Miguel Vilar esteve em coma, agora vai atravessar os EUA

24-07-2011
marcar artigo

Há 14 anos ouviu dos médicos o que preferia não ouvir: seria dependente para o resto da vida. Miguel Vilar recomeçou a andar e o seu caso serviu de case study para António Damásio

Um apaixonado pelo desporto automóvel, Miguel começou a competir aos 17 anos, primeiro como co-piloto, mais tarde ao volante. "O meu sonho e o meu objectivo, desde miúdo, eram ser piloto de Fórmula 1. Abdiquei de tudo para seguir o meu caminho", recorda. Em 1987, então com 31 anos, Miguel decidiu "pegar na tralha" e rumar a Inglaterra, a Meca do automobilismo.

Nomes sonantes do desporto motorizado como Damon Hill, Michael Schumacher e Mika Häkkinen cruzaram-se no caminho de Miguel Vilar, que se classifica como um pioneiro. "Todos os pilotos que passaram na Fórmula 1 pisaram as pedras que eu deixei no caminho", afirma. "Não os ajudei, mas fui o Vasco da Gama deles", sublinha. Em terras de sua majestade britânica, o português chegou a competir no Campeonato Europeu de Fórmula Opel, naquele que poderia ter sido o seu passaporte para a Fórmula 1, mas não conseguiu impor-se: "Eu não ganhei, nunca tive o talento, o dinheiro ou a sorte", reconhece. Seria, no entanto, no mais trivial dos percursos, sem qualquer tipo de adversário, que viria a perder bem mais do que um lugar no pódio ou um troféu.

Pouco passava das 11h00 do dia 28 de Janeiro de 1997. Miguel, que havia regressado a Portugal no início da década, após três anos no estrangeiro, dirigia-se para casa, de automóvel, quando uma pedra de cinco quilos, que se encontrava no pavimento da A5, foi projectada pelo veículo que seguia à sua frente. A pedra atravessou o pára-brisas e atingiu-o na cabeça. Miguel não se lembra, mas perdeu o controlo do carro, e a pancada provocou-lhe fractura do crânio com afundamento e perda de massa encefálica. Seguiram-se duas cirurgias complicadas e um coma profundo de um mês. Quando voltou a abrir os olhos, Miguel constatou que tinha a parte esquerda do corpo paralisada. Os prognósticos não eram animadores: "Diziam que não teria uma vida normal, que teria de ser dependente". Mas de um momento para o outro começou a andar. "Foi como se estivesse doente e depois ficasse bom. No hospital, achavam impossível o que estava a acontecer."

Passados dois meses, regressou a casa, mas perdeu tudo o que tinha construído: a carreira de piloto, as empresas que tinha e, pouco tempo depois, a mulher e as duas filhas. Confessa: "A vida, para mim, deixou de ter significado, fiquei sozinho".

"Eu era um ET"

Não baixou os braços, mesmo confinado ao espaço da sua casa. "Eu era um ET", lembra o antigo piloto, a respeito da sua débil condição física naquela altura. Foi através de um artigo de jornal que soube do percurso do investigador António Damásio, então director do departamento de Neurologia da Universidade do Iowa, nos EUA. Miguel decidiu contactá-lo. "Nunca tinha ouvido falar de António Damásio, só conhecia o Manuel Damásio, do Benfica", brinca. Telefonou para a embaixada dos EUA, para pedir o número da universidade, e, "à "portuga" desavergonhado", chegou à conversa com o neurocientista.

Miguel viajou várias vezes para os EUA, para se encontrar com António Damásio, e a sua história tornou-se mesmo num case study do cientista português, para quem o ex-piloto guarda os maiores elogios: "É um parceiro, solidário, cúmplice, e um grande amigo", refere. Sobre o caso de Miguel, o investigador de neurociência sublinhou a sua força de vontade, a qual "é absolutamente imprescindível para se fazer uma recuperação" deste género.

O melhor do Público no email Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Subscrever ×

Ao mesmo tempo que a sua situação registava melhoras, Miguel travava uma outra luta, na Justiça, para apurar responsabilidades pelo que lhe tinha acontecido. Após oito anos, a Brisa, empresa concessionária da A5, foi absolvida. "Alegaram que era impossível ter uma vigilância permanente e contínua nas estradas", conta, indignado. "Bolas! Eu levei com um calhau de cinco quilos, num local onde não há pontes, a pedra estava no meio da estrada", argumenta. O Fundo de Garantia Automóvel, por sua vez, foi condenado a pagar uma indemnização, cujo montante Miguel não revela. Diz apenas que, com esse dinheiro, comprou uma casa.

Aos 54 anos, Miguel iniciou uma etapa que o levará a percorrer, de bicicleta, os EUA, de uma costa à outra. Um total de 4008 quilómetros separam Jacksonville, de onde saiu no passado domingo, dia 17 de Julho, e Los Angeles, aonde chegará no dia 30 de Agosto, a tempo de passar o seu aniversário com António Damásio, que actualmente dirige o USC Brain and Creativity Institute. Na estrada, Miguel leva consigo uma mensagem, que deseja transmitir a todos os que passam por dificuldades: "Se ele conseguiu, eu também posso conseguir".

Do acidente, Miguel guarda apenas memórias do tempo que passou no hospital. E a pedra, a mesma que quase lhe roubou a vida. Olha para ela todos os dias. "É uma taça", garante. Aquela pedra mostrou-lhe o quanto a vida pode mudar num instante. Passados 14 anos, ninguém sabe o que fazia ali, exactamente ali, naquele instante, naquele pedaço ínfimo de estrada, uma pedra de cinco quilos.

