Quando tudo está perdido, é a torrada, vez após vez, que nos salva

30-03-2012
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Em Portugal, quando se entra num café desconhecido e logo duvidoso, a Providência deu-nos um sólido e um líquido que nunca falham numa emergência: a torrada e o galão escuro com café de máquina.

É raro encontrar-se, mesmo nos antros mais manhosos, uma torrada que não se deixe comer. Não sei porque é. Talvez seja uma questão de honra. Mais naturalmente é por razão culinária: o pão tem de ser torrado e amanteigado e tudo o que acaba de ser feito é melhor do que antes ou depois.

Quando era estudante na Inglaterra vivi meses em que só comia torradas com manteiga e chá com leite. Nunca me fartava. Nem eu nem todos os outros estudantes ingleses que eu copiava. Todas me souberam bem. É um mistério do universo. É uma das consolações da pobreza: faltava-me dinheiro para comer pior.

Agora, em Portugal, com a variedade cada vez maior de pães e manteigas, nacionais e estrangeiros, a demanda da torrada perfeita é uma desculpa economicamente viável para andarmos de bela torrada em bela torrada, cometendo o grande crime nutricionistamente incorrecto de associar um dos piores hidratos de carbono a uma das piores gorduras.

Os ingleses finos arquivam as torradas como discos de vinil, ao alto, para não amolecerem. Foi assim que a minha mãe me ensinou - até nos ofereceu dois toast-racks para o efeito. E é assim que a Maria João, minha mulher, faz todos os dias, ao pequeno-almoço e ao lanche.

Mas perdem temperatura também. Não há maior luxo do que fazer uma torrada de cada vez. Torra-se, amanteiga-se depressa e, antes de ela saber o que lhe aconteceu, já levou duas dentadas.

Na cozinha colectiva de uma residência universitária, onde o tédio leva a comportamentos extremos, fazer torradas tornou-se um desporto competitivo. A primeira regra das torradas é: o pão pode ser mau mas a manteiga tem de ser boa.

A preparação da manteiga é essencial. Há quem goste da manteiga fria, para se partir em cima da torrada, acabando por derreter-se enquanto se come. Se o objectivo é comer o mais manteiga possível (sobretudo quando o pão não presta) esta é a melhor maneira.

Se essa é a extrema-direita da torrada, o centrismo sensato é amolecer a manteiga com a faca, para se poder espalhar bem, sem ensopar o pão. A posição de extrema-esquerda - que eu adoptei e abusivamente disse ser a maneira de todos os portugueses - é derreter a manteiga e usar um pincel para pintar o pão.

O grau de torragem é outro indicador da personalidade.Ninguém respeita quem meramente aquece o pão. Um pão aquecido no forno e amanteigado é delicioso - mas é outro prato e tende a ser puritanamente nudista, porque pede uma vestimenta adicional (porventura um vórtice transparente de presunto de Parma?).

Uma torrada branca é uma vergonha. Há uma velha tradição portuguesa, de quem é viciado na adrenalina e gosta de escorregar no abismo, contando que pode dar um passo para trás e salvar-se, a de deixar queimar um bocadinho a torrada e depois raspá-la. Entretanto, a torrada arrefece e a manteiga cansa-se de esperar e já não penetra o pão, limitando-se a roçar, com desprezo, a superfície.

A torrada doirada - um micro-segundo em que o pão ficou da cor de um galão claro - é uma coisa linda de se ver e comer. É este o gold standard das pastelarias portuguesas. Eu cá prefiro levá-la à cor do galão escuro: àquele momento em que as partes mais escuras ainda são castanhas mas já têm vontade de tornarem-se pretas.

A minha Auntie Elizabeth, que Deus tem, inventou uma maneira de amanteigar as torradas que influenciou toda a gente que teve contacto com ela, a começar pela melhor amiga (a minha mãe), que nos passou a palavra. Descobriu ela, aliterativamente, que, para permitir uma penetração mais profunda da manteiga, era preciso dar-lhe umas facadas primeiro, enquanto ainda estava em brasa. Com este picanço prévio obtinha-se, verdade seja dita, uma torrada de primeira.

