiosidade épica pouco conciliável com a implacabilidade das playlists. "Não estou nisto por popularidade ou por dinheiro. Se quisesse ser rico ia para outro ramo qualquer", justifica. "Não é um disco orelhudo, é um bocadinho alternativo, mas sou eu aqui estampado. Ainda por cima não mudei de país nem de nome, estou aqui a afirmar-me como pessoa e indivíduo porque sinto muita segurança no que estou a fazer. A minha música só podia ser esta, se fosse outra acho que estava em maus lençóis".

Mais ainda quando Vicente admite sem pejo que Parto serviu-lhe, em parte, para sondar escolhas futuras, perceber que caminhos quer explorar mais a fundo e que outros pretende recusar de imediato. E que as músicas que mais o motivam são exactamente aquelas que mais se podem afastar de um padrão pop. Algo que talvez faça mais sentido quando nos fala da pronta identificação dos pilares essenciais na sua música: tudo o que vai de música clássica ao heavy metal, citando com particular veemência Radiohead, Jeff Buckley, Alice in Chains, Opeth, Porcupine Tree e Nine Inch Nails. "Está tudo aqui dentro, mas 14 músicas são tão poucas que só com outras 90 se ouviam algumas dessas influências".

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O truque para não deixar que essas influências sejam quer castradas quer sublimadas em demasia foi já integrado na sua rotina criativa. O seu método de composição mais infalível passa por "acordar de manhã e estar sentado ao piano durante aqueles segundos, aquele período de tempo tão minúsculo em que temos o cérebro a mil à hora". Altura em que o superego não teve ainda tempo de erguer-se e limpar os filtros.

É fácil acreditar numa construção musical por oposição ao seu pai. E muito embora Vicente tente retirar alguma carga à frase do seu progenitor que se ouve em fundo durante Redoma - "as coisas nunca se repetem da mesma maneira" -, alinhada com outras gravações de conversas com a avó, a mãe e o irmão, importando para o tema uma série de considerações avulsas sobre a vida, também não se chateia especialmente com as comparações. "Os dois primeiros discos do meu pai se calhar são tão ou mais pesados do que este", responde, antes de acrescentar que não existe qualquer premeditação na distância adoptada em relação à obra paterna. Vicente muito simplesmente recusa qualquer resquício edipiano - não há que "matar o pai", há simplesmente que deixar à solta o filho.

Ver crítica de discos págs. 36 e segs.

Parto é Vicente Palma a dar-se à luz. No seu disco de estreia, o filho de Jorge Palma escusa-se a renegar a herança paterna e avança decidido para a sua proclamação de independência. É dar-lhe atenção e não concluir que já se sabe ao que se vai.

Diz-nos a biologia que a longevidade das espécies é proporcional ao grau de dependência das crias relativamente aos progenitores. Nos mamíferos, por isso, o cortão umbilical simbólico corta-se mais tarde, não podendo contar com o instinto para entrar em campo e garantir a sobrevivência antes de esta ser devidamente treinada. A aquisição de competências sobrepõe-se às respostas ditadas pelos impulsos primários. Daí que, frequentemente, a autonomia seja um passo delicado e que, há quem defenda, o valor atribuído pelas gentes à liberdade seja uma resposta à consciência da dependência física inicial.

Vicente, filho de Jorge, cresceu a replicar em boa parte o percurso do progenitor, aprendendo piano e guitarra, juntando-lhe a voz, escolhendo um rumo que ameaçava aprisioná-lo enquanto imagem espelhada daquela construída por Jorge Palma. E como há já dez anos que sobem juntos a palco, só o nome do pai nos cartazes, Vicente surgia como se não fosse mais do que um silencioso seguidor, um filho como qualquer outro a tomar automaticamente o ofício do pai como seu, mas protegido das crueldades do mundo fora do ninho.

O primeiro indício de que a verdade poderia ser outra - após ter participado no disco ao vivo No Tempo dos Assassinos, que Jorge gravou em Junho de 2002 - foi quando, a convite de Henrique Amaro, Vicente apareceu como corpo estranho no álbum de homenagem a Adriano Correia de Oliveira (2007) para o qual haviam sido convocados Tim, Mazgani, Margarida Pinto (Coldfinger), Miguel Guedes (Blind Zero), Nuno Prata, Valete, Ana Deus com os Dead Combo ou Raquel Tavares. De todos, Vicente era o único sem lastro, sem história própria. Mas o lirismo melancólico ao piano de Para Rosalía não tardou a impor-se como um dos temas mais intensos do álbum. Se a dúvida do que valia Vicente Palma longe da asa protectora do seu pai parecia ter resposta à altura, era imediatamente substituída por uma outra: o que valeria Vicente Palma entregue ao seu próprio destino/reportório?

