A via sacra dos advogados estagiários

12-10-2015
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1. Já lá vão alguns anos desde que terminei o meu estágio à Ordem dos Advogados. Nessa altura, dizia-se, as coisas estavam mais difíceis do que nunca. Uma primeira fase de aulas de processo civil, de processo penal e de deontologia profissional, seguida de três exames a essas "cadeiras". Uma segunda fase de escalas nos tribunais - as mais das vezes a ver o tempo passar - e a acompanhar casos de apoio judiciário. Um exame final escrito e, finalmente, um exame final oral. Tudo somado, até ter a cédula nas mãos, foram mais de dois anos e meio de probatório.

Nem sempre, porém, as coisas melhoram quando achamos que já não podem piorar. Às vezes ainda há margem para mudar para pior. Com efeito, de há uns anos a esta parte a Ordem dos Advogados assumiu sem pudores a tutela daqueles que já são advogados à custa daqueles que querem vir a ser, procurando, por expedientes vários, tornar a entrada dos novos candidatos mais difícil, mais morosa e mais onerosa. De resto, no preâmbulo do actual regulamento de estágio pode mesmo ler-se: "Hoje, existem em Portugal milhares de Advogados que lutam desesperadamente pela sobrevivência profissional que só poucos conseguirão. O rácio de Advogados por habitantes aproxima -se do dos países da América Latina, afastando Portugal dos modelos da Advocacia existente nos países desenvolvidos da Europa", como se fosse legítimo ou sequer desejável num mercado único europeu, onde se promove a livre concorrência e a economia de mercado, proteger os que "já cá estão" à custa daqueles que também querem "cá estar".

2. Em 2009 foi criado um "exame nacional de acesso ao estágio" - entretanto declarado inconstitucional pelo Tribunal Constitucional - para os licenciados pós-bolonha (dispensando-se os que já tivessem concluído o mestrado), e que cobria um vasto conjunto de matérias já objecto do curso de licenciatura. Segue-se um período de formação, a prova de aferição, e o exame de agregação, com uma prova escrita e uma prova oral. A duração de 24 meses, claro está, só vale no papel. E, ainda que a lógica maioritária continue a ser, infelizmente, a do estágio não remunerado, a Ordem não se coibiu de o tornar cada vez mais caro: 700 Euros a pagar no acto de inscrição, a que acrescem 150 Euros com a realização da prova de aferição, mais 500 Euros com a aprovação nessa prova e mais 150 Euros antes da realização do exame final de agregação. São ao todo uns "módicos" 1500 Euros a pagar por quem - na larga maioria dos casos - apesar de ter já terminado um curso superior e trabalhar há cerca de dois anos, não ganhou ainda um euro.

3. Vem isto a propósito da notícia conhecida esta semana à luz da qual o Governo estará a promover a redução da duração do estágio para um ano e meio, prevendo apenas um momento de avaliação, exigindo, todavia, que o candidato tenha o mestrado concluído no momento da inscrição. Poder-se-ia, porventura, ter ido mais longe. Mas é já um sinal - embora tardio - de que algo tem de mudar no seio da Ordem.

É que, por muito que se afigure paradoxal, parece que são justamente os advogados e quem os representa os primeiros a esquecer que a liberdade de escolha de profissão constitui um direito constitucional que, embora sujeito a restrições, não pode ser atingido no seu núcleo essencial. Só razões de interesse público e de salvaguarda de um bem colectivo podem justificar as exigências - todas as exigências - associadas ao estágio. Por muito que a chegada de mais profissionais ao mercado possa custar àqueles que já estão no exercício da profissão; por muito que isso implique a divisão da já parca fatia de clientes, essas são as regras do jogo. Porque vivemos numa economia de mercado, porque vale o principio da livre concorrência e, sobretudo, porque não existe nem na lei nem em lado nenhum um direito de garantia dos que cá estão sobre aqueles que aqui querem chegar. Depois de asseguradas as condições e a qualidade dos que exercem advocacia só resta à Ordem e aos advogados compreenderem que, num mercado concorrencial como é hoje, quer se queira quer não, o do exercício da advocacia, impor-se-ão, como em qualquer outra área, os melhores, os mais preparados e aqueles que melhor se souberem adaptar aos novos tempos. Assim: sem proteccionismos corporativos.

