As fronteiras do totalitarismo

31-03-2012
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As fronteiras entre democracia e totalitarismo estão em mudança na sociedade portuguesa

O Governo português pondera a hipótese de isentar do pagamento de 50 euros as pessoas portadoras de deficiência e os doentes crónicos que tenham de renovar os atestados da sua incapacidade para terem direito a isenção de taxas moderadoras no SNS. A notícia foi manchete do PÚBLICO na quarta-feira e não do Inimigo Público de ontem. Traduzindo para português comum, um deficiente visual terá que pagar 50 euros para ser visto periodicamente por uma junta médica que vai confirmar que ele não vê.

É total o absurdo desta situação. Não só é absurda a dúvida sobre a isenção dos 50 euros, como é absurda a necessidade de uma junta médica confirmar que um portador de deficiência visual continua a não ver ou que um doente bipolar continua a ter necessidade de lítio ou que um diabético continua a fazer glicemias altas, se não for medicado ou que um portador de VIH continua com o vírus da sida. Será que as palavras não têm significado? Uma deficiência é uma deficiência, assim como uma doença crónica é isso mesmo, crónica, e não larvar nem intermitente.

Esta notícia abre a porta a uma realidade política que está em curso na sociedade portuguesa e em que esta funciona até como um laboratório experimental de como pode ser diminuído o nível de prestação de serviços às populações pelo Estado, que faz parte da agenda política neoliberal na União Europeia. E que passa também pela redução de apoios sociais diversos e pela reformulação de critérios que subjazem à sua atribuição. Nesse sentido, saliente-se também a notícia de que os alunos com mais dificuldades passarão a ter ensino e apoio especial em turmas separadas dos restantes (PÚBLICO 26/03/2012).

Dois tipos de medidas que, além de terem como finalidade reduzir custos e investimento do Estado, são a aplicação concreta de uma visão discriminatória, excludente e estigmatizante de pessoas que são diferentes, em função precisamente dessa diferença. Pelo menos em sociedades democráticas. Democracia é uma gestão e uma vivência da sociedade de forma inclusiva e respeitadora da dignidade de todos - ou seja, é uma sociedade que não discrimina, que não exclui, que não privilegia, que não divide as pessoas entre os próximos do poder, a quem tudo é permitido, e os outros, a quem é aplicada a lei de ferro da exclusão. Quando um Estado deixa de garantir a todas as pessoas um igual enquadramento legal e um tratamento não discriminatório nem estigmatizante das diferenças, passamos a estar perante o que é considerado como um comportamento totalitário por parte do Estado.

Ora, a forma como as fronteiras entre democracia e totalitarismo estão em mudança em Portugal foi também exposta por um outro acontecimento: a carga policial sobre uma manifestação, em Lisboa, a 22 de Março, dia da greve geral. Uma carga policial da qual saíram deliberadamente feridas pela polícia diversas pessoas que se manifestavam e também os fotojornalistas José Sena Goulão, da Lusa, e Patrícia de Melo Pereira, da agência AFP.

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É claro que a agressão a jornalistas põe em causa o direito de acesso à informação e a liberdade de imprensa e é um atentado à democracia. Mas sem desvalorizar esta, há uma dimensão que quase não em sido referida, que é a das pessoas que se manifestavam e que foram agredidas. Será que é considerado normal em Portugal que a polícia invista e espanque à bastonada cidadãos que se manifestam?

Não acredito em teorias da conspiração. E assim como considero que aquela manifestação - onde estavam, aliás, activistas de organizações diversas, entre elas de defesa de direitos humanos - não era uma manifestação de loucos ou de radicais ou de provocadores, também não creio que a polícia se tenha descontrolado e agido sem pensar. Ninguém age com aquela violência, com aquela organização, se estiver descontrolado. A questão é mais profunda. No Ministério da Administração Interna e na cadeia de comando da PSP, quem permite um comportamento autoritário, agressivo e violento como o que está filmado da acção dos membros do Corpo de Intervenção e de outras divisões da PSP?

Como é que os agentes que são colocados a garantir a segurança das manifestações atacam manifestantes indefesos? E mesmo que fosse real a tese de que havia meia dúzia de provocadores, como é que os agentes da PSP que são destacados para policiar uma manifestação não estão treinados para resistir a provocações? Se há eventuais "provocadores perigosos", a polícia não os conhece já? Tem que deixar-se provocar por eles e retaliar sobre todos os manifestantes? Será que os comportamentos típicos do autoritarismo totalitário estão assim tão instalados que quase ninguém estranha?

