traje masculino - século XIX
Para em tudo ser grande, este homem singular a quem os seus contemporâneos chamaram «o divino», como a Platão, foi um dos maiores, senão o maior elegante do seu tempo. Poeta do amor, tão belo, que se um dia os Amores descessem à terra fariam o ninho num verso seu; orador tão eloquente, que o seu verbo evocava o daqueles atenienses maravilhosos que, envoltos no seu pálio branco, arrastando as suas sandálias doiradas, discutiam sob os loureiros roxos dos jardins de Academo: diplomata, homem do mundo, grande do ir mo, ministro de Estado — Garrett levou trinta anos de vida a espalhar em volta de si, como braçados de rosas, a elegância, a harmonia, a beleza e a graça. Por onde quer que passasse, a Moda curvava-se diante dele. Ministro na Bélgica, foi tão grande o sucesso pessoal da sua elegância que por toda a parte, nas montras, nos cartazes, nos jornais de Bruxelas aparecem as «capas à Garrett», os «chapéus à Garrett», as «jóias à Garrett». Regressando a Lisboa em 1846, de tal forma o seu tipo inconfundível se impôs, tanto o imitaram e o copiaram, que todos os retratos em miniatura pintados por Guglielmi parecem, pelo talhe das barbas, pelo jeito das cabeleiras, peias pequenas moscas, pelos próprios folhos das camisas, o retrato de Garrett. Como Brummell, tudo na sua elegância era simples, mas tudo era perfeito e minucioso. Vestia-se em Inglaterra. Mandava vir de Londres as casacas, as meias, os sapatos de baile, as luvas de Jouvin, a libré verde do groom, a suit of clothes com que passeava em Sintra, até os seus assombrosos pijamas matinais de xadrez branco e vermelho, cuja pantalona afunilava em meia como a dos arlequins. Bulhão Pato descreve o trajo com que ele se apresentava nas Câmaras, o mesmo que usava nas lutas da eloquência e nas entrevistas de amor: «Casaca verde-bronze com botões de metal amarelo recortado sobre veludo verde; colete branco, deslumbrante, grandes bandas; calça de flor de alecrim; camisa finíssima, encanudada; luvas amarelas.» Quando tinha de pronunciar algum dos seus monumentais discursos, não esquecia nenhum pequeno pormenor de elegância: ele, que não usava rapé, levava sempre consigo uma pequena tabaqueira de ouro para o ajudar nos gestos; e nunca, antes de começar a falar, deixava de esfregar as mãos para as fazer mais pálidas. Como a sua nobre figura dominava então a assembleia! Que harmonia de atitudes! Que elegância majestosa, só comparável à de Lamartine! Iluminava-se, crescia, arrebatava. E, entretanto, Garrett não era belo. Garrett lutava com a falta de dotes naturais. O milagre da sua elegância foi, sobretudo, uma obra de arte, de paciência e de génio. Tudo nele era postiço, desde o espartilho até ao chinó, desde os dentes até às ancas, desde o chumaço dos ombros até ao bucho das pernas. Quando à noite recolhia a casa, depois de um baile ou de uma recepção, desmanchava-se como um puzzle. E o que tem graça, é que era ele o primeiro a rir-se dos ridículos a que o obrigavam, não só os seus defeitos físicos, mas as própria exigências da moda de 1840. Uma noite, o criado de quarto de Garrett adoeceu e teve de ser substituído por outro — um pobre rapaz boçal chegado da província. Quando o «divino», quase de madrugada, de calção e meia, regressava de um baile dos marqueses de Viana — o primeiro baile de Lisboa em que apareceram camélias do Japão — foi já o criado novo que, pela primeira vez, se apresentou para o despir. — «Começamos pelo chino, percebe?» — disse-lhe Garrett, tirando a cabeleira postiça e enfiando-a na boneca. O pobre rapaz, que