É tudo uma questão de pressa. A torrada tem de queimar-lhe as mãos enquanto lhe acrescenta a manteiga, aos ais. O melhor é usar pinças. Pode cortá-la em dois - mas isso só faz perder tempo. A torrada ideal é aquela em que a primeira dentada é a melhor. Num mundo sem pobreza, seria só essa que se daria. Tal como, mesmo nas melhores pastelarias, só se comeria a fatia do meio da torrada que está por cima. A fatia do meio da torrada de baixo também é boa - mas já está fria. Ainda bem que, na sociedade em que vivemos, as pessoas comem as partes do meio e, por respeito, dão dentadas significativas nos quatro rectângulos laterais. Mesmo que deixem as côdeas - que não são côdeas senão no sentido mais cínico.

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Voltando à pastelaria manhosa: se o pão lhe parecer de pacote, peça uma carcaça torrada. Ficam sempre deliciosas porque a superfície é irregular e há diferenças de cor e de absorção de manteiga. (E pergunte se é mesmo manteiga.) Se o empregado lhe parecer azelha, peça que espalhe a manteiga do rebordo para o centro. Assim a manteiga aquece, derrete-se e toda a fatia fica devidamente encharcada.

Mas, lá está: em Portugal, é raríssimo apanhar-se uma má torrada. Dá a ideia que gostam de fazê-la. Então quando perguntam "pode ser em pão saloio?", é como se fôssemos nós que estivéssemos a transigir e apaziguam-se todos os nossos medos. O pão-de-forma de padaria com que trabalham (quem não gosta de empregar este verbo exacto?) as pastelarias portuguesas costuma ser muito bom, no sentido de muito branquinho e fofo.

Mesmo sem ser em desespero de causa, peça sempre uma torrada. Ou meia-torrada, seguida de outra com cinco minutos de intervalo, se for um perfeccionista, como ganha em ser. O galão é outra história. Mas fica para a semana.

Em Portugal, quando se entra num café desconhecido e logo duvidoso, a Providência deu-nos um sólido e um líquido que nunca falham numa emergência: a torrada e o galão escuro com café de máquina.

É raro encontrar-se, mesmo nos antros mais manhosos, uma torrada que não se deixe comer. Não sei porque é. Talvez seja uma questão de honra. Mais naturalmente é por razão culinária: o pão tem de ser torrado e amanteigado e tudo o que acaba de ser feito é melhor do que antes ou depois.

Quando era estudante na Inglaterra vivi meses em que só comia torradas com manteiga e chá com leite. Nunca me fartava. Nem eu nem todos os outros estudantes ingleses que eu copiava. Todas me souberam bem. É um mistério do universo. É uma das consolações da pobreza: faltava-me dinheiro para comer pior.

Agora, em Portugal, com a variedade cada vez maior de pães e manteigas, nacionais e estrangeiros, a demanda da torrada perfeita é uma desculpa economicamente viável para andarmos de bela torrada em bela torrada, cometendo o grande crime nutricionistamente incorrecto de associar um dos piores hidratos de carbono a uma das piores gorduras.

Os ingleses finos arquivam as torradas como discos de vinil, ao alto, para não amolecerem. Foi assim que a minha mãe me ensinou - até nos ofereceu dois toast-racks para o efeito. E é assim que a Maria João, minha mulher, faz todos os dias, ao pequeno-almoço e ao lanche.

Mas perdem temperatura também. Não há maior luxo do que fazer uma torrada de cada vez. Torra-se, amanteiga-se depressa e, antes de ela saber o que lhe aconteceu, já levou duas dentadas.

Na cozinha colectiva de uma residência universitária, onde o tédio leva a comportamentos extremos, fazer torradas tornou-se um desporto competitivo. A primeira regra das torradas é: o pão pode ser mau mas a manteiga tem de ser boa.

