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10-12-2014
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Nuno Botelho, Expresso

Ao consultar a lista oficial de Embaixadores portugueses que lideraram a REPER, a Representação Permanente de Portugal junto das instituições europeias, reparei que faltava lá um nome: Fernando Sousa. Ou talvez o erro esteja na página da Comissão Europeia, pois também poderia lá constar o nome do Fernando como "Embaixador da UE para Portugal". Provavelmente estaria sempre errado se estivesse em apenas um dos lados, seria mesmo injusto, pois Fernando Sousa esteve sempre em ambos os lados, ou seja, no meio. Sim, o Fernando foi mesmo um dos principais pilares da ponte entre a Europa e os portugueses.

Os nossos próprios heróis

Quando alguém parte, sobretudo inesperadamente, facilmente caímos no elogio fácil, na promoção a herói do mais comum dos mortais. Mas, na verdade, o significado de cada pessoa é sempre relativo a cada um de nós. Todos temos os nossos heróis, os nossos amigos. Sobre isso, referia há dias a um amigo jornalista que até se torna injusto, para alguns "gigantes", comentarmos com exagero os feitos de outros apenas porque estamos na hora da sua morte. Mas afinal é mesmo assim. Mas, depois, existem os outros, como o Fernando que são mesmo gigantes, diferentes, que merecem um lugar de destaque, onde qualquer elogio nunca é exagerado, jamais será supérfluo e, segundo o próprio, jamais seria merecido, porque o Fernando era genuinamente modesto.

Comentava com a mesma pessoa que a melhor forma de homenagear alguém é seguir o seu exemplo e falar sobre isso com amigos comuns. Todos temos vários episódios, vários exemplos, várias histórias que demonstram o carácter do Fernando Sousa e que têm, sempre, vários pontos em comum: a generosidade e a inteligência do Fernando. Vou contar-vos a minha versão do Fernando.

Fernando como exemplo e "meu" professor

A cara do "SIC Europa" era um daqueles jornalistas que ensinam os colegas sem temer a concorrência, que ensina ao assessor de imprensa os valores éticos, a técnica e o rigor que se exigem, o papel que dele se espera, que explica ao político as diferenças e o interesse comum que existem dos dois lados da barricada.

Quando tinha 22 anos parti para um simples estágio em Bruxelas, no Parlamento Europeu, por sorte, pura sorte e, imagino algum mérito, ao fim de seis meses vi-me quase forçado, qual bebé prematuro, a liderar um gabinete de apoio político que tinha Deputados como João de Deus Pinheiro, Vasco Graça Moura, José Silva Peneda, Carlos Coelho, Assunção Esteves, Duarte Freitas (atual líder PSD Açores) e Sérgio Marques (candidato ao PSD Madeira).

Aprendi muito com todos um verdadeiro privilégio. Discutia-se, na altura, a Comissão de Inquérito aos voos da CIA, momento de grande pressão e sensibilidade políticas. Devo confessar que nessa altura arrisquei pedir conselho a um jornalista mais velho, ao Fernando. O mesmo que, logo nas minhas primeiras semanas de Estrasburgo, andou comigo a pé durante uma hora e meia, à chuva, à procura do meu hotel, carregando o tripé do seu repórter de imagem e que ainda me pagou um hamburger pois o meu multibanco parecia não funcionar em França. Sim, além de grande jornalista, o Fernando Sousa também era uma espécie de cônsul ou embaixador de Portugal para colegas e outros portugueses nos corredores de Estrasburgo e Bruxelas.

Fernando Sousa nunca hesitou em criticar ou dar-me a sua opinião, numa sempre arriscada relação entre um jornalista e o chefe de gabinete do PSD/PPE, distância que soubemos sempre respeitar. Só quem vive "Bruxelas" percebe a importância de partilhar informação, ajudas, dicas, contactos e, até, boleias entre diversos pontos da Europa. Muitas vezes lhe pedi opinião quando os assuntos eram delicados ou quando esteve em causa o interesse português. Sim, o Fernando também foi um elemento chave da diplomacia portuguesa e europeia, várias vezes estabeleceu "as pontes europeias" entre dirigentes e líderes europeus, mesmo que não fossem portugueses.

Uma boleia do Fernando era como ler um livro de política europeia

Fernando Sousa adorava conduzir e percorrer as estradas europeias ao volante, normalmente num bom carro sempre adquirido em segunda mão. Fazer viagens ao seu lado era um privilégio, tantas as histórias vividas, os momentos relatados e, sobretudo, uma leitura experiente dos acontecimentos internacionais, sempre com informação privilegiada, possibilidade conquistada através da credibilidade que alcançou junto de vários líderes europeus. O autorrádio só servia para ouvir o "trafic". Aqueles que trabalharam com ou de perto com o Fernando reconhecem, facilmente, o que quero dizer: trabalhar, por perto, era sobretudo uma oportunidade de apreendter.

