O lado negro e dividido do sexo

04-07-2011
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São quase sempre "pessoas divididas", muito mais homens do que mulheres e raramente pedem ajuda. O psiquiatra e psicanalista Carlos Amaral Dias caracteriza assim as pessoas que sofrem de perturbações sexuais designadas por parafilias. Em cerca de 30 anos de clínica foram raros os casos que acompanhou em consultório. "Suspeita-se de que a maior parte dessas pessoas conviva tranquilamente com essas disfunções", diz em entrevista ao P2

Uma vez um homem procurou Amaral Dias no seu consultório. Era um académico, tinha cerca de 40 anos. Não falou logo da sua principal angústia, começou por se queixar de depressão. Mas não foi preciso muito tempo para se começar a referir ao verdadeiro motivo que o levava às consultas.

"Vivia isolado, socialmente era uma pessoa um tanto esquiva, embora educada e simpática para os vizinhos", conta o psicanalista. "Tinha um quarto com paredes mais ou menos plastificáveis, portanto laváveis, e comprava cobaias, ratinhos branco e outros desse tipo, esmagava-os contra a parede e masturbava-se no meios do sangue". "Era um caso de "sadismo sexual que utilizava animais para cometer uma fantasia homicida". Mas tinha uma explicação: "Durante o processo terapêutico, o que se foi tornando mais evidente era uma fantasia que depois ele verbalizou que era de abrir uma mulher de baixo para cima, rasgá-la com uma faca, esventrá-la".

Tinha havido um acontecimento central na vida deste homem, explica Amaral Dias. "Quando ele era pré-adolescente, uma mulher da família dele seduziu-o e isso provocou-lhe uma desorganização psicológica muito grande. O próprio sadismo dele estava ligado a uma profunda zanga contra o feminino, um ódio contra o feminino como uma coisa enlouquecedora".

Muitas disfunções sexuais mantidas em segredo têm-se tornado recentemente conhecidas através das redes sociais, algumas chegam às barras dos tribunais. Na Internet, um professor que se faz passar por mulher para seduzir sexualmente outros homens. Um conhecido político americano que envia fotografias em cuecas e em erecção a várias mulheres através do Twitter. Um médico acusado de abuso sexual de rapazes pré-adolescentes... Para o especialista, os exemplos são muitos. No seu dia-a-dia, sentados às suas secretárias, essa pessoas são aparentemente cidadãos equilibrados e responsáveis. No entanto, por trás destes papéis que desempenham socialmente escondem-se outras pessoas que cultivam, em segredo, práticas sexuais como o sadismo, o masoquismo, a pedofilia, o exibicionismo ou o voyeurismo. Agora, este tipo de perturbações designam-se como "parafilias", mas Amaral Dias admite como "mais interessante" o termo antigo de perversão, que significa "desvio do caminho".

O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, da Associação Americana de Psiquiatria (DSM-IV), define a parafilia como uma "sexualidade caracterizada por impulsos sexuais muito intensos e recorrentes, por fantasias e/ou comportamentos não-convencionais, capazes de criar alterações desfavoráveis na vida familiar, ocupacional e social da pessoa pelo seu caráter compulsivo". A parafilia implica a procura do prazer sexual através do contacto com objectos, com crianças ou com pessoas sem o seu consentimento ou de situações que provoquem sofrimento ou humilhação.

Não é por recorrer a algumas destas práticas de vez em quando que uma pessoa pode ser considerada perturbada, mas apenas se estas forem a única forma de lhes proporcionar prazer.

Pessoas "divididas"

Como é que alguém consegue conviver com partes tão diferentes de si próprio? "Há sempre um lado escuro na nossa mente", explica o psicanalista. "Aparece muitas vezes nos nossos sonhos", é uma forma de chegar ao inconsciente, como notava Freud, e aí "descobrimos coisas estranhíssimas sobre nós próprios".

As pessoas com comportamentos sexuais perversos são, quase sempre, pessoas "divididas", nota Amaral Dias. "Imagine duas partes de alguém que coabitam dentro de si próprio. Quando uma existe, é como se a outra não existisse. Separam-se. É uma clivagem seguida de desmentido. Há uma parte do eu que desmente a outra".

Grande parte dos chamados perversos não têm sentimentos de culpa nem vergonha "porque, paradoxalmente, uma parte não se reconhece na outra". Só uma significativa minoria sente culpa, o que é acompanhado de sentimentos depressivos. É por isso que, na maior parte das vezes, não pedem ajuda e quando são "apanhados", na sequência de algum crime, a possibilidade de cura é diminuta.

