ambio: Walt Disney e os lobos da serra da Nave

03-07-2011
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"Por vezes, a compreensão da ideologia basta para restabelecer a "normalidade" de um comportamento. Recordemos um único exemplo: a imitação dos gritos dos animais. Durante mais de um século, acreditou-se que esses gritos estranhos do xamane eram a prova do seu desequilíbrio mental. Porém, tratava-se de coisa muito diferente: da nostalgia do Paraíso que assediava já Isaías e Virgílio, que alimentava a santidade dos padres da Igreja e que desabrochava, vitoriosa, na vida de São Francisco de Assis".Estou convencido de que Mircea Eliade encontraria no Público de hoje matéria que lhe interessasse sobre os mitos do bom selvagem ou a nostalgia do Paraíso.É muito interessante verificar como no coração do pensamento moderno se mantém vivo o pensamento selvagem, como desde sempre.""Imagino-me a ser lobo agora e há cinquenta anos. Eles acabaram por se habituar a um novo meio onde há mais pessoas do que havia e há carros", diz Sara Roque, também bióloga do Grupo Lobo".Deixando de lado a fascinante análise da relação com os grupos humanos e os animais totémicos adoptados, vejamos como o mito se encrava no seio do discurso dos cientistas, o que não é o mesmo que dizer no discurso científico.É muito interessante como Sara Roque abandona a lógica científica (a compreensão dos animais enquanto animais) para encarnar a lógica da humanização dos animais, mesmo que disfarçada da animalização dos homens (a técnica genial de Walt Disney).E é porque se abandona o campo do pensamento científico, trocando-o pelo pensamento selvagem e a clássica nostalgia do Paraíso que é possível ouvir Sara Roque falar de um tempo mítico em que os lobos não tinham de conviver com pessoas e carros.O curioso é que os lobos não se preocupam excessivamente com os carros, sabem conviver com eles, têm sido encontradas evidências de reprodução muito próximo de áreas altamente perturbadas, como a construção de estradas ou de parques eólicos. Para além disso ninguém sabe se o lobo fica mais perturbado com um carro que passa com um trajecto definido e num espaço de tempo curto ou se com uma matilha de cães, por exemplo. Mas mais que tudo, há cinquenta anos aquelas serras tinham incomparavelmente mais gente e mais actividade que têm hoje.Mas nada disto interessa muito porque na realidade o que se trata é de uma comunhão emocional com o animal e não de um trabalho científico como seja procurar compreendê-lo na sua irredutível diferença dos humanos.O mesmo se diria de Francisco Álvares, quando compara a serra à nossa casa e fala de torres eólicos na sala e no quarto.É de novo um pensamento que sai das regras estreitas do pensamento científico que lhe permite dizer que:1) os lobos são muito fiéis ao seu território e já se constatou, nas áreas onde foram construídos parques eólicos, que eles não desapareceram desses locais (facto verificado);2) mas alteram comportamentos (facto verificado);3) com mais parques eólicos há mais dificuldade na obtenção de alimentos, de caça e na reprodução (facto não verificado em lado nenhum, mas coerente com a ideia de que alteração é sempre perda, muito comum na base ideológica da biologia da conservação).O mais curioso é que o facto dos lobos se manterem alterando os seus comportamentos não é avaliado como positivo (embora na teoria a capacidade de adaptação a novas circunstâncias seja considerada como uma vantagem) mas sim como uma hipótese de problema, aliás não verificada empiricamente.Voltarei provavelmente a este fascinante artigo do Público de hoje, mas não quis deixar de assinalar como é ténue a fronteira que separa o pensamento moderno do pensamento selvagem quando estão em causa fenómenos a que estamos ligados por profundas emoções.henrique pereira dos santos


"Por vezes, a compreensão da ideologia basta para restabelecer a "normalidade" de um comportamento. Recordemos um único exemplo: a imitação dos gritos dos animais. Durante mais de um século, acreditou-se que esses gritos estranhos do xamane eram a prova do seu desequilíbrio mental. Porém, tratava-se de coisa muito diferente: da nostalgia do Paraíso que assediava já Isaías e Virgílio, que alimentava a santidade dos padres da Igreja e que desabrochava, vitoriosa, na vida de São Francisco de Assis".Estou convencido de que Mircea Eliade encontraria no Público de hoje matéria que lhe interessasse sobre os mitos do bom selvagem ou a nostalgia do Paraíso.É muito interessante verificar como no coração do pensamento moderno se mantém vivo o pensamento selvagem, como desde sempre.""Imagino-me a ser lobo agora e há cinquenta anos. Eles acabaram por se habituar a um novo meio onde há mais pessoas do que havia e há carros", diz Sara Roque, também bióloga do Grupo Lobo".Deixando de lado a fascinante análise da relação com os grupos humanos e os animais totémicos adoptados, vejamos como o mito se encrava no seio do discurso dos cientistas, o que não é o mesmo que dizer no discurso científico.É muito interessante como Sara Roque abandona a lógica científica (a compreensão dos animais enquanto animais) para encarnar a lógica da humanização dos animais, mesmo que disfarçada da animalização dos homens (a técnica genial de Walt Disney).E é porque se abandona o campo do pensamento científico, trocando-o pelo pensamento selvagem e a clássica nostalgia do Paraíso que é possível ouvir Sara Roque falar de um tempo mítico em que os lobos não tinham de conviver com pessoas e carros.O curioso é que os lobos não se preocupam excessivamente com os carros, sabem conviver com eles, têm sido encontradas evidências de reprodução muito próximo de áreas altamente perturbadas, como a construção de estradas ou de parques eólicos. Para além disso ninguém sabe se o lobo fica mais perturbado com um carro que passa com um trajecto definido e num espaço de tempo curto ou se com uma matilha de cães, por exemplo. Mas mais que tudo, há cinquenta anos aquelas serras tinham incomparavelmente mais gente e mais actividade que têm hoje.Mas nada disto interessa muito porque na realidade o que se trata é de uma comunhão emocional com o animal e não de um trabalho científico como seja procurar compreendê-lo na sua irredutível diferença dos humanos.O mesmo se diria de Francisco Álvares, quando compara a serra à nossa casa e fala de torres eólicos na sala e no quarto.É de novo um pensamento que sai das regras estreitas do pensamento científico que lhe permite dizer que:1) os lobos são muito fiéis ao seu território e já se constatou, nas áreas onde foram construídos parques eólicos, que eles não desapareceram desses locais (facto verificado);2) mas alteram comportamentos (facto verificado);3) com mais parques eólicos há mais dificuldade na obtenção de alimentos, de caça e na reprodução (facto não verificado em lado nenhum, mas coerente com a ideia de que alteração é sempre perda, muito comum na base ideológica da biologia da conservação).O mais curioso é que o facto dos lobos se manterem alterando os seus comportamentos não é avaliado como positivo (embora na teoria a capacidade de adaptação a novas circunstâncias seja considerada como uma vantagem) mas sim como uma hipótese de problema, aliás não verificada empiricamente.Voltarei provavelmente a este fascinante artigo do Público de hoje, mas não quis deixar de assinalar como é ténue a fronteira que separa o pensamento moderno do pensamento selvagem quando estão em causa fenómenos a que estamos ligados por profundas emoções.henrique pereira dos santos

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