A B S O R T O

05-07-2011
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CESÁRIO VERDENum dia, por tradição, sempre festejado e, nos nossos dias, tão triste, lembrei-me deste extraordinário poema de Cesário Verde que aqui vos deixo.ContrariedadesEu hoje estou cruel, frenético, exigente;Nem posso tolerar os livros mais bizarros.Incrível! Já fumei três maços de cigarros Consecutivamente.Dói-me a cabeça. Abafo uns desesperos mudos:Tanta depravação nos usos, nos costumes!Amo, insensatamente, os ácidos, os gumes E os ângulos agudos.Sentei-me à secretária. Ali defronte moraUma infeliz, sem peito, os dois pulmões doentes;Sofre de faltas de ar, morreram-lhe os parentes E engoma para fora.Pobre esqueleto branco entre as nevadas roupas!Tão lívida! O doutor deixou-a. Mortifica.Lidando sempre! E deve conta à botica! Mal ganha para sopas...O obstáculo estimula, torna-nos perversos;Agora sinto-me eu cheio de raivas frias,Por causa dum jornal me rejeitar, há dias, Um folhetim de versos.Que mau humor! Rasguei uma epopeia mortaNo fundo da gaveta. O que produz o estudo?Mais uma redacção, das que elogiam tudo, Me tem fechado a porta.A crítica segundo o método de TaineIgnoram-na. Juntei numa fogueira imensaMuitíssimos papéis inéditos. A Imprensa Vale um desdém solene.Com raras excepções, merece-me o epigrama.Deu meia-noite; e a paz pela calçada abaixo,Um sol-e-dó. Chovisca. O populacho Diverte-se na lama.Eu nunca dediquei poemas às fortunas,Mas sim, por deferência, a amigos ou a artistas.Independente! Só por isso os jornalistas Me negam as colunas.Receiam que o assinante ingénuo os abandone,Se forem publicar tais coisas, tais autores.Arte? Não lhes convém, visto que os seus leitores Deliram por Zaccone.Um prosador qualquer desfruta fama honrosa,Obtém dinheiro, arranja a sua "coterie";Ea mim, não há questão que mais me contrarie Do que escrever em prosa.A adulação repugna aos sentimento finos;Eu raramente falo aos nossos literatos,E apuro-me em lançar originais e exactos, Os meus alexandrinos...E a tísica? Fechada, e com o ferro aceso!Ignora que a asfixia a combustão das brasas,Não foge do estendal que lhe humedece as casas, E fina-se ao desprezo!Mantém-se a chá e pão! Antes entrar na cova.Esvai-se; e todavia, à tarde, fracamente,Oiço-a cantarolar uma canção plangente Duma opereta nova!Perfeitamente. Vou findar sem azedume.Quem sabe se depois, eu rico e noutros climas,Conseguirei reler essas antigas rimas, Impressas em volume?Nas letras eu conheço um campo de manobras;Emprega-se a "réclame", a intriga, o anúncio, a "blague",E esta poesia pede um editor que pague Todas as minhas obras...E estou melhor; passou-me a cólera. E a vizinha?A pobre engomadeira ir-se-á deitar sem ceia?Vejo-lhe a luz no quarto. Inda trabalha. É feia... Que mundo! Coitadinha!

CESÁRIO VERDENum dia, por tradição, sempre festejado e, nos nossos dias, tão triste, lembrei-me deste extraordinário poema de Cesário Verde que aqui vos deixo.ContrariedadesEu hoje estou cruel, frenético, exigente;Nem posso tolerar os livros mais bizarros.Incrível! Já fumei três maços de cigarros Consecutivamente.Dói-me a cabeça. Abafo uns desesperos mudos:Tanta depravação nos usos, nos costumes!Amo, insensatamente, os ácidos, os gumes E os ângulos agudos.Sentei-me à secretária. Ali defronte moraUma infeliz, sem peito, os dois pulmões doentes;Sofre de faltas de ar, morreram-lhe os parentes E engoma para fora.Pobre esqueleto branco entre as nevadas roupas!Tão lívida! O doutor deixou-a. Mortifica.Lidando sempre! E deve conta à botica! Mal ganha para sopas...O obstáculo estimula, torna-nos perversos;Agora sinto-me eu cheio de raivas frias,Por causa dum jornal me rejeitar, há dias, Um folhetim de versos.Que mau humor! Rasguei uma epopeia mortaNo fundo da gaveta. O que produz o estudo?Mais uma redacção, das que elogiam tudo, Me tem fechado a porta.A crítica segundo o método de TaineIgnoram-na. Juntei numa fogueira imensaMuitíssimos papéis inéditos. A Imprensa Vale um desdém solene.Com raras excepções, merece-me o epigrama.Deu meia-noite; e a paz pela calçada abaixo,Um sol-e-dó. Chovisca. O populacho Diverte-se na lama.Eu nunca dediquei poemas às fortunas,Mas sim, por deferência, a amigos ou a artistas.Independente! Só por isso os jornalistas Me negam as colunas.Receiam que o assinante ingénuo os abandone,Se forem publicar tais coisas, tais autores.Arte? Não lhes convém, visto que os seus leitores Deliram por Zaccone.Um prosador qualquer desfruta fama honrosa,Obtém dinheiro, arranja a sua "coterie";Ea mim, não há questão que mais me contrarie Do que escrever em prosa.A adulação repugna aos sentimento finos;Eu raramente falo aos nossos literatos,E apuro-me em lançar originais e exactos, Os meus alexandrinos...E a tísica? Fechada, e com o ferro aceso!Ignora que a asfixia a combustão das brasas,Não foge do estendal que lhe humedece as casas, E fina-se ao desprezo!Mantém-se a chá e pão! Antes entrar na cova.Esvai-se; e todavia, à tarde, fracamente,Oiço-a cantarolar uma canção plangente Duma opereta nova!Perfeitamente. Vou findar sem azedume.Quem sabe se depois, eu rico e noutros climas,Conseguirei reler essas antigas rimas, Impressas em volume?Nas letras eu conheço um campo de manobras;Emprega-se a "réclame", a intriga, o anúncio, a "blague",E esta poesia pede um editor que pague Todas as minhas obras...E estou melhor; passou-me a cólera. E a vizinha?A pobre engomadeira ir-se-á deitar sem ceia?Vejo-lhe a luz no quarto. Inda trabalha. É feia... Que mundo! Coitadinha!

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