Da Literatura: JULIEN GREEN

28-01-2012
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Hoje no Público:Como em todos os géneros, a literatura de viagens tem os seus clássicos: de Heródoto a Bruce Chatwin, sem esquecer Nerval, Sterne, Durrell, Maalouf e outros, a genealogia é vasta. Mas tenho dúvidas sobre se Paris, de Julien Green (1900-1998), faz parte dela. O livro é magnífico, embora o considere mais um diário que um livro de viagens.Escritor francês de nacionalidade americana, como a si mesmo se definia, Green escreveu Paris como quem deixa um testamento. Escrito em diferentes fases da vida, quase sempre do outro lado do Atlântico, até porque «estar sentado ao colo do modelo que nos propomos pintar nunca [lhe] pareceu a posição ideal.» De longe, de Copenhaga, por exemplo, podia ver Paris muito bem, apesar da bruma e dos campanários verde-amêndoa da capital dinamarquesa. O mesmo se diga de Nova Iorque: «Agora que escrevo estas linhas e que, virando à direita, vejo as águas cinzentas e geladas do East River, um caudal preguiçoso desenha as suas margens em redor dos arcos da Pont Royal, e eu não estou lá para o ver; também lá não estou para ver os plátanos que bordejam o cais do Louvre e que a esta hora se agitam sob a nortada de Março.» Os anos da Segunda Grande Guerra, durante os quais, em consequência da mobilização, trabalhou na emissora oficial Voz da América, terão sido o intervalo propício: «Os franceses sofrem privações terríveis, sabemo-lo, mas há uma privação que não sentiram, a privação da própria França.» E, em abono da dor da França ocupada, cita Jeremias.Filho de pais americanos, educado na cultura protestante dos sulistas (a família é oriunda da Geórgia), Green, que nasceu e morreu em Paris, recusou sempre naturalizar-se francês. Não obstante, apesar de estrangeiro, acedeu à Academia Francesa em 1971. Em Paris viveu quase toda a vida, em Paris se converteu (em 1916) ao catolicismo, em Paris travou os combates ideológicos do seu tempo. Tendo começado por escrever na língua materna, adoptou o francês assim que (em 1922) se tornou um escritor profissional. Escreveu dezenas de romances, ensaios, um diário, peças de teatro, uma autobiografia em cinco volumes, artigos de vária índole, uma biografia de São Francisco de Assis, e ainda, sob pseudónimo de Théophile Delaport, o célebre Pamphlet contre les catholiques de France (1924). Paris, publicado em 1983, foi o livro derradeiro.Lendo-o, é difícil não recordar o comentário de Cocteau: «Green si timide a de l’héroïsme dans sa chambre, seul avec son encre et son papier.» Com efeito, Paris é uma espécie de ajuste de contas com o passado, na pessoa da cidade, se assim se pode dizer. Em Passy, o bairro da infância, podia «facilmente imaginar-[se] a uma hora de distância de Paris», mas esse tempo de magia acabou, e a fealdade tomou conta de tudo: «Fica-se estupefacto com aquilo de que foi capaz um quarto de século para arruinar o encanto desta zona da cidade. [...] O único consolo para a catástrofe são as profundezas ainda intactas da avenida Henri-Martin, quando, no início do Verão, a abóbada opaca dos castanheiros providencia um resto de frescura e, naquele túnel verdejante rasgado por raios luminosos, vejo um cavaleiro esquecido do seu tempo, que foge a galope em direcção a Ontem.» Não tratamos da Paris que é, mas da que foi: o remoto pretérito dos dias felizes.Cada capítulo constitui um pequeno ensaio, excepto um (“Museus, Ruas, Rostos e Estações do Ano”), no qual Green colige apontamentos do quotidiano: vendedores ambulantes, chuva nos telhados, a tristeza da cidade («de todas as grandes cidades que já vi, Paris é uma das mais tristes, apesar da reputação de alegria...»), iconoclastia operária, igrejas, obras de arte, os primitivos Halles (onde hoje existe o Centro Pompidou), memória difusa do Maio 68, o «aborrecimento quase sobrenatural» das multidões, os jardins das Tulherias, o Sena, a justeza de volumes da Salpêtrière, fenómenos de refracção a partir da janela do seu quarto, etc. Tema ausente, o sexo. Não é de estranhar, porquanto Green, homossexual assumido desde a juventude, foi sempre avesso ao eco mundano da sua vida privada.Isso não o impede de referir Mark, companheiro de estudos, amante impossível, para quem escreveu The Apprentice Psychiatrist (conto de 1920, publicado na revista da Universidade da Virginia), porque a impossibilidade não impediu Mark de o ir ver a Paris, e ele mostrou-lhe a cidade, «satisfeito de ver o [seu] entusiasmo reflectir-se nos seus olhos», como sempre acontecia com os amigos que chegavam da América, e mais tarde com Éric Jourdan, o escritor gay que adoptou como filho.Pensando bem, uma viagem interior não deixa de ser uma viagem.Memórias dos dias felizes, in Ípsilon, 3-10-2008, pp. 36-37. Quatro estrelas e meia.Etiquetas: Crítica literária