A falta de consciência da culpa "é muito frequente na pedofilia", refere Amaral Dias. Hoje, o recurso à Internet, às várias formas de sexualidade virtual, mostra a dimensão do número de pessoas que são atraídas por práticas pedófilas, nota. E há diversos tipos de pedofilia: homossexual, com meninas, exclusiva ou mista. Muitas vezes, envolvem homens que mantêm uma vida sexual adulta, um casamento e simultaneamente uma prática sexual perversa.

A abordagem terapêutica é mais fácil nos casos de pedofilia heterossexual, segundo Amaral Dias. Sabe-se que 80 por cento dos casos se passam no interior da família, com pais, tios, avós...

Grande parte destes pedófilos tem práticas que param em determinado momento, frisa o psicanalista. "Acariciam, tocam, masturbam-se mas não passam ao acto". Depois, há uma outra parte, os pedófilos sádicos que chegam ao estrangulamento, matam as suas vítimas. "Por isso é difícil dizer se é uma pedofilia sádica ou se é um sadismo virado para crianças. Mas essa é a forma mais grave de pedofilia. Há pedofilias que são curáveis e tratáveis", considera Amaral Dias.

Pedófilos, sempre existiram, como mostra o famoso romance Lolita, de Nabokov. E sempre existiram sádicos, masoquistas, exibicionistas, voyeuristas. "O problema que se põe é que estas práticas, hoje, têm novas formas de significação", refere Amaral Dias. "Por exemplo, hoje existem, disseminados no mundo, clubes sadomasoquistas. Há uma liberalização dos costumes e uma maior abertura e tolerância em relação a uma prática que, outrora, era do domínio privado e que era um mundo escondido".

Mas, afinal, onde fica a fronteira entre o que se situa no domínio da fantasia de uma relação sexual madura e o campo da patologia? "No comportamento", esclarece o psicanalista. "Na sexualidade mais madura, as práticas mais perversas estão contidas de uma maneira ou de outra. Até o acto aparentemente sádico de apertar mais fortemente o outro, ou às vezes de morder, ou ver o corpo do outro, ou ser visto... Há coisas voyeuristas e exibicionistas na prática sexual quotidiana ou até fetichistas".

A diferença, explica Amaral Dias, "é que estas práticas estão todas enquadradas sob o primado da genitalidade. Imagine uma orquestra e um maestro com uma batuta... e os violinos ou os trompetes passam a tocar de forma dissonante e a tomar conta da orquestra: aí começa a perversão".

Ao contrário do que se pode pensar, considera o psicanalista, "não há nada menos criativo do que a prática perversa. A perversão é como um teatro parado. A prática perversa é da ordem da repetição da cena".

A prática do fetichista, por exemplo, de cheirar sapatos, cuecas ou soutiens de uma mulher, "é uma prática repetida, acompanhada de masturbação". Tudo se passa "numa espécie de cenário que é pobre, ao contrário da sexualidade mais integrada porque precisa de uma espécie de repetição teatral. Se não houver essa repetição, não há prazer, não há erecção, não há desejo, não há nada disso".

Um fantasma sádico

Ao longo de 30 anos de clínica, podem-se contar pelos dedos os casos de pacientes que recorreram a Amaral Dias por perturbações resultantes de práticas sexuais perversas. Mas os poucos casos que acompanhou continham uma "violência brutal", diz.

Nunca é à primeira que se fala deste tormentos. "No início falam de depressão, que não andam bem, têm um discurso vago sobre o assunto, mas depois há um certo momento em que o jogo é aberto".

Houve um paciente, de cerca de 30 anos, automasoquista. Só conseguia ter erecção perfurando os próprios mamilos com agulhas. Estava cheio de cicatrizes.

E os casos de hipoxifilia. Pessoas que põem sacos de plástico à volta da cabeça até perderem oxigenação. "O que acontece é que, como diminui a oxigenação a nível central, provoca uma dilatação periférica, uma erecção no momento em que estão quase a morrer asfixiados. O marquês de Sade mandava fazer isso a si próprio", lembra Amaral Dias.

Grande parte das chamadas práticas perversas são masculinas, indicam os dados disponíveis. Mesmo no masoquismo, onde se encontram mais mulheres, a relação é de uma mulher para 20 homens. "Toda a prática perversa implica sempre qualquer coisa de humilhação, de violência.Encontram-se correlações nalgumas formas de pedofilia, nomeadamente naquelas que são acompanhadas de comportamentos mais sádicos, em que se observam maiores níveis de hormonas masculinas".

