OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida

27-06-2020
marcar artigo

Twee Vaders

mva |

Moderação de comentários

Durante alguns dias este blog vai experimentar o sistema de moderação dos comentários. Poderão verificar-se alguns atrasos na publicação dos mesmos. Peço paciência para o possível transtorno.

mva |

Desviadas

Alexandra Tété, que acha que a livre opção das mulheres que crêem ser criminoso abortar deve ser imposta às mulheres que não o crêem, apareceu num debate sobre o referendo na TV dizendo que a "liberalização" do aborto é uma das facetas do sistema que penaliza as mulheres trabalhadoras quando estão grávidas ou que não aplica as leis da igualdade. Esta moda da direita canibalizar a linguagem da esquerda é curiosa. Tété contribui agora com a apropriação do feminismo.

Mas, enfim, Tété é quem é. O verdadeiro prato da noite foi Zita Seabra: a apropriação pela ex-esquerda da linguagem da direita ainda é mais curiosa...

mva |

O pior

Três contributos para O Pior Português de Sempre: Salazar, Salazar, Salazar.

mva |

Exigir mais

A entrevista a Diogo Infante (por Ana Soromenho e Isabel Lopes) na Única do Expresso é um complicado exercício, tanto da parte do entrevistado como das entrevistadoras. É um caso daquela ginástica lusa que consiste em funcionar retoricamente num registo cosmopