(Des)responsabilizar o Estado para responsabilizar a sociedade

13-10-2015
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1. Há já algum tempo que o Castelo de Guimarães reclamava obras de beneficiação que viessem melhorar as condições de acessibilidade e de segurança daquele monumento nacional. Sei-o bem, não só porque se trata de "minha" cidade, mas porque o castelo faz, naturalmente, parte do percurso que habitualmente percorro com aqueles que me visitam e estão a conhecer Guimarães pela primeira vez. A reabilitação de monumentos nacionais é, naturalmente, da responsabilidade do Estado mas, neste caso particular, contou com o apoio de um mecenas (a Fundação MillenniumBCP) que assegurará a contrapartida nacional aos fundos do QREN. Contudo, é pena que, não sendo este caso único, a associação dos privados na prossecução do interesse público seja ainda, no panorama global europeu - quando comparado, por exemplo, com o norte-americano, - muitíssimo incipiente.

2. Uma das maiores surpresas que tive aquando das diversas reuniões que o German Marshall Fund of the United States me proporcionou em diferentes estados norte-americanos foi, justamente, a quantidade, a natureza e a dimensão dos projectos inteiramente financiados por privados e que, por cá, só sairiam do papel se inteiramente suportados por dinheiros públicos. Desde a reabilitação das áreas históricas das cidades, passando por diferentes projectos de natureza social e de apoio aos mais desfavorecidos, pela construção de hospitais, de bibliotecas, de centros culturais, projectos de I&D nas mais diversas áreas, até às "tradicionais" bolsas de estudo universitárias. Cidades inteiras, como Pittsburgh no estado da Pensilvânia, devem uma boa parte das suas infraestruturas culturais e educacionais a fortunas individuais ou corporativas, naquele caso concreto à de Carnegie e Heinz.

A sociedade americana espera dos indivíduos e das empresas que retribuam à comunidade o bem-estar que, de uma forma ou de outra, esta lhes proporciona e avalia-os tendo em conta esse factor. Não é pois, por acaso, que o nível de voluntariado e de financiamento privado de projectos públicos seja, quando comparado com a realidade europeia, substancialmente maior. No que diz respeito ao primeiro, por exemplo, basta pensar que, de acordo com o US Bureau of Labor Statistics, cerca de 25,4% dos americanos realizaram trabalho voluntário através de uma organização pelo menos uma vez entre Setembro de 2012 e Setembro de 2013 (se considerarmos o voluntariado informal no seio da comunidade esse número sobe para perto de 47%). Em Portugal, segundo dados do INE de 2012, a média da Taxa de Voluntariado nacional situa-se nos 11,5%.

Por outro lado, a filantropia está de tal forma enraizada na cultura americana, por comparação com a europeia, que nos media proliferam rankings e estatísticas com "os mais generosos milionários" e, nesta competição, ninguém quer ficar para trás, quer se trate de filantropia individual que se trate de filantropia empresarial. Milionários como Warren Buffett ou Bill Gates doaram já uma boa parte das suas fortunas e promovem activamente acções de sensibilização que visam estimular outros a seguirem o mesmo exemplo.

As razões que suportam esta diferença são essencialmente históricas e culturais. Os Estados Unidos são um país forjado à custa de empreendedores e à custa do sector privado. Uma boa parte das tarefas que no universo europeu são consideradas um dever do estado são ali deixadas sob a responsabilidade da comunidade, as mais das vezes das mais pequenas células da comunidade: de cada condomínio, de cada bairro, de cada cidade. Apesar das críticas que contundentemente lhe dirige, a sociedade norte-americana habituou-se a conviver com um estado que pouco se faz sentir nas áreas sociais e culturais, e por isso procurou colmatar por si essa ausência. Como ouvi a muitos: "não esperámos do governo que nos resolva os problemas. O que queremos é que não nos coloque problemas quando nos aprestamos a resolvê-los".

3. Numa altura em que, por toda a Europa, os Estados estão a braços com graves constrangimentos económicos e financeiros, em que manifestamente falharam nos respectivos modelos de promoção e desenvolvimento dos sectores sociais e culturais, valia a pena repensar a lógica de estrita dependência em que assentam as sociedades europeias. Não se trata - bem entendido - de advogar para a Europa um modelo puro norte-americano, mas um meio caminho que não implique a absoluta demissão do Estado nem, por outro lado, a quase total desresponsabilização da sociedade pelos seus cidadãos.

No entanto, contrariamente ao que possa pensar-se, a questão não é inteiramente cultural ou, melhor dito, não pode defender-se uma cultura de responsabilização social numa sociedade em que o Estado chama a si os meios e burocratiza os recursos. E esta é a outra face da moeda que, de alguma forma, explica uma tal discrepância nos dois lados do atlântico. Por cá habituamo-nos a deixar por conta do Estado porque, essencialmente, já pagamos essa conta! A carga fiscal é de tal ordem que a margem que fica para indivíduos e empresas apostarem decisivamente em projectos de mecenato e financiamento privado de tarefas públicas é muitíssimo estreita. Por outro lado, não criamos um "ambiente" amigo desses projectos. O incentivo fiscal aos donativos a IPSS , ONG's ou mesmo a instituições de ensino não é relevante ou é mesmo inexistente, a burocracia associada à criação e gestão de estruturas de apoio social/cultural (independentemente da respectiva natureza jurídica) é grande e, valha a verdade, a parcela entregue por empresas e particulares ao Estado a título de taxas e impostos é já tão grande que, consciente ou inconscientemente, vem reforçar na sociedade a crença de que com esse pagamento cada um já fez a sua parte.

Para lá da espuma dos dias, vale a pena pensar se, para a sociedade dar um passo em frente, não terá o Estado de dar um passo atrás.

