Sá Carneiro: "Não foi a figura pacificadora em que o tentam transformar"

13-10-2014
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Provavelmente não há ninguém neste país com mais de 35 anos que não se recorde do dia em que Francisco Sá Carneiro morreu, a 4 de Dezembro de 1980, vítima de um atentado. O avião transportava também Snu Abecassis, Adelino Amaro da Costa e a mulher, Manuela, e António Patrício Gouveia. Foi um dia de comoção nacional. Miguel Pinheiro, então com seis anos, guarda algumas imagens vagas - os pais a correrem para a televisão, o país em estado de choque, pesaroso, com a morte trágica e abrupta do primeiro-ministro, então com 46 anos.

Três décadas depois, Miguel Pinheiro, jornalista e director da revista Sábado, é o autor de uma biografia de Sá Carneiro, editada pela Esfera dos Livros, que será lançada na quinta-feira, na Fnac do Chiado, em Lisboa, com apresentação do historiador Rui Ramos. As pouco mais de 700 páginas de Sá Carneiro são o resultado de cinco anos de investigação que lhe forneceram informação suficiente para escrever mais um volume. Mas Pinheiro optou apenas por um, biografando o fundador do PSD com o "distanciamento" e a "frieza" necessários para expurgar quaisquer indícios hagiográficos. "Há um mito gigantesco à volta dele. Não seria justo escrever um livro que mostrasse uma imagem de pureza, que é irreal", disse ao P2.

Mesmo as constantes premonições de Sá Carneiro sobre a sua morte (dizia saber que iria morrer cedo, de forma violenta) poderiam afigurar-se uma tentação, mas isso "seria muito fácil, bastava escrever tudo da frente para trás". O autor quis antes mostrar as regras do jogo político do período pós-25 de Abril, sem parcimónia, revelando "alguém que também errou muitas vezes e usou tácticas questionáveis". Subsistia, porém, um receio: que do vasto número de entrevistas que realizou (76, feitas a amigos, familiares, detractores e companheiros do PSD) surgisse uma "visão mitificada". Teve uma surpresa: "A maioria já consegue olhar com distanciamento, fazendo até a análise dos seus próprios erros e dos seus tacticismos."

As entrevistas foram um manancial valioso de informação, mas também a consulta de diversos arquivos, entre os quais o que Conceição Monteiro, antiga secretária de Sá Carneiro, ainda guarda, e aquele que ela doou ao historiador José Pacheco Pereira. Muitos documentos e registos áudio deste arquivo pessoal são neste livro publicados pela primeira vez. O acesso a esta documentação, mas também a audição de muitas horas de reuniões, a leitura de correspondência, as informações dadas pelos entrevistados ou as notas manuscritas de Sá Carneiro, permitiu a Pinheiro reproduzir uma série de diálogos, referenciados nas notas finais. Um dos mais marcantes aconteceu nos primeiros dias de Janeiro de 76, quando, à mesa do restaurante Tavares, em Lisboa, Natália Correia garantiu a Sá Carneiro que Snu Abecassis era "a mulher da sua vida":

"- Natália, que tal é a nossa editora [Snu era a responsável pela Publicações D. Quixote]. Você conhece-a bem e...

- É melhor não querer saber como ela é. É uma princesa nórdica que jaz adormecida num esquife de gelo à espera que venha o príncipe encantado dar-lhe o beijo de fogo. Esse príncipe encantado é você. Porque ela é a mulher da sua vida. Corra para ela! Telefone-lhe e convide-a."

Em 1990, dez anos depois da morte de Sá Carneiro, Vasco Pulido Valente, que foi seu secretário de Estado adjunto e da Cultura no Governo AD, escreveu, num texto intitulado Sá Carneiro: os últimos anos (publicado na revista dominical do PÚBLICO), que o fundador do PSD "viveu (e vive) muito mais na imaginação do que na realidade".

Duas décadas depois, Pinheiro confirma a actualidade destas palavras, notando que o PSD transformou o antigo líder numa "peça de mobília que pretende servir como íman unificador". Olham para Sá Carneiro como o referencial de algo que nunca existiu nele, nem no partido. "Não foi a figura unificadora e pacificadora em que hoje em dia o tentam transformar. Actualmente basta dizer o nome dele para toda a gente bater palmas. Mas nunca foi assim, desde o começo, desde ainda antes da criação do partido", afirma, lembrando que a primeira dissidência interna aconteceu mesmo antes da constituição formal do partido, em 74, com o afastamento de Miller Guerra.

A turbulência interna, as cisões e as tendências estiveram sempre muito presentes nestes primeiros anos do partido e nenhum dos seus dirigentes ficou alheado delas. A liderar o PSD ou afastado da direcção, Sá Carneiro "sempre teve muitos inimigos, sempre provocou rupturas e ódios, sempre teve uma relação ambígua com o partido", admitindo mesmo, em 78, quando Sousa Franco era líder, que poucos políticos aguentariam permanecer tantos anos num partido que vivia também de uma oposição interna organizada e coesa.

