Vivemos em sociedades que cultivam a utopia da eliminação quase absoluta do risco

25-10-2012
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O tribunal italiano que condenou os cientistas pode ter dado um passo perigoso

"Por que nos roubaram o medo?" A pergunta é da autoria de Vincenzo Vittorini, médico italiano, habitante de Áquila, a cidade que foi assolada e devastada por um tremor de terra na madrugada de 6 de Abril de 2009. Há qualquer coisa de estranho nesta peculiar interrogação. Por que revela Vittorini tanta revolta perante algo que nos tem vindo a ser apresentado como uma das grandes conquistas da Humanidade, o recuo histórico do medo humano? Devido a que tipo de paradoxo um homem de formação científica apela ao regresso desse mundo instintivo e quase sempre cruel característico de um tempo anterior à prevalência da razão humana na relação com o cosmos e com os outros? O grito de Vittorini extravasa em muito a tragédia da sua cidade, já que interpela aspectos fundamentais das sociedades contemporâneas - o lugar e o estatuto da ciência, a relação dos indivíduos com o risco, a ampliação desmesurada da retórica dos direitos, a própria noção de justiça.

Recordemos o que se passou nos dias que antecederam a ocorrência da catástrofe natural naquela região italiana. A terra começou a tremer, o que não constitui ali um acontecimento invulgar, gerando ansiedade na população e nas autoridades públicas; estas, inquietas, solicitaram a Roma o envio de uma equipa de especialistas com a incumbência de realizarem uma avaliação objectiva da situação com a consequente antevisão dos riscos realmente existentes. Os cientistas chegaram, levaram a cabo os seus estudos e concluíram pela inexistência de um risco elevado de ocorrência de uma tragédia, vendo na sucessão de pequenos sismos um sinal de que o terramoto estaria gradualmente a perder força. Perante tal informação as autoridades apressaram-se a sossegar os habitantes, instaurando um clima de tranquilidade.

Naquela noite de Abril de 2009, contrariamente ao que teria sucedido na ausência de uma comunicação cientificamente fundamentada, as pessoas optaram por permanecer no interior das suas casas, não saindo para as ruas e para as praças, como era prática habitual. O terramoto apanhou-as mais do que desprevenidas, atingiu-as e matou-as em estado de engano.

Desde esse dia Vittorini vive dominado por esta insuperável inquietação - e se as autoridades públicas não tivessem silenciado os nossos medos? À sua angústia individual correspondeu a justiça italiana, instaurando um processo judicial, inculpando e condenando os cientistas acusados de terem emitido uma opinião errada. As instituições queriam culpados que pudessem exibir diante da dor e da ansiedade dos sobreviventes de Áquila. Vivemos em sociedades que cultivam a utopia da eliminação quase absoluta do risco; como em nenhuma outra época, devido ao extraordinário avanço do conhecimento científico, a Humanidade tem uma consciência profunda dos perigos e das ameaças que a rodeiam, desde o campo geofísico até ao domínio económico-social passando naturalmente pelas esferas da biologia e da medicina. Sobretudo nas sociedades democráticas tão aguda consciência, associada à progressiva ampliação do leque dos direitos reclamados, tem vindo a conduzir à prevalência de uma situação de crise permanente, entendida esta como tensão subjectivamente experimentada entre o receio obsessivo da catástrofe e a crença numa protecção de natureza quase mágica face à mesma. É por isso que aos cientistas e aos técnicos são exigidos verdadeiros poderes demiúrgicos.

Se é verdade que a retórica dos direitos fundou o Estado de direito democrático e, devidamente ampliada, legitimou e promoveu o Estado social, indubitáveis avanços civilizacionais, também não deixa de ser verdade que, levada até excessos delirantes, pode ter efeitos perniciosos para as sociedades humanas.

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Aquando do grande terramoto de Lisboa alguns dos maiores espíritos europeus questionaram a entidade divina e a possibilidade da sua bondade. Agora os homens apelam à Ciência e ao mesmo tempo condenam os cientistas. Essa condenação assente numa vontade primária de superação da frustração resultante da inevitável incapacidade da supressão radical de risco pode originar uma sociedade avessa à iniciativa, recolhida numa prudência anestesiante e desprovida de verdadeiro impulso criativo. O receio excessivo do risco constitui um dos principais problemas das sociedades contemporâneas com potenciais implicações dramáticas na investigação científica, no esforço de inovação e no próprio crescimento económico.

Num outro plano, o da Justiça, também este caso comporta ensinamentos que extravasam em muito o seu âmbito local. O tribunal italiano que condenou com inusitada severidade os cientistas envolvidos neste processo pode ter dado um passo perigoso no sentido da banalização de actos de criminalização de pareceres científicos. Os cientistas correm o risco de passarem a ser a versão contemporânea das bruxas medievais. Ora a Ciência, por definição, não lida com verdades absolutas. O populismo justicialista que tantas vezes afecta o poder judicial, devidamente acicatado por políticos fracos e por um jornalismo execrável, pode ter consequências verdadeiramente trágicas. Até por isso mesmo, compreendendo da melhor forma a interrogação de Vittorini, é preciso não ter medo do medo.