Outra característica do Fernando era a sua capacidade de chegar a determinadas figuras chave da política internacional, muitas delas quase desconhecidas do público em geral, mas que ele sabia que teriam uma boa história para contar. De vez em quando lá aparecia uma entrevista, uma conversa com alguém que, em determinado momento da história, foi o elemento-chave num processo de paz, numa revolução ou numa qualquer negociação de alto nível. O Fernando trabalhava com muita antecipação, em Janeiro já sabia os "figurões" que passariam pela Europa em Dezembro (não sei como fazia, mas era mesmo assim...).

Tal era a sua segurança e carácter que nunca o vi ter receio de partilhar uma informação, uma entrevista, ou um convidado seu com os restantes colegas de profissão, mesmo concorrentes diretos em Portugal e na Europa. Raramente vi jornalista tão consensual entre os colegas como o Fernando. A sua elegância no trato e nas entrevistas mereciam um "livro de estilo" de autor, tantas as vezes que o vi colocar questões difíceis, incómodas, sempre sem perder a elegância ou a simpatia.

O explicador da Europa

O jornalista Fernando era de uma casta especial, a dos "explicadores" da Europa, no caso aos portugueses. Em TV há menos tempo e espaço para contar uma história mas, mesmo assim, ele conseguia o milagre de, no mesmo minuto, contextualizar, relatar, explicar e ainda ensinar o tema em causa. Uma coisa vos garanto, ele não sabia apenas aquele minuto, ele não era apenas a pessoa que lia o teleponto, o Fernando era o jornalista total, completo, que dominava o tema de fio a pavio. E tinha graça, muita graça. Se tinha...

Como recordava o Paulo Sande no Observador , há uma saudação que era mesmo típica do Fernando e que ao ler o texto me arrepiou. Até parece que o estou a ver de microfone e tripé na mão, com aquelas gravatas "à Fernando", a chegar ao pé de mim nos corredores do PE e a dizer: "Olá companheiro! Novidades?"

Usava gravatas horríveis

Defeitos de Fernando Sousa? Poucos. Não tinha grande jeito para gerir debates, era demasiado educado para cortar a palavra, mas o pior de todos eram as gravatas e camisas. Quando o pior defeito de um homem são as gravatas, fica tudo dito, não fica? Pois. Lamento? Um. Não termos convivido ainda mais. Só isso.

Como reconheceu a Assembleia da República, no seu voto de pesar, Fernado Sousa foi, sobretudo, um homem bom.

Obrigado Fernando.

P.S. Nunca fui capaz de o tratar por "tu". Ele era demasiado "grande" para isso e a minha relação com era a de um aluno que nunca olha de igual para o seu professor. Ele insistia, insistia mas, jamais, o faria. Já não o tratar por "Senhor Fernando" Deus sabe o que me custou.

Nuno Botelho, Expresso

Ao consultar a lista oficial de Embaixadores portugueses que lideraram a REPER, a Representação Permanente de Portugal junto das instituições europeias, reparei que faltava lá um nome: Fernando Sousa. Ou talvez o erro esteja na página da Comissão Europeia, pois também poderia lá constar o nome do Fernando como "Embaixador da UE para Portugal". Provavelmente estaria sempre errado se estivesse em apenas um dos lados, seria mesmo injusto, pois Fernando Sousa esteve sempre em ambos os lados, ou seja, no meio. Sim, o Fernando foi mesmo um dos principais pilares da ponte entre a Europa e os portugueses.

Os nossos próprios heróis

Quando alguém parte, sobretudo inesperadamente, facilmente caímos no elogio fácil, na promoção a herói do mais comum dos mortais. Mas, na verdade, o significado de cada pessoa é sempre relativo a cada um de nós. Todos temos os nossos heróis, os nossos amigos. Sobre isso, referia há dias a um amigo jornalista que até se torna injusto, para alguns "gigantes", comentarmos com exagero os feitos de outros apenas porque estamos na hora da sua morte. Mas afinal é mesmo assim. Mas, depois, existem os outros, como o Fernando que são mesmo gigantes, diferentes, que merecem um lugar de destaque, onde qualquer elogio nunca é exagerado, jamais será supérfluo e, segundo o próprio, jamais seria merecido, porque o Fernando era genuinamente modesto.

Comentava com a mesma pessoa que a melhor forma de homenagear alguém é seguir o seu exemplo e falar sobre isso com amigos comuns. Todos temos vários episódios, vários exemplos, várias histórias que demonstram o carácter do Fernando Sousa e que têm, sempre, vários pontos em comum: a generosidade e a inteligência do Fernando. Vou contar-vos a minha versão do Fernando.

Fernando como exemplo e "meu" professor

A cara do "SIC Europa" era um daqueles jornalistas que ensinam os colegas sem temer a concorrência, que ensina ao assessor de imprensa os valores éticos, a técnica e o rigor que se exigem, o papel que dele se espera, que explica ao político as diferenças e o interesse comum que existem dos dois lados da barricada.

Quando tinha 22 anos parti para um simples estágio em Bruxelas, no Parlamento Europeu, por sorte, pura sorte e, imagino algum mérito, ao fim de seis meses vi-me quase forçado, qual bebé prematuro, a liderar um gabinete de apoio político que tinha Deputados como João de Deus Pinheiro, Vasco Graça Moura, José Silva Peneda, Carlos Coelho, Assunção Esteves, Duarte Freitas (atual líder PSD Açores) e Sérgio Marques (candidato ao PSD Madeira).