nunca tinha visto arrancar os cabelos da cabeça com tanta facilidade, ficou varado de espanto. Depois, o poeta tomou um pequeno espelho, abriu a boca, fez saltar a dentadura e deu-a ao criado: — «Tome lá os dentes. Meta-os num copo de água.» O assombro do pobre homem subiu de ponto. Imperturbável, Garrett despiu a casaca em «busto de abelha», o colete de reflexos de prata, o espartilho, e apontou os chumaços das espáduas: — «Tire-me os ombros.» Em seguida, puxou uma cadeira, assentou-se: — «Agora, tire-me as barrigas das pernas.» O criado, muito pálido, coberto de suores frios, teve naquele instante a impressão de que o amo ia desfazer-se todo. (Garrett percebeu, levantou-se, avançou para ele e disse-lhe, olhando-o fixamente: — «Agora, desatarrache-me a cabeça devagarinho.» O pavor do ingénuo provinciano foi tal que abalou pela porta fora e nunca mais ninguém o viu. Este epislódio pinta a figura do poeta muito melhor do que todos os retratos e todas as caricaturas. No fim da vida, no período agudo da paixão pela Ignota Dea das Folhas Caídas, Garrett esqueceu-se por vezes de que já tinha mais de cinquenta anos e de que nem todas as idades suportam as modas excessivamente audaciosas. Quando sobraçava a pasta dos Negócios Estrangeiros, apareceu um dia em conselho de ministros com umas extravagantes calças de quadradinhos brancos e roxos, que fizeram sensação em Lisboa e que chegaram a despertar receios de natureza política. — «Então, como vão esses negócios da Fazenda?» — perguntou o poeta ao seu colega Rodrigo da Fonseca, estendendo-lhe afectuosamente a mão. — «Mal, muito mal — respondeu o espirituoso Rodrigo. — Sobretudo, os negócios da fazenda das tuas calças. Se tu apareces assim no Parlamento, deitas o governo a terra!» A sua última preocupação foi a de mandar gravar por toda a parte, na baixela de prata, nos sinetes de uso, nas pedras dos anéis, o seu escudo de armas rodeado das insígnias da grã-cruz e bailiado de Malta. A morte, porém, que tantas vezes tem piedade do génio, não o deixou ser ridículo por muito tempo. Dois anos depois, o divino Garrett, príncipe dos príncipes da elegância portuguesa, rodeado de flores, compondo ainda ao espelho a sua última toilette, morria vítima das duas mais terríveis doenças que se conhecem no mundo: a política e o amor. Sem dúvida, foram estes os corifeus da elegância romântica em Portugal — os «internacionais», aqueles cujas jóias e cujas casacas nos fizeram, por um momento, quase tão admirados na Europa do século XIX, como os coches de D. João V nos tinham feito célebres na Europa do século XVIII. Mas, ao lado destes, quantos outros! Quanto janota ilustre fascinou Lisboa, nessa longa parada de elegâncias que ia da plateia de S. Carlos até aos salões da Regaleira, do Marrare de Polimento até às alamedas doiradas do Passeio Público! De quantos está ainda fresca a memória, elegantes pragmáticos, devotos fiéis do ritual da Moda, capazes de se deixar insultar para não desfazer um só caracol da cabeleira, de se deixar matar para não desmanchar uma só prega das calças! Alguns passam, flagrantes e vivos, diante dos meus olhos.
Júlio Dantas in O heroísmo, a elegância, o amor*
Edições Roger Delraux
© Maria Isabel Dantas, 1980
* Conferências proferidas no Brasil em 1923 pelo autor, a convite da Academia Brasileira de Letras, por proposta do romancista Coelho Netto:
O Heroísmo: O Mosteiro da Batalha
A Elegância: Os Elegantes do Romantismo
O Amor: Mulheres que Camões amou
Nota:
O meu agradecimento a Manuel Sant'Iago Ribeiro, que me deu a conhecer estas conferências.