O tribunal italiano que condenou os cientistas pode ter dado um passo perigoso

"Por que nos roubaram o medo?" A pergunta é da autoria de Vincenzo Vittorini, médico italiano, habitante de Áquila, a cidade que foi assolada e devastada por um tremor de terra na madrugada de 6 de Abril de 2009. Há qualquer coisa de estranho nesta peculiar interrogação. Por que revela Vittorini tanta revolta perante algo que nos tem vindo a ser apresentado como uma das grandes conquistas da Humanidade, o recuo histórico do medo humano? Devido a que tipo de paradoxo um homem de formação científica apela ao regresso desse mundo instintivo e quase sempre cruel característico de um tempo anterior à prevalência da razão humana na relação com o cosmos e com os outros? O grito de Vittorini extravasa em muito a tragédia da sua cidade, já que interpela aspectos fundamentais das sociedades contemporâneas - o lugar e o estatuto da ciência, a relação dos indivíduos com o risco, a ampliação desmesurada da retórica dos direitos, a própria noção de justiça.

Recordemos o que se passou nos dias que antecederam a ocorrência da catástrofe natural naquela região italiana. A terra começou a tremer, o que não constitui ali um acontecimento invulgar, gerando ansiedade na população e nas autoridades públicas; estas, inquietas, solicitaram a Roma o envio de uma equipa de especialistas com a incumbência de realizarem uma avaliação objectiva da situação com a consequente antevisão dos riscos realmente existentes. Os cientistas chegaram, levaram a cabo os seus estudos e concluíram pela inexistência de um risco elevado de ocorrência de uma tragédia, vendo na sucessão de pequenos sismos um sinal de que o terramoto estaria gradualmente a perder força. Perante tal informação as autoridades apressaram-se a sossegar os habitantes, instaurando um clima de tranquilidade.

Naquela noite de Abril de 2009, contrariamente ao que teria sucedido na ausência de uma comunicação cientificamente fundamentada, as pessoas optaram por permanecer no interior das suas casas, não saindo para as ruas e para as praças, como era prática habitual. O terramoto apanhou-as mais do que desprevenidas, atingiu-as e matou-as em estado de engano.

Desde esse dia Vittorini vive dominado por esta insuperável inquietação - e se as autoridades públicas não tivessem silenciado os nossos medos? À sua angústia individual correspondeu a justiça italiana, instaurando um processo judicial, inculpando e condenando os cientistas acusados de terem emitido uma opinião errada. As instituições queriam culpados que pudessem exibir diante da dor e da ansiedade dos sobreviventes de Áquila. Vivemos em sociedades que cultivam a utopia da eliminação quase absoluta do risco; como em nenhuma outra época, devido ao extraordinário avanço do conhecimento científico, a Humanidade tem uma consciência profunda dos perigos e das ameaças que a rodeiam, desde o campo geofísico até ao domínio económico-social passando naturalmente pelas esferas da biologia e da medicina. Sobretudo nas sociedades democráticas tão aguda consciência, associada à progressiva ampliação do leque dos direitos reclamados, tem vindo a conduzir à prevalência de uma situação de crise permanente, entendida esta como tensão subjectivamente experimentada entre o receio obsessivo da catástrofe e a crença numa protecção de natureza quase mágica face à mesma. É por isso que aos cientistas e aos técnicos são exigidos verdadeiros poderes demiúrgicos.

Se é verdade que a retórica dos direitos fundou o Estado de direito democrático e, devidamente ampliada, legitimou e promoveu o Estado social, indubitáveis avanços civilizacionais, também não deixa de ser verdade que, levada até excessos delirantes, pode ter efeitos perniciosos para as sociedades humanas.

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Aquando do grande terramoto de Lisboa alguns dos maiores espíritos europeus questionaram a entidade divina e a possibilidade da sua bondade. Agora os homens apelam à Ciência e ao mesmo tempo condenam os cientistas. Essa condenação assente numa vontade primária de superação da frustração resultante da inevitável incapacidade da supressão radical de risco pode originar uma sociedade avessa à iniciativa, recolhida numa prudência anestesiante e desprovida de verdadeiro impulso criativo. O receio excessivo do risco constitui um dos principais problemas das sociedades contemporâneas com potenciais implicações dramáticas na investigação científica, no esforço de inovação e no próprio crescimento económico.

Num outro plano, o da Justiça, também este caso comporta ensinamentos que extravasam em muito o seu âmbito local. O tribunal italiano que condenou com inusitada severidade os cientistas envolvidos neste processo pode ter dado um passo perigoso no sentido da banalização de actos de criminalização de pareceres científicos. Os cientistas correm o risco de passarem a ser a versão contemporânea das bruxas medievais. Ora a Ciência, por definição, não lida com verdades absolutas. O populismo justicialista que tantas vezes afecta o poder judicial, devidamente acicatado por políticos fracos e por um jornalismo execrável, pode ter consequências verdadeiramente trágicas. Até por isso mesmo, compreendendo da melhor forma a interrogação de Vittorini, é preciso não ter medo do medo.

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