Há 14 anos ouviu dos médicos o que preferia não ouvir: seria dependente para o resto da vida. Miguel Vilar recomeçou a andar e o seu caso serviu de case study para António Damásio

Um apaixonado pelo desporto automóvel, Miguel começou a competir aos 17 anos, primeiro como co-piloto, mais tarde ao volante. "O meu sonho e o meu objectivo, desde miúdo, eram ser piloto de Fórmula 1. Abdiquei de tudo para seguir o meu caminho", recorda. Em 1987, então com 31 anos, Miguel decidiu "pegar na tralha" e rumar a Inglaterra, a Meca do automobilismo.

Nomes sonantes do desporto motorizado como Damon Hill, Michael Schumacher e Mika Häkkinen cruzaram-se no caminho de Miguel Vilar, que se classifica como um pioneiro. "Todos os pilotos que passaram na Fórmula 1 pisaram as pedras que eu deixei no caminho", afirma. "Não os ajudei, mas fui o Vasco da Gama deles", sublinha. Em terras de sua majestade britânica, o português chegou a competir no Campeonato Europeu de Fórmula Opel, naquele que poderia ter sido o seu passaporte para a Fórmula 1, mas não conseguiu impor-se: "Eu não ganhei, nunca tive o talento, o dinheiro ou a sorte", reconhece. Seria, no entanto, no mais trivial dos percursos, sem qualquer tipo de adversário, que viria a perder bem mais do que um lugar no pódio ou um troféu.

Pouco passava das 11h00 do dia 28 de Janeiro de 1997. Miguel, que havia regressado a Portugal no início da década, após três anos no estrangeiro, dirigia-se para casa, de automóvel, quando uma pedra de cinco quilos, que se encontrava no pavimento da A5, foi projectada pelo veículo que seguia à sua frente. A pedra atravessou o pára-brisas e atingiu-o na cabeça. Miguel não se lembra, mas perdeu o controlo do carro, e a pancada provocou-lhe fractura do crânio com afundamento e perda de massa encefálica. Seguiram-se duas cirurgias complicadas e um coma profundo de um mês. Quando voltou a abrir os olhos, Miguel constatou que tinha a parte esquerda do corpo paralisada. Os prognósticos não eram animadores: "Diziam que não teria uma vida normal, que teria de ser dependente". Mas de um momento para o outro começou a andar. "Foi como se estivesse doente e depois ficasse bom. No hospital, achavam impossível o que estava a acontecer."

Passados dois meses, regressou a casa, mas perdeu tudo o que tinha construído: a carreira de piloto, as empresas que tinha e, pouco tempo depois, a mulher e as duas filhas. Confessa: "A vida, para mim, deixou de ter significado, fiquei sozinho".

"Eu era um ET"

Não baixou os braços, mesmo confinado ao espaço da sua casa. "Eu era um ET", lembra o antigo piloto, a respeito da sua débil condição física naquela altura. Foi através de um artigo de jornal que soube do percurso do investigador António Damásio, então director do departamento de Neurologia da Universidade do Iowa, nos EUA. Miguel decidiu contactá-lo. "Nunca tinha ouvido falar de António Damásio, só conhecia o Manuel Damásio, do Benfica", brinca. Telefonou para a embaixada dos EUA, para pedir o número da universidade, e, "à "portuga" desavergonhado", chegou à conversa com o neurocientista.

Miguel viajou várias vezes para os EUA, para se encontrar com António Damásio, e a sua história tornou-se mesmo num case study do cientista português, para quem o ex-piloto guarda os maiores elogios: "É um parceiro, solidário, cúmplice, e um grande amigo", refere. Sobre o caso de Miguel, o investigador de neurociência sublinhou a sua força de vontade, a qual "é absolutamente imprescindível para se fazer uma recuperação" deste género.

O melhor do Público no email Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Subscrever ×

Ao mesmo tempo que a sua situação registava melhoras, Miguel travava uma outra luta, na Justiça, para apurar responsabilidades pelo que lhe tinha acontecido. Após oito anos, a Brisa, empresa concessionária da A5, foi absolvida. "Alegaram que era impossível ter uma vigilância permanente e contínua nas estradas", conta, indignado. "Bolas! Eu levei com um calhau de cinco quilos, num local onde não há pontes, a pedra estava no meio da estrada", argumenta. O Fundo de Garantia Automóvel, por sua vez, foi condenado a pagar uma indemnização, cujo montante Miguel não revela. Diz apenas que, com esse dinheiro, comprou uma casa.

Aos 54 anos, Miguel iniciou uma etapa que o levará a percorrer, de bicicleta, os EUA, de uma costa à outra. Um total de 4008 quilómetros separam Jacksonville, de onde saiu no passado domingo, dia 17 de Julho, e Los Angeles, aonde chegará no dia 30 de Agosto, a tempo de passar o seu aniversário com António Damásio, que actualmente dirige o USC Brain and Creativity Institute. Na estrada, Miguel leva consigo uma mensagem, que deseja transmitir a todos os que passam por dificuldades: "Se ele conseguiu, eu também posso conseguir".

Do acidente, Miguel guarda apenas memórias do tempo que passou no hospital. E a pedra, a mesma que quase lhe roubou a vida. Olha para ela todos os dias. "É uma taça", garante. Aquela pedra mostrou-lhe o quanto a vida pode mudar num instante. Passados 14 anos, ninguém sabe o que fazia ali, exactamente ali, naquele instante, naquele pedaço ínfimo de estrada, uma pedra de cinco quilos.

marcar artigo