A imagem é do blog Des bobines et des songes
traje masculino - século XIX
Para em tudo ser grande, este homem singular a quem os seus contemporâneos chamaram «o divino», como a Platão, foi um dos maiores, senão o maior elegante do seu tempo. Poeta do amor, tão belo, que se um dia os Amores descessem à terra fariam o ninho num verso seu; orador tão eloquente, que o seu verbo evocava o daqueles atenienses maravilhosos que, envoltos no seu pálio branco, arrastando as suas sandálias doiradas, discutiam sob os loureiros roxos dos jardins de Academo: diplomata, homem do mundo, grande do ir mo, ministro de Estado — Garrett levou trinta anos de vida a espalhar em volta de si, como braçados de rosas, a elegância, a harmonia, a beleza e a graça. Por onde quer que passasse, a Moda curvava-se diante dele. Ministro na Bélgica, foi tão grande o sucesso pessoal da sua elegância que por toda a parte, nas montras, nos cartazes, nos jornais de Bruxelas aparecem as «capas à Garrett», os «chapéus à Garrett», as «jóias à Garrett». Regressando a Lisboa em 1846, de tal forma o seu tipo inconfundível se impôs, tanto o imitaram e o copiaram, que todos os retratos em miniatura pintados por Guglielmi parecem, pelo talhe das barbas, pelo jeito das cabeleiras, peias pequenas moscas, pelos próprios folhos das camisas, o retrato de Garrett. Como Brummell, tudo na sua elegância era simples, mas tudo era perfeito e minucioso. Vestia-se em Inglaterra. Mandava vir de Londres as casacas, as meias, os sapatos de baile, as luvas de Jouvin, a libré verde do groom, a suit of clothes com que passeava em Sintra, até os seus assombrosos pijamas matinais de xadrez branco e vermelho, cuja pantalona afunilava em meia como a dos arlequins. Bulhão Pato descreve o trajo com que ele se apresentava nas Câmaras, o mesmo que usava nas lutas da eloquência e nas entrevistas de amor: «Casaca verde-bronze com botões de metal amarelo recortado sobre veludo verde; colete branco, deslumbrante, grandes bandas; calça de flor de alecrim; camisa finíssima, encanudada; luvas amarelas.» Quando tinha de pronunciar algum dos seus monumentais discursos, não esquecia nenhum pequeno pormenor de elegância: ele, que não usava rapé, levava sempre consigo uma pequena tabaqueira de ouro para o ajudar nos gestos; e nunca, antes de começar a falar, deixava de esfregar as mãos para as fazer mais pálidas. Como a sua nobre figura dominava então a assembleia! Que harmonia de atitudes! Que elegância majestosa, só comparável à de Lamartine! Iluminava-se, crescia, arrebatava. E, entretanto, Garrett não era belo. Garrett lutava com a falta de dotes naturais. O milagre da sua elegância foi, sobretudo, uma obra de arte, de paciência e de génio. Tudo nele era postiço, desde o espartilho até ao chinó, desde os dentes até às ancas, desde o chumaço dos ombros até ao bucho das pernas. Quando à noite recolhia a casa, depois de um baile ou de uma recepção, desmanchava-se como um puzzle. E o que tem graça, é que era ele o primeiro a rir-se dos ridículos a que o obrigavam, não só os seus defeitos físicos, mas as própria exigências da moda de 1840. Uma noite, o criado de quarto de Garrett adoeceu e teve de ser substituído por outro — um pobre rapaz boçal chegado da província. Quando o «divino», quase de madrugada, de calção e meia, regressava de um baile dos marqueses de Viana — o primeiro baile de Lisboa em que apareceram camélias do Japão — foi já o criado novo que, pela primeira vez, se apresentou para o despir. — «Começamos pelo chino, percebe?» — disse-lhe Garrett, tirando a cabeleira postiça e enfiando-a na boneca. O pobre rapaz, que