Aprendi muito com todos um verdadeiro privilégio. Discutia-se, na altura, a Comissão de Inquérito aos voos da CIA, momento de grande pressão e sensibilidade políticas. Devo confessar que nessa altura arrisquei pedir conselho a um jornalista mais velho, ao Fernando. O mesmo que, logo nas minhas primeiras semanas de Estrasburgo, andou comigo a pé durante uma hora e meia, à chuva, à procura do meu hotel, carregando o tripé do seu repórter de imagem e que ainda me pagou um hamburger pois o meu multibanco parecia não funcionar em França. Sim, além de grande jornalista, o Fernando Sousa também era uma espécie de cônsul ou embaixador de Portugal para colegas e outros portugueses nos corredores de Estrasburgo e Bruxelas.

Fernando Sousa nunca hesitou em criticar ou dar-me a sua opinião, numa sempre arriscada relação entre um jornalista e o chefe de gabinete do PSD/PPE, distância que soubemos sempre respeitar. Só quem vive "Bruxelas" percebe a importância de partilhar informação, ajudas, dicas, contactos e, até, boleias entre diversos pontos da Europa. Muitas vezes lhe pedi opinião quando os assuntos eram delicados ou quando esteve em causa o interesse português. Sim, o Fernando também foi um elemento chave da diplomacia portuguesa e europeia, várias vezes estabeleceu "as pontes europeias" entre dirigentes e líderes europeus, mesmo que não fossem portugueses.

Uma boleia do Fernando era como ler um livro de política europeia

Fernando Sousa adorava conduzir e percorrer as estradas europeias ao volante, normalmente num bom carro sempre adquirido em segunda mão. Fazer viagens ao seu lado era um privilégio, tantas as histórias vividas, os momentos relatados e, sobretudo, uma leitura experiente dos acontecimentos internacionais, sempre com informação privilegiada, possibilidade conquistada através da credibilidade que alcançou junto de vários líderes europeus. O autorrádio só servia para ouvir o "trafic". Aqueles que trabalharam com ou de perto com o Fernando reconhecem, facilmente, o que quero dizer: trabalhar, por perto, era sobretudo uma oportunidade de apreendter.

Outra característica do Fernando era a sua capacidade de chegar a determinadas figuras chave da política internacional, muitas delas quase desconhecidas do público em geral, mas que ele sabia que teriam uma boa história para contar. De vez em quando lá aparecia uma entrevista, uma conversa com alguém que, em determinado momento da história, foi o elemento-chave num processo de paz, numa revolução ou numa qualquer negociação de alto nível. O Fernando trabalhava com muita antecipação, em Janeiro já sabia os "figurões" que passariam pela Europa em Dezembro (não sei como fazia, mas era mesmo assim...).

Tal era a sua segurança e carácter que nunca o vi ter receio de partilhar uma informação, uma entrevista, ou um convidado seu com os restantes colegas de profissão, mesmo concorrentes diretos em Portugal e na Europa. Raramente vi jornalista tão consensual entre os colegas como o Fernando. A sua elegância no trato e nas entrevistas mereciam um "livro de estilo" de autor, tantas as vezes que o vi colocar questões difíceis, incómodas, sempre sem perder a elegância ou a simpatia.

O explicador da Europa

O jornalista Fernando era de uma casta especial, a dos "explicadores" da Europa, no caso aos portugueses. Em TV há menos tempo e espaço para contar uma história mas, mesmo assim, ele conseguia o milagre de, no mesmo minuto, contextualizar, relatar, explicar e ainda ensinar o tema em causa. Uma coisa vos garanto, ele não sabia apenas aquele minuto, ele não era apenas a pessoa que lia o teleponto, o Fernando era o jornalista total, completo, que dominava o tema de fio a pavio. E tinha graça, muita graça. Se tinha...

Como recordava o Paulo Sande no Observador , há uma saudação que era mesmo típica do Fernando e que ao ler o texto me arrepiou. Até parece que o estou a ver de microfone e tripé na mão, com aquelas gravatas "à Fernando", a chegar ao pé de mim nos corredores do PE e a dizer: "Olá companheiro! Novidades?"

Usava gravatas horríveis

Defeitos de Fernando Sousa? Poucos. Não tinha grande jeito para gerir debates, era demasiado educado para cortar a palavra, mas o pior de todos eram as gravatas e camisas. Quando o pior defeito de um homem são as gravatas, fica tudo dito, não fica? Pois. Lamento? Um. Não termos convivido ainda mais. Só isso.

Como reconheceu a Assembleia da República, no seu voto de pesar, Fernado Sousa foi, sobretudo, um homem bom.

Obrigado Fernando.

P.S. Nunca fui capaz de o tratar por "tu". Ele era demasiado "grande" para isso e a minha relação com era a de um aluno que nunca olha de igual para o seu professor. Ele insistia, insistia mas, jamais, o faria. Já não o tratar por "Senhor Fernando" Deus sabe o que me custou.

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