No caso do professor que se fazia passar por mulher na Internet para seduzir sexualmente outros homens e que perseguia as pessoas que desistissem de manter uma relação virtual com "ela" (actualmente em julgamento), Amaral Dias considera que o homem "usava a rede virtual para ter uma alteração de identidade de género, acompanhado claramente com um fantasma sádico. Trata-se de uma parafilia mista". Refere uma "coerência" curiosa pelo facto de o professor não aparecer nem no seu julgamento.

O especialista nota que muitos destes comportamentos praticados através de redes sociais acabam por ser "uma versão light das práticas perversas comuns".

Homens de gabardina

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Quanto ao caso recente do congressista americano que enviava fotografias suas em cuecas e que acabou por pedir a demissão depois de ter sido descoberto, Amaral Dias questiona: "Qual é a diferença entre esse uso virtual e aquelas práticas no século passado em que homens nus só com uma gabardina por cima, a abriam quando as mulheres passavam?" É claramente, no seu entender, um caso de exibicionismo.

Qual é a fantasia do exibicionista? "A fantasia maior é que a sua própria excitação vai excitar o outro. Isso é acompanhado habitualmente de masturbação, mas nunca é acompanhado de aproximação ao outro. Tal como o voyeurista que se esconde, vê a mulher despir-se às escondidas, usa binóculos, mas nunca se aproxima."

Há casos em que este tipo de práticas impede que as pessoas mantenham uma vida sexual considerada normal. Noutros casos, isso não é possível. "Há pessoas que ficam absolutamente fixadas numa prática perversa", diz. "O verdadeiro perverso não consegue imaginar-se a ter prazer fora da prática do cenário perverso. Só naquela realização é que ele tem prazer sexual".

Mesmo assim, podem viver tranquila e indefinidamente com isso. Do ponto de vista da observação de quem procura o consultório, "essas pessoas não têm bem-estar", mas, já que constituem uma significativa minoria, "suspeita-se de que as outras, que não procuram ajuda e que não revelam sentimentos de culpa quando, por exemplo, são detidas, coabitam tranquilamente com isso".

São quase sempre "pessoas divididas", muito mais homens do que mulheres e raramente pedem ajuda. O psiquiatra e psicanalista Carlos Amaral Dias caracteriza assim as pessoas que sofrem de perturbações sexuais designadas por parafilias. Em cerca de 30 anos de clínica foram raros os casos que acompanhou em consultório. "Suspeita-se de que a maior parte dessas pessoas conviva tranquilamente com essas disfunções", diz em entrevista ao P2

Uma vez um homem procurou Amaral Dias no seu consultório. Era um académico, tinha cerca de 40 anos. Não falou logo da sua principal angústia, começou por se queixar de depressão. Mas não foi preciso muito tempo para se começar a referir ao verdadeiro motivo que o levava às consultas.

"Vivia isolado, socialmente era uma pessoa um tanto esquiva, embora educada e simpática para os vizinhos", conta o psicanalista. "Tinha um quarto com paredes mais ou menos plastificáveis, portanto laváveis, e comprava cobaias, ratinhos branco e outros desse tipo, esmagava-os contra a parede e masturbava-se no meios do sangue". "Era um caso de "sadismo sexual que utilizava animais para cometer uma fantasia homicida". Mas tinha uma explicação: "Durante o processo terapêutico, o que se foi tornando mais evidente era uma fantasia que depois ele verbalizou que era de abrir uma mulher de baixo para cima, rasgá-la com uma faca, esventrá-la".

Tinha havido um acontecimento central na vida deste homem, explica Amaral Dias. "Quando ele era pré-adolescente, uma mulher da família dele seduziu-o e isso provocou-lhe uma desorganização psicológica muito grande. O próprio sadismo dele estava ligado a uma profunda zanga contra o feminino, um ódio contra o feminino como uma coisa enlouquecedora".