Na verdade, nem ele mesmo fazia bem ideia do que poderiam valer as suas canções. Por alturas de Para Rosalía, tinha 24 anos e sabia apenas que "estava muito verde e tinha ainda muito para crescer". Ia acumulando canções mas não sabia o que fazer-lhes nem como dar-lhes um sentido. Para Rosalía, inesperadamente, forçou-lhe a mão, atirou-o para o estúdio a ter de assumir uma pele pública e, admite, funcionou como o rastilho para a formação de uma linguagem ainda embrionária. "Foi o início de qualquer coisa que não sei bem explicar", confessa. Daí que agora tenha decidido, como agradecimento a Adriano, incluir o tema no seu disco de estreia, Parto, lançado cinco anos depois desse primeiro entrever da sua marca distintiva.

Curiosamente, Vicente não monta em torno de si um discurso que esconda fraquezas. Não lhe custa reconhecer que esta nova versão do tema cantado por Adriano "não ficou com a mesma magia que aquela primeira gravação tão verde". "Tecnicamente está mais bem conseguida, mas a outra tem qualquer coisa que não consegui replicar. Talvez por a música ser tão nova para mim na altura", aventa. Há, por isso, um conforto evidente com a adopção de um caminho e dos seus percalços, dispensando a imagem de perfeição a que grande maioria julga estar obrigada para defender as suas obras. Não se coíbe igualmente de falar das imperfeições, das falhas e das coisas que gostaria de ter feito melhor. Sem com isso baixar as guardas.

Da clássica ao heavy metal

Da mesma forma, Vicente tem plena consciência do sinuoso percurso das suas canções, perscrutadoras de uma grandiosidade épica pouco conciliável com a implacabilidade das playlists. "Não estou nisto por popularidade ou por dinheiro. Se quisesse ser rico ia para outro ramo qualquer", justifica. "Não é um disco orelhudo, é um bocadinho alternativo, mas sou eu aqui estampado. Ainda por cima não mudei de país nem de nome, estou aqui a afirmar-me como pessoa e indivíduo porque sinto muita segurança no que estou a fazer. A minha música só podia ser esta, se fosse outra acho que estava em maus lençóis".

Mais ainda quando Vicente admite sem pejo que Parto serviu-lhe, em parte, para sondar escolhas futuras, perceber que caminhos quer explorar mais a fundo e que outros pretende recusar de imediato. E que as músicas que mais o motivam são exactamente aquelas que mais se podem afastar de um padrão pop. Algo que talvez faça mais sentido quando nos fala da pronta identificação dos pilares essenciais na sua música: tudo o que vai de música clássica ao heavy metal, citando com particular veemência Radiohead, Jeff Buckley, Alice in Chains, Opeth, Porcupine Tree e Nine Inch Nails. "Está tudo aqui dentro, mas 14 músicas são tão poucas que só com outras 90 se ouviam algumas dessas influências".

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O truque para não deixar que essas influências sejam quer castradas quer sublimadas em demasia foi já integrado na sua rotina criativa. O seu método de composição mais infalível passa por "acordar de manhã e estar sentado ao piano durante aqueles segundos, aquele período de tempo tão minúsculo em que temos o cérebro a mil à hora". Altura em que o superego não teve ainda tempo de erguer-se e limpar os filtros.

É fácil acreditar numa construção musical por oposição ao seu pai. E muito embora Vicente tente retirar alguma carga à frase do seu progenitor que se ouve em fundo durante Redoma - "as coisas nunca se repetem da mesma maneira" -, alinhada com outras gravações de conversas com a avó, a mãe e o irmão, importando para o tema uma série de considerações avulsas sobre a vida, também não se chateia especialmente com as comparações. "Os dois primeiros discos do meu pai se calhar são tão ou mais pesados do que este", responde, antes de acrescentar que não existe qualquer premeditação na distância adoptada em relação à obra paterna. Vicente muito simplesmente recusa qualquer resquício edipiano - não há que "matar o pai", há simplesmente que deixar à solta o filho.

Ver crítica de discos págs. 36 e segs.

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