As fronteiras entre democracia e totalitarismo estão em mudança na sociedade portuguesa

O Governo português pondera a hipótese de isentar do pagamento de 50 euros as pessoas portadoras de deficiência e os doentes crónicos que tenham de renovar os atestados da sua incapacidade para terem direito a isenção de taxas moderadoras no SNS. A notícia foi manchete do PÚBLICO na quarta-feira e não do Inimigo Público de ontem. Traduzindo para português comum, um deficiente visual terá que pagar 50 euros para ser visto periodicamente por uma junta médica que vai confirmar que ele não vê.

É total o absurdo desta situação. Não só é absurda a dúvida sobre a isenção dos 50 euros, como é absurda a necessidade de uma junta médica confirmar que um portador de deficiência visual continua a não ver ou que um doente bipolar continua a ter necessidade de lítio ou que um diabético continua a fazer glicemias altas, se não for medicado ou que um portador de VIH continua com o vírus da sida. Será que as palavras não têm significado? Uma deficiência é uma deficiência, assim como uma doença crónica é isso mesmo, crónica, e não larvar nem intermitente.

Esta notícia abre a porta a uma realidade política que está em curso na sociedade portuguesa e em que esta funciona até como um laboratório experimental de como pode ser diminuído o nível de prestação de serviços às populações pelo Estado, que faz parte da agenda política neoliberal na União Europeia. E que passa também pela redução de apoios sociais diversos e pela reformulação de critérios que subjazem à sua atribuição. Nesse sentido, saliente-se também a notícia de que os alunos com mais dificuldades passarão a ter ensino e apoio especial em turmas separadas dos restantes (PÚBLICO 26/03/2012).

Dois tipos de medidas que, além de terem como finalidade reduzir custos e investimento do Estado, são a aplicação concreta de uma visão discriminatória, excludente e estigmatizante de pessoas que são diferentes, em função precisamente dessa diferença. Pelo menos em sociedades democráticas. Democracia é uma gestão e uma vivência da sociedade de forma inclusiva e respeitadora da dignidade de todos - ou seja, é uma sociedade que não discrimina, que não exclui, que não privilegia, que não divide as pessoas entre os próximos do poder, a quem tudo é permitido, e os outros, a quem é aplicada a lei de ferro da exclusão. Quando um Estado deixa de garantir a todas as pessoas um igual enquadramento legal e um tratamento não discriminatório nem estigmatizante das diferenças, passamos a estar perante o que é considerado como um comportamento totalitário por parte do Estado.

Ora, a forma como as fronteiras entre democracia e totalitarismo estão em mudança em Portugal foi também exposta por um outro acontecimento: a carga policial sobre uma manifestação, em Lisboa, a 22 de Março, dia da greve geral. Uma carga policial da qual saíram deliberadamente feridas pela polícia diversas pessoas que se manifestavam e também os fotojornalistas José Sena Goulão, da Lusa, e Patrícia de Melo Pereira, da agência AFP.

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É claro que a agressão a jornalistas põe em causa o direito de acesso à informação e a liberdade de imprensa e é um atentado à democracia. Mas sem desvalorizar esta, há uma dimensão que quase não em sido referida, que é a das pessoas que se manifestavam e que foram agredidas. Será que é considerado normal em Portugal que a polícia invista e espanque à bastonada cidadãos que se manifestam?

Não acredito em teorias da conspiração. E assim como considero que aquela manifestação - onde estavam, aliás, activistas de organizações diversas, entre elas de defesa de direitos humanos - não era uma manifestação de loucos ou de radicais ou de provocadores, também não creio que a polícia se tenha descontrolado e agido sem pensar. Ninguém age com aquela violência, com aquela organização, se estiver descontrolado. A questão é mais profunda. No Ministério da Administração Interna e na cadeia de comando da PSP, quem permite um comportamento autoritário, agressivo e violento como o que está filmado da acção dos membros do Corpo de Intervenção e de outras divisões da PSP?

Como é que os agentes que são colocados a garantir a segurança das manifestações atacam manifestantes indefesos? E mesmo que fosse real a tese de que havia meia dúzia de provocadores, como é que os agentes da PSP que são destacados para policiar uma manifestação não estão treinados para resistir a provocações? Se há eventuais "provocadores perigosos", a polícia não os conhece já? Tem que deixar-se provocar por eles e retaliar sobre todos os manifestantes? Será que os comportamentos típicos do autoritarismo totalitário estão assim tão instalados que quase ninguém estranha?

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