Hoje no Público:Como em todos os géneros, a literatura de viagens tem os seus clássicos: de Heródoto a Bruce Chatwin, sem esquecer Nerval, Sterne, Durrell, Maalouf e outros, a genealogia é vasta. Mas tenho dúvidas sobre se Paris, de Julien Green (1900-1998), faz parte dela. O livro é magnífico, embora o considere mais um diário que um livro de viagens.Escritor francês de nacionalidade americana, como a si mesmo se definia, Green escreveu Paris como quem deixa um testamento. Escrito em diferentes fases da vida, quase sempre do outro lado do Atlântico, até porque «estar sentado ao colo do modelo que nos propomos pintar nunca [lhe] pareceu a posição ideal.» De longe, de Copenhaga, por exemplo, podia ver Paris muito bem, apesar da bruma e dos campanários verde-amêndoa da capital dinamarquesa. O mesmo se diga de Nova Iorque: «Agora que escrevo estas linhas e que, virando à direita, vejo as águas cinzentas e geladas do East River, um caudal preguiçoso desenha as suas margens em redor dos arcos da Pont Royal, e eu não estou lá para o ver; também lá não estou para ver os plátanos que bordejam o cais do Louvre e que a esta hora se agitam sob a nortada de Março.» Os anos da Segunda Grande Guerra, durante os quais, em consequência da mobilização, trabalhou na emissora oficial Voz da América, terão sido o intervalo propício: «Os franceses sofrem privações terríveis, sabemo-lo, mas há uma privação que não sentiram, a privação da própria França.» E, em abono da dor da França ocupada, cita Jeremias.Filho de pais americanos, educado na cultura protestante dos sulistas (a família é oriunda da Geórgia), Green, que nasceu e morreu em Paris, recusou sempre naturalizar-se francês. Não obstante, apesar de estrangeiro, acedeu à Academia Francesa em 1971. Em Paris viveu quase toda a vida, em Paris se converteu (em 1916) ao catolicismo, em Paris travou os combates ideológicos do seu tempo. Tendo começado por escrever na língua materna, adoptou o francês assim que (em 1922) se tornou um escritor profissional. Escreveu dezenas de romances, ensaios, um diário, peças de teatro, uma autobiografia em cinco volumes, artigos de vária índole, uma biografia de São Francisco de Assis, e ainda, sob pseudónimo de Théophile Delaport, o célebre Pamphlet contre les catholiques de France (1924). Paris, publicado em 1983, foi o livro derradeiro.Lendo-o, é difícil não recordar o comentário de Cocteau: «Green si timide a de l’héroïsme dans sa chambre, seul avec son encre et son papier.» Com efeito, Paris é uma espécie de ajuste de contas com o passado, na pessoa da cidade, se assim se pode dizer. Em Passy, o bairro da infância, podia «facilmente imaginar-[se] a uma hora de distância de Paris», mas esse tempo de magia acabou, e a fealdade tomou conta de tudo: «Fica-se estupefacto com aquilo de que foi capaz um quarto de século para arruinar o encanto desta zona da cidade. [...] O único consolo para a catástrofe são as profundezas ainda intactas da avenida Henri-Martin, quando, no início do Verão, a abóbada opaca dos castanheiros providencia um resto de frescura e, naquele túnel verdejante rasgado por raios luminosos, vejo um cavaleiro esquecido do seu tempo, que foge a galope em direcção a Ontem.» Não tratamos da Paris que é, mas da que foi: o remoto pretérito dos dias felizes.Cada capítulo constitui um pequeno ensaio, excepto um (“Museus, Ruas, Rostos e Estações do Ano”), no qual Green colige apontamentos do quotidiano: vendedores ambulantes, chuva nos telhados, a tristeza da cidade («de todas as grandes cidades que já vi, Paris é uma das mais tristes, apesar da reputação de alegria...»), iconoclastia operária, igrejas, obras de arte, os primitivos Halles (onde hoje existe o Centro Pompidou), memória difusa do Maio 68, o «aborrecimento quase sobrenatural» das multidões, os jardins das Tulherias, o Sena, a justeza de volumes da Salpêtrière, fenómenos de refracção a partir da janela do seu quarto, etc. Tema ausente, o sexo. Não é de estranhar, porquanto Green, homossexual assumido desde a juventude, foi sempre avesso ao eco mundano da sua vida privada.Isso não o impede de referir Mark, companheiro de estudos, amante impossível, para quem escreveu The Apprentice Psychiatrist (conto de 1920, publicado na revista da Universidade da Virginia), porque a impossibilidade não impediu Mark de o ir ver a Paris, e ele mostrou-lhe a cidade, «satisfeito de ver o [seu] entusiasmo reflectir-se nos seus olhos», como sempre acontecia com os amigos que chegavam da América, e mais tarde com Éric Jourdan, o escritor gay que adoptou como filho.Pensando bem, uma viagem interior não deixa de ser uma viagem.Memórias dos dias felizes, in Ípsilon, 3-10-2008, pp. 36-37. Quatro estrelas e meia.Etiquetas: Crítica literária

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