nunca tinha visto arrancar os cabelos da cabeça com tanta facilidade, ficou varado de espanto. Depois, o poeta tomou um pequeno espelho, abriu a boca, fez saltar a dentadura e deu-a ao criado: — «Tome lá os dentes. Meta-os num copo de água.» O assombro do pobre homem subiu de ponto. Imperturbável, Garrett despiu a casaca em «busto de abelha», o colete de reflexos de prata, o espartilho, e apontou os chumaços das espáduas: — «Tire-me os ombros.» Em seguida, puxou uma cadeira, assentou-se: — «Agora, tire-me as barrigas das pernas.» O criado, muito pálido, coberto de suores frios, teve naquele instante a impressão de que o amo ia desfazer-se todo. (Garrett percebeu, levantou-se, avançou para ele e disse-lhe, olhando-o fixamente: — «Agora, desatarrache-me a cabeça devagarinho.» O pavor do ingénuo provinciano foi tal que abalou pela porta fora e nunca mais ninguém o viu. Este epislódio pinta a figura do poeta muito melhor do que todos os retratos e todas as caricaturas. No fim da vida, no período agudo da paixão pela Ignota Dea das Folhas Caídas, Garrett esqueceu-se por vezes de que já tinha mais de cinquenta anos e de que nem todas as idades suportam as modas excessivamente audaciosas. Quando sobraçava a pasta dos Negócios Estrangeiros, apareceu um dia em conselho de ministros com umas extravagantes calças de quadradinhos brancos e roxos, que fizeram sensação em Lisboa e que chegaram a despertar receios de natureza política. — «Então, como vão esses negócios da Fazenda?» — perguntou o poeta ao seu colega Rodrigo da Fonseca, estendendo-lhe afectuosamente a mão. — «Mal, muito mal — respondeu o espirituoso Rodrigo. — Sobretudo, os negócios da fazenda das tuas calças. Se tu apareces assim no Parlamento, deitas o governo a terra!» A sua última preocupação foi a de mandar gravar por toda a parte, na baixela de prata, nos sinetes de uso, nas pedras dos anéis, o seu escudo de armas rodeado das insígnias da grã-cruz e bailiado de Malta. A morte, porém, que tantas vezes tem piedade do génio, não o deixou ser ridículo por muito tempo. Dois anos depois, o divino Garrett, príncipe dos príncipes da elegância portuguesa, rodeado de flores, compondo ainda ao espelho a sua última toilette, morria vítima das duas mais terríveis doenças que se conhecem no mundo: a política e o amor. Sem dúvida, foram estes os corifeus da elegância romântica em Portugal — os «internacionais», aqueles cujas jóias e cujas casacas nos fizeram, por um momento, quase tão admirados na Europa do século XIX, como os coches de D. João V nos tinham feito célebres na Europa do século XVIII. Mas, ao lado destes, quantos outros! Quanto janota ilustre fascinou Lisboa, nessa longa parada de elegâncias que ia da plateia de S. Carlos até aos salões da Regaleira, do Marrare de Polimento até às alamedas doiradas do Passeio Público! De quantos está ainda fresca a memória, elegantes pragmáticos, devotos fiéis do ritual da Moda, capazes de se deixar insultar para não desfazer um só caracol da cabeleira, de se deixar matar para não desmanchar uma só prega das calças! Alguns passam, flagrantes e vivos, diante dos meus olhos.
Júlio Dantas in O heroísmo, a elegância, o amor*
Edições Roger Delraux
© Maria Isabel Dantas, 1980
* Conferências proferidas no Brasil em 1923 pelo autor, a convite da Academia Brasileira de Letras, por proposta do romancista Coelho Netto:
O Heroísmo: O Mosteiro da Batalha
A Elegância: Os Elegantes do Romantismo
O Amor: Mulheres que Camões amou
Nota:
O meu agradecimento a Manuel Sant'Iago Ribeiro, que me deu a conhecer estas conferências.
A imagem é do blog Des bobines et des songes