1. Já lá vão alguns anos desde que terminei o meu estágio à Ordem dos Advogados. Nessa altura, dizia-se, as coisas estavam mais difíceis do que nunca. Uma primeira fase de aulas de processo civil, de processo penal e de deontologia profissional, seguida de três exames a essas "cadeiras". Uma segunda fase de escalas nos tribunais - as mais das vezes a ver o tempo passar - e a acompanhar casos de apoio judiciário. Um exame final escrito e, finalmente, um exame final oral. Tudo somado, até ter a cédula nas mãos, foram mais de dois anos e meio de probatório.

Nem sempre, porém, as coisas melhoram quando achamos que já não podem piorar. Às vezes ainda há margem para mudar para pior. Com efeito, de há uns anos a esta parte a Ordem dos Advogados assumiu sem pudores a tutela daqueles que já são advogados à custa daqueles que querem vir a ser, procurando, por expedientes vários, tornar a entrada dos novos candidatos mais difícil, mais morosa e mais onerosa. De resto, no preâmbulo do actual regulamento de estágio pode mesmo ler-se: "Hoje, existem em Portugal milhares de Advogados que lutam desesperadamente pela sobrevivência profissional que só poucos conseguirão. O rácio de Advogados por habitantes aproxima -se do dos países da América Latina, afastando Portugal dos modelos da Advocacia existente nos países desenvolvidos da Europa", como se fosse legítimo ou sequer desejável num mercado único europeu, onde se promove a livre concorrência e a economia de mercado, proteger os que "já cá estão" à custa daqueles que também querem "cá estar".

2. Em 2009 foi criado um "exame nacional de acesso ao estágio" - entretanto declarado inconstitucional pelo Tribunal Constitucional - para os licenciados pós-bolonha (dispensando-se os que já tivessem concluído o mestrado), e que cobria um vasto conjunto de matérias já objecto do curso de licenciatura. Segue-se um período de formação, a prova de aferição, e o exame de agregação, com uma prova escrita e uma prova oral. A duração de 24 meses, claro está, só vale no papel. E, ainda que a lógica maioritária continue a ser, infelizmente, a do estágio não remunerado, a Ordem não se coibiu de o tornar cada vez mais caro: 700 Euros a pagar no acto de inscrição, a que acrescem 150 Euros com a realização da prova de aferição, mais 500 Euros com a aprovação nessa prova e mais 150 Euros antes da realização do exame final de agregação. São ao todo uns "módicos" 1500 Euros a pagar por quem - na larga maioria dos casos - apesar de ter já terminado um curso superior e trabalhar há cerca de dois anos, não ganhou ainda um euro.

3. Vem isto a propósito da notícia conhecida esta semana à luz da qual o Governo estará a promover a redução da duração do estágio para um ano e meio, prevendo apenas um momento de avaliação, exigindo, todavia, que o candidato tenha o mestrado concluído no momento da inscrição. Poder-se-ia, porventura, ter ido mais longe. Mas é já um sinal - embora tardio - de que algo tem de mudar no seio da Ordem.

É que, por muito que se afigure paradoxal, parece que são justamente os advogados e quem os representa os primeiros a esquecer que a liberdade de escolha de profissão constitui um direito constitucional que, embora sujeito a restrições, não pode ser atingido no seu núcleo essencial. Só razões de interesse público e de salvaguarda de um bem colectivo podem justificar as exigências - todas as exigências - associadas ao estágio. Por muito que a chegada de mais profissionais ao mercado possa custar àqueles que já estão no exercício da profissão; por muito que isso implique a divisão da já parca fatia de clientes, essas são as regras do jogo. Porque vivemos numa economia de mercado, porque vale o principio da livre concorrência e, sobretudo, porque não existe nem na lei nem em lado nenhum um direito de garantia dos que cá estão sobre aqueles que aqui querem chegar. Depois de asseguradas as condições e a qualidade dos que exercem advocacia só resta à Ordem e aos advogados compreenderem que, num mercado concorrencial como é hoje, quer se queira quer não, o do exercício da advocacia, impor-se-ão, como em qualquer outra área, os melhores, os mais preparados e aqueles que melhor se souberem adaptar aos novos tempos. Assim: sem proteccionismos corporativos.

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