1. Há já algum tempo que o Castelo de Guimarães reclamava obras de beneficiação que viessem melhorar as condições de acessibilidade e de segurança daquele monumento nacional. Sei-o bem, não só porque se trata de "minha" cidade, mas porque o castelo faz, naturalmente, parte do percurso que habitualmente percorro com aqueles que me visitam e estão a conhecer Guimarães pela primeira vez. A reabilitação de monumentos nacionais é, naturalmente, da responsabilidade do Estado mas, neste caso particular, contou com o apoio de um mecenas (a Fundação MillenniumBCP) que assegurará a contrapartida nacional aos fundos do QREN. Contudo, é pena que, não sendo este caso único, a associação dos privados na prossecução do interesse público seja ainda, no panorama global europeu - quando comparado, por exemplo, com o norte-americano, - muitíssimo incipiente.

2. Uma das maiores surpresas que tive aquando das diversas reuniões que o German Marshall Fund of the United States me proporcionou em diferentes estados norte-americanos foi, justamente, a quantidade, a natureza e a dimensão dos projectos inteiramente financiados por privados e que, por cá, só sairiam do papel se inteiramente suportados por dinheiros públicos. Desde a reabilitação das áreas históricas das cidades, passando por diferentes projectos de natureza social e de apoio aos mais desfavorecidos, pela construção de hospitais, de bibliotecas, de centros culturais, projectos de I&D nas mais diversas áreas, até às "tradicionais" bolsas de estudo universitárias. Cidades inteiras, como Pittsburgh no estado da Pensilvânia, devem uma boa parte das suas infraestruturas culturais e educacionais a fortunas individuais ou corporativas, naquele caso concreto à de Carnegie e Heinz.

A sociedade americana espera dos indivíduos e das empresas que retribuam à comunidade o bem-estar que, de uma forma ou de outra, esta lhes proporciona e avalia-os tendo em conta esse factor. Não é pois, por acaso, que o nível de voluntariado e de financiamento privado de projectos públicos seja, quando comparado com a realidade europeia, substancialmente maior. No que diz respeito ao primeiro, por exemplo, basta pensar que, de acordo com o US Bureau of Labor Statistics, cerca de 25,4% dos americanos realizaram trabalho voluntário através de uma organização pelo menos uma vez entre Setembro de 2012 e Setembro de 2013 (se considerarmos o voluntariado informal no seio da comunidade esse número sobe para perto de 47%). Em Portugal, segundo dados do INE de 2012, a média da Taxa de Voluntariado nacional situa-se nos 11,5%.

Por outro lado, a filantropia está de tal forma enraizada na cultura americana, por comparação com a europeia, que nos media proliferam rankings e estatísticas com "os mais generosos milionários" e, nesta competição, ninguém quer ficar para trás, quer se trate de filantropia individual que se trate de filantropia empresarial. Milionários como Warren Buffett ou Bill Gates doaram já uma boa parte das suas fortunas e promovem activamente acções de sensibilização que visam estimular outros a seguirem o mesmo exemplo.

As razões que suportam esta diferença são essencialmente históricas e culturais. Os Estados Unidos são um país forjado à custa de empreendedores e à custa do sector privado. Uma boa parte das tarefas que no universo europeu são consideradas um dever do estado são ali deixadas sob a responsabilidade da comunidade, as mais das vezes das mais pequenas células da comunidade: de cada condomínio, de cada bairro, de cada cidade. Apesar das críticas que contundentemente lhe dirige, a sociedade norte-americana habituou-se a conviver com um estado que pouco se faz sentir nas áreas sociais e culturais, e por isso procurou colmatar por si essa ausência. Como ouvi a muitos: "não esperámos do governo que nos resolva os problemas. O que queremos é que não nos coloque problemas quando nos aprestamos a resolvê-los".

3. Numa altura em que, por toda a Europa, os Estados estão a braços com graves constrangimentos económicos e financeiros, em que manifestamente falharam nos respectivos modelos de promoção e desenvolvimento dos sectores sociais e culturais, valia a pena repensar a lógica de estrita dependência em que assentam as sociedades europeias. Não se trata - bem entendido - de advogar para a Europa um modelo puro norte-americano, mas um meio caminho que não implique a absoluta demissão do Estado nem, por outro lado, a quase total desresponsabilização da sociedade pelos seus cidadãos.

No entanto, contrariamente ao que possa pensar-se, a questão não é inteiramente cultural ou, melhor dito, não pode defender-se uma cultura de responsabilização social numa sociedade em que o Estado chama a si os meios e burocratiza os recursos. E esta é a outra face da moeda que, de alguma forma, explica uma tal discrepância nos dois lados do atlântico. Por cá habituamo-nos a deixar por conta do Estado porque, essencialmente, já pagamos essa conta! A carga fiscal é de tal ordem que a margem que fica para indivíduos e empresas apostarem decisivamente em projectos de mecenato e financiamento privado de tarefas públicas é muitíssimo estreita. Por outro lado, não criamos um "ambiente" amigo desses projectos. O incentivo fiscal aos donativos a IPSS , ONG's ou mesmo a instituições de ensino não é relevante ou é mesmo inexistente, a burocracia associada à criação e gestão de estruturas de apoio social/cultural (independentemente da respectiva natureza jurídica) é grande e, valha a verdade, a parcela entregue por empresas e particulares ao Estado a título de taxas e impostos é já tão grande que, consciente ou inconscientemente, vem reforçar na sociedade a crença de que com esse pagamento cada um já fez a sua parte.

Para lá da espuma dos dias, vale a pena pensar se, para a sociedade dar um passo em frente, não terá o Estado de dar um passo atrás.

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