Mas Sá Carneiro aguentou, muito por culpa da sua tenacidade e da "ânsia febril de andar depressa", como um dia disse sobre ele Marcello Caetano, a propósito da actuação do jovem deputado da Ala Liberal na Assembleia Nacional (AN). Era o mesmo Sá Carneiro que, apesar de ter passado pela Faculdade de Direito de Lisboa sem ter entrado nos trilhos da política, decidiu escrever a Caetano pedindo-lhe o fim do exílio de D. António Ferreira Gomes, bispo do Porto, e aceitou integrar as listas de deputados da União Nacional pelo Porto em nome do "futuro dos filhos", não deixando de criticar o regime e de reafirmar a sua independência.

Oriundo de uma família burguesa e conservadora do Porto, que passava os Verões na praia da Granja, aproximou-se dos movimentos católicos reformistas após a estadia em Lisboa, meditava sobre os documentos do Concílio Vaticano II e, já casado, integrou as equipas dos Casais de Nossa Senhora. Foi este ímpeto de mudança que o encaminhou para a política, embora a sua forma de fazer política, como se veria mais tarde, tivesse um forte cunho individualista. Pinheiro exemplifica com a hesitação de Sá Carneiro em envolver-se com movimentos que não podia controlar: "Recusava assinar abaixo-assinados dirigidos a Salazar, mas era capaz de enviar um telegrama ao presidente do Conselho com a mesma mensagem, só que unicamente assinado por si. Não queria correr o risco de poder vir a ser instrumentalizado por pessoas que não controlava no sentido político."

Enquanto deputado da Ala Liberal esse individualismo resultava de outras circunstâncias. "Queria fazer tudo dentro da legalidade, mas depois não tinha paciência para a demora a que essa legalidade obrigava. Tinha pressa em resolver tudo."

E também não tinha paciência para as longas discussões dos deputados eleitos pelo Porto sobre as iniciativas a realizar na AN. Quando os seus pares menos esperavam, ele surgia com uma proposta, um projecto ou um requerimento já redigidos e questionava: "Alguém quer assinar?" Perante a recusa, assinava ele e entregava à mesa da AN. Questionou o Governo sobre a ausência de um advogado durante os interrogatórios da polícia política; visitou presos políticos; e avançou, juntamente com Balsemão, com uma proposta de Lei de Imprensa. Esta urgência não era muito bem acolhida por alguns parlamentares da Ala Liberal, que, nota Pinheiro, entendiam que isso poderia contribuir para "encurralar Marcello Caetano, retirando-lhe margem de manobra".

Provavelmente não há ninguém neste país com mais de 35 anos que não se recorde do dia em que Francisco Sá Carneiro morreu, a 4 de Dezembro de 1980, vítima de um atentado. O avião transportava também Snu Abecassis, Adelino Amaro da Costa e a mulher, Manuela, e António Patrício Gouveia. Foi um dia de comoção nacional. Miguel Pinheiro, então com seis anos, guarda algumas imagens vagas - os pais a correrem para a televisão, o país em estado de choque, pesaroso, com a morte trágica e abrupta do primeiro-ministro, então com 46 anos.

Três décadas depois, Miguel Pinheiro, jornalista e director da revista Sábado, é o autor de uma biografia de Sá Carneiro, editada pela Esfera dos Livros, que será lançada na quinta-feira, na Fnac do Chiado, em Lisboa, com apresentação do historiador Rui Ramos. As pouco mais de 700 páginas de Sá Carneiro são o resultado de cinco anos de investigação que lhe forneceram informação suficiente para escrever mais um volume. Mas Pinheiro optou apenas por um, biografando o fundador do PSD com o "distanciamento" e a "frieza" necessários para expurgar quaisquer indícios hagiográficos. "Há um mito gigantesco à volta dele. Não seria justo escrever um livro que mostrasse uma imagem de pureza, que é irreal", disse ao P2.

Mesmo as constantes premonições de Sá Carneiro sobre a sua morte (dizia saber que iria morrer cedo, de forma violenta) poderiam afigurar-se uma tentação, mas isso "seria muito fácil, bastava escrever tudo da frente para trás". O autor quis antes mostrar as regras do jogo político do período pós-25 de Abril, sem parcimónia, revelando "alguém que também errou muitas vezes e usou tácticas questionáveis". Subsistia, porém, um receio: que do vasto número de entrevistas que realizou (76, feitas a amigos, familiares, detractores e companheiros do PSD) surgisse uma "visão mitificada". Teve uma surpresa: "A maioria já consegue olhar com distanciamento, fazendo até a análise dos seus próprios erros e dos seus tacticismos."