A preparação da manteiga é essencial. Há quem goste da manteiga fria, para se partir em cima da torrada, acabando por derreter-se enquanto se come. Se o objectivo é comer o mais manteiga possível (sobretudo quando o pão não presta) esta é a melhor maneira.

Se essa é a extrema-direita da torrada, o centrismo sensato é amolecer a manteiga com a faca, para se poder espalhar bem, sem ensopar o pão. A posição de extrema-esquerda - que eu adoptei e abusivamente disse ser a maneira de todos os portugueses - é derreter a manteiga e usar um pincel para pintar o pão.

O grau de torragem é outro indicador da personalidade.Ninguém respeita quem meramente aquece o pão. Um pão aquecido no forno e amanteigado é delicioso - mas é outro prato e tende a ser puritanamente nudista, porque pede uma vestimenta adicional (porventura um vórtice transparente de presunto de Parma?).

Uma torrada branca é uma vergonha. Há uma velha tradição portuguesa, de quem é viciado na adrenalina e gosta de escorregar no abismo, contando que pode dar um passo para trás e salvar-se, a de deixar queimar um bocadinho a torrada e depois raspá-la. Entretanto, a torrada arrefece e a manteiga cansa-se de esperar e já não penetra o pão, limitando-se a roçar, com desprezo, a superfície.

A torrada doirada - um micro-segundo em que o pão ficou da cor de um galão claro - é uma coisa linda de se ver e comer. É este o gold standard das pastelarias portuguesas. Eu cá prefiro levá-la à cor do galão escuro: àquele momento em que as partes mais escuras ainda são castanhas mas já têm vontade de tornarem-se pretas.

A minha Auntie Elizabeth, que Deus tem, inventou uma maneira de amanteigar as torradas que influenciou toda a gente que teve contacto com ela, a começar pela melhor amiga (a minha mãe), que nos passou a palavra. Descobriu ela, aliterativamente, que, para permitir uma penetração mais profunda da manteiga, era preciso dar-lhe umas facadas primeiro, enquanto ainda estava em brasa. Com este picanço prévio obtinha-se, verdade seja dita, uma torrada de primeira.

É tudo uma questão de pressa. A torrada tem de queimar-lhe as mãos enquanto lhe acrescenta a manteiga, aos ais. O melhor é usar pinças. Pode cortá-la em dois - mas isso só faz perder tempo. A torrada ideal é aquela em que a primeira dentada é a melhor. Num mundo sem pobreza, seria só essa que se daria. Tal como, mesmo nas melhores pastelarias, só se comeria a fatia do meio da torrada que está por cima. A fatia do meio da torrada de baixo também é boa - mas já está fria. Ainda bem que, na sociedade em que vivemos, as pessoas comem as partes do meio e, por respeito, dão dentadas significativas nos quatro rectângulos laterais. Mesmo que deixem as côdeas - que não são côdeas senão no sentido mais cínico.

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Voltando à pastelaria manhosa: se o pão lhe parecer de pacote, peça uma carcaça torrada. Ficam sempre deliciosas porque a superfície é irregular e há diferenças de cor e de absorção de manteiga. (E pergunte se é mesmo manteiga.) Se o empregado lhe parecer azelha, peça que espalhe a manteiga do rebordo para o centro. Assim a manteiga aquece, derrete-se e toda a fatia fica devidamente encharcada.

Mas, lá está: em Portugal, é raríssimo apanhar-se uma má torrada. Dá a ideia que gostam de fazê-la. Então quando perguntam "pode ser em pão saloio?", é como se fôssemos nós que estivéssemos a transigir e apaziguam-se todos os nossos medos. O pão-de-forma de padaria com que trabalham (quem não gosta de empregar este verbo exacto?) as pastelarias portuguesas costuma ser muito bom, no sentido de muito branquinho e fofo.

Mesmo sem ser em desespero de causa, peça sempre uma torrada. Ou meia-torrada, seguida de outra com cinco minutos de intervalo, se for um perfeccionista, como ganha em ser. O galão é outra história. Mas fica para a semana.

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