Muitas disfunções sexuais mantidas em segredo têm-se tornado recentemente conhecidas através das redes sociais, algumas chegam às barras dos tribunais. Na Internet, um professor que se faz passar por mulher para seduzir sexualmente outros homens. Um conhecido político americano que envia fotografias em cuecas e em erecção a várias mulheres através do Twitter. Um médico acusado de abuso sexual de rapazes pré-adolescentes... Para o especialista, os exemplos são muitos. No seu dia-a-dia, sentados às suas secretárias, essa pessoas são aparentemente cidadãos equilibrados e responsáveis. No entanto, por trás destes papéis que desempenham socialmente escondem-se outras pessoas que cultivam, em segredo, práticas sexuais como o sadismo, o masoquismo, a pedofilia, o exibicionismo ou o voyeurismo. Agora, este tipo de perturbações designam-se como "parafilias", mas Amaral Dias admite como "mais interessante" o termo antigo de perversão, que significa "desvio do caminho".

O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, da Associação Americana de Psiquiatria (DSM-IV), define a parafilia como uma "sexualidade caracterizada por impulsos sexuais muito intensos e recorrentes, por fantasias e/ou comportamentos não-convencionais, capazes de criar alterações desfavoráveis na vida familiar, ocupacional e social da pessoa pelo seu caráter compulsivo". A parafilia implica a procura do prazer sexual através do contacto com objectos, com crianças ou com pessoas sem o seu consentimento ou de situações que provoquem sofrimento ou humilhação.

Não é por recorrer a algumas destas práticas de vez em quando que uma pessoa pode ser considerada perturbada, mas apenas se estas forem a única forma de lhes proporcionar prazer.

Pessoas "divididas"

Como é que alguém consegue conviver com partes tão diferentes de si próprio? "Há sempre um lado escuro na nossa mente", explica o psicanalista. "Aparece muitas vezes nos nossos sonhos", é uma forma de chegar ao inconsciente, como notava Freud, e aí "descobrimos coisas estranhíssimas sobre nós próprios".

As pessoas com comportamentos sexuais perversos são, quase sempre, pessoas "divididas", nota Amaral Dias. "Imagine duas partes de alguém que coabitam dentro de si próprio. Quando uma existe, é como se a outra não existisse. Separam-se. É uma clivagem seguida de desmentido. Há uma parte do eu que desmente a outra".

Grande parte dos chamados perversos não têm sentimentos de culpa nem vergonha "porque, paradoxalmente, uma parte não se reconhece na outra". Só uma significativa minoria sente culpa, o que é acompanhado de sentimentos depressivos. É por isso que, na maior parte das vezes, não pedem ajuda e quando são "apanhados", na sequência de algum crime, a possibilidade de cura é diminuta.

A falta de consciência da culpa "é muito frequente na pedofilia", refere Amaral Dias. Hoje, o recurso à Internet, às várias formas de sexualidade virtual, mostra a dimensão do número de pessoas que são atraídas por práticas pedófilas, nota. E há diversos tipos de pedofilia: homossexual, com meninas, exclusiva ou mista. Muitas vezes, envolvem homens que mantêm uma vida sexual adulta, um casamento e simultaneamente uma prática sexual perversa.

A abordagem terapêutica é mais fácil nos casos de pedofilia heterossexual, segundo Amaral Dias. Sabe-se que 80 por cento dos casos se passam no interior da família, com pais, tios, avós...

Grande parte destes pedófilos tem práticas que param em determinado momento, frisa o psicanalista. "Acariciam, tocam, masturbam-se mas não passam ao acto". Depois, há uma outra parte, os pedófilos sádicos que chegam ao estrangulamento, matam as suas vítimas. "Por isso é difícil dizer se é uma pedofilia sádica ou se é um sadismo virado para crianças. Mas essa é a forma mais grave de pedofilia. Há pedofilias que são curáveis e tratáveis", considera Amaral Dias.

Pedófilos, sempre existiram, como mostra o famoso romance Lolita, de Nabokov. E sempre existiram sádicos, masoquistas, exibicionistas, voyeuristas. "O problema que se põe é que estas práticas, hoje, têm novas formas de significação", refere Amaral Dias. "Por exemplo, hoje existem, disseminados no mundo, clubes sadomasoquistas. Há uma liberalização dos costumes e uma maior abertura e tolerância em relação a uma prática que, outrora, era do domínio privado e que era um mundo escondido".

Mas, afinal, onde fica a fronteira entre o que se situa no domínio da fantasia de uma relação sexual madura e o campo da patologia? "No comportamento", esclarece o psicanalista. "Na sexualidade mais madura, as práticas mais perversas estão contidas de uma maneira ou de outra. Até o acto aparentemente sádico de apertar mais fortemente o outro, ou às vezes de morder, ou ver o corpo do outro, ou ser visto... Há coisas voyeuristas e exibicionistas na prática sexual quotidiana ou até fetichistas".

A diferença, explica Amaral Dias, "é que estas práticas estão todas enquadradas sob o primado da genitalidade. Imagine uma orquestra e um maestro com uma batuta... e os violinos ou os trompetes passam a tocar de forma dissonante e a tomar conta da orquestra: aí começa a perversão".

Ao contrário do que se pode pensar, considera o psicanalista, "não há nada menos criativo do que a prática perversa. A perversão é como um teatro parado. A prática perversa é da ordem da repetição da cena".

A prática do fetichista, por exemplo, de cheirar sapatos, cuecas ou soutiens de uma mulher, "é uma prática repetida, acompanhada de masturbação". Tudo se passa "numa espécie de cenário que é pobre, ao contrário da sexualidade mais integrada porque precisa de uma espécie de repetição teatral. Se não houver essa repetição, não há prazer, não há erecção, não há desejo, não há nada disso".

Um fantasma sádico

Ao longo de 30 anos de clínica, podem-se contar pelos dedos os casos de pacientes que recorreram a Amaral Dias por perturbações resultantes de práticas sexuais perversas. Mas os poucos casos que acompanhou continham uma "violência brutal", diz.

Nunca é à primeira que se fala deste tormentos. "No início falam de depressão, que não andam bem, têm um discurso vago sobre o assunto, mas depois há um certo momento em que o jogo é aberto".

Houve um paciente, de cerca de 30 anos, automasoquista. Só conseguia ter erecção perfurando os próprios mamilos com agulhas. Estava cheio de cicatrizes.

E os casos de hipoxifilia. Pessoas que põem sacos de plástico à volta da cabeça até perderem oxigenação. "O que acontece é que, como diminui a oxigenação a nível central, provoca uma dilatação periférica, uma erecção no momento em que estão quase a morrer asfixiados. O marquês de Sade mandava fazer isso a si próprio", lembra Amaral Dias.

Grande parte das chamadas práticas perversas são masculinas, indicam os dados disponíveis. Mesmo no masoquismo, onde se encontram mais mulheres, a relação é de uma mulher para 20 homens. "Toda a prática perversa implica sempre qualquer coisa de humilhação, de violência.Encontram-se correlações nalgumas formas de pedofilia, nomeadamente naquelas que são acompanhadas de comportamentos mais sádicos, em que se observam maiores níveis de hormonas masculinas".

No caso do professor que se fazia passar por mulher na Internet para seduzir sexualmente outros homens e que perseguia as pessoas que desistissem de manter uma relação virtual com "ela" (actualmente em julgamento), Amaral Dias considera que o homem "usava a rede virtual para ter uma alteração de identidade de género, acompanhado claramente com um fantasma sádico. Trata-se de uma parafilia mista". Refere uma "coerência" curiosa pelo facto de o professor não aparecer nem no seu julgamento.

O especialista nota que muitos destes comportamentos praticados através de redes sociais acabam por ser "uma versão light das práticas perversas comuns".

Homens de gabardina

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Quanto ao caso recente do congressista americano que enviava fotografias suas em cuecas e que acabou por pedir a demissão depois de ter sido descoberto, Amaral Dias questiona: "Qual é a diferença entre esse uso virtual e aquelas práticas no século passado em que homens nus só com uma gabardina por cima, a abriam quando as mulheres passavam?" É claramente, no seu entender, um caso de exibicionismo.

Qual é a fantasia do exibicionista? "A fantasia maior é que a sua própria excitação vai excitar o outro. Isso é acompanhado habitualmente de masturbação, mas nunca é acompanhado de aproximação ao outro. Tal como o voyeurista que se esconde, vê a mulher despir-se às escondidas, usa binóculos, mas nunca se aproxima."

Há casos em que este tipo de práticas impede que as pessoas mantenham uma vida sexual considerada normal. Noutros casos, isso não é possível. "Há pessoas que ficam absolutamente fixadas numa prática perversa", diz. "O verdadeiro perverso não consegue imaginar-se a ter prazer fora da prática do cenário perverso. Só naquela realização é que ele tem prazer sexual".

Mesmo assim, podem viver tranquila e indefinidamente com isso. Do ponto de vista da observação de quem procura o consultório, "essas pessoas não têm bem-estar", mas, já que constituem uma significativa minoria, "suspeita-se de que as outras, que não procuram ajuda e que não revelam sentimentos de culpa quando, por exemplo, são detidas, coabitam tranquilamente com isso".

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