As entrevistas foram um manancial valioso de informação, mas também a consulta de diversos arquivos, entre os quais o que Conceição Monteiro, antiga secretária de Sá Carneiro, ainda guarda, e aquele que ela doou ao historiador José Pacheco Pereira. Muitos documentos e registos áudio deste arquivo pessoal são neste livro publicados pela primeira vez. O acesso a esta documentação, mas também a audição de muitas horas de reuniões, a leitura de correspondência, as informações dadas pelos entrevistados ou as notas manuscritas de Sá Carneiro, permitiu a Pinheiro reproduzir uma série de diálogos, referenciados nas notas finais. Um dos mais marcantes aconteceu nos primeiros dias de Janeiro de 76, quando, à mesa do restaurante Tavares, em Lisboa, Natália Correia garantiu a Sá Carneiro que Snu Abecassis era "a mulher da sua vida":

"- Natália, que tal é a nossa editora [Snu era a responsável pela Publicações D. Quixote]. Você conhece-a bem e...

- É melhor não querer saber como ela é. É uma princesa nórdica que jaz adormecida num esquife de gelo à espera que venha o príncipe encantado dar-lhe o beijo de fogo. Esse príncipe encantado é você. Porque ela é a mulher da sua vida. Corra para ela! Telefone-lhe e convide-a."

Em 1990, dez anos depois da morte de Sá Carneiro, Vasco Pulido Valente, que foi seu secretário de Estado adjunto e da Cultura no Governo AD, escreveu, num texto intitulado Sá Carneiro: os últimos anos (publicado na revista dominical do PÚBLICO), que o fundador do PSD "viveu (e vive) muito mais na imaginação do que na realidade".

Duas décadas depois, Pinheiro confirma a actualidade destas palavras, notando que o PSD transformou o antigo líder numa "peça de mobília que pretende servir como íman unificador". Olham para Sá Carneiro como o referencial de algo que nunca existiu nele, nem no partido. "Não foi a figura unificadora e pacificadora em que hoje em dia o tentam transformar. Actualmente basta dizer o nome dele para toda a gente bater palmas. Mas nunca foi assim, desde o começo, desde ainda antes da criação do partido", afirma, lembrando que a primeira dissidência interna aconteceu mesmo antes da constituição formal do partido, em 74, com o afastamento de Miller Guerra.

A turbulência interna, as cisões e as tendências estiveram sempre muito presentes nestes primeiros anos do partido e nenhum dos seus dirigentes ficou alheado delas. A liderar o PSD ou afastado da direcção, Sá Carneiro "sempre teve muitos inimigos, sempre provocou rupturas e ódios, sempre teve uma relação ambígua com o partido", admitindo mesmo, em 78, quando Sousa Franco era líder, que poucos políticos aguentariam permanecer tantos anos num partido que vivia também de uma oposição interna organizada e coesa.

Mas Sá Carneiro aguentou, muito por culpa da sua tenacidade e da "ânsia febril de andar depressa", como um dia disse sobre ele Marcello Caetano, a propósito da actuação do jovem deputado da Ala Liberal na Assembleia Nacional (AN). Era o mesmo Sá Carneiro que, apesar de ter passado pela Faculdade de Direito de Lisboa sem ter entrado nos trilhos da política, decidiu escrever a Caetano pedindo-lhe o fim do exílio de D. António Ferreira Gomes, bispo do Porto, e aceitou integrar as listas de deputados da União Nacional pelo Porto em nome do "futuro dos filhos", não deixando de criticar o regime e de reafirmar a sua independência.

Oriundo de uma família burguesa e conservadora do Porto, que passava os Verões na praia da Granja, aproximou-se dos movimentos católicos reformistas após a estadia em Lisboa, meditava sobre os documentos do Concílio Vaticano II e, já casado, integrou as equipas dos Casais de Nossa Senhora. Foi este ímpeto de mudança que o encaminhou para a política, embora a sua forma de fazer política, como se veria mais tarde, tivesse um forte cunho individualista. Pinheiro exemplifica com a hesitação de Sá Carneiro em envolver-se com movimentos que não podia controlar: "Recusava assinar abaixo-assinados dirigidos a Salazar, mas era capaz de enviar um telegrama ao presidente do Conselho com a mesma mensagem, só que unicamente assinado por si. Não queria correr o risco de poder vir a ser instrumentalizado por pessoas que não controlava no sentido político."

Enquanto deputado da Ala Liberal esse individualismo resultava de outras circunstâncias. "Queria fazer tudo dentro da legalidade, mas depois não tinha paciência para a demora a que essa legalidade obrigava. Tinha pressa em resolver tudo."

E também não tinha paciência para as longas discussões dos deputados eleitos pelo Porto sobre as iniciativas a realizar na AN. Quando os seus pares menos esperavam, ele surgia com uma proposta, um projecto ou um requerimento já redigidos e questionava: "Alguém quer assinar?" Perante a recusa, assinava ele e entregava à mesa da AN. Questionou o Governo sobre a ausência de um advogado durante os interrogatórios da polícia política; visitou presos políticos; e avançou, juntamente com Balsemão, com uma proposta de Lei de Imprensa. Esta urgência não era muito bem acolhida por alguns parlamentares da Ala Liberal, que, nota Pinheiro, entendiam que isso poderia contribuir para "encurralar Marcello Caetano, retirando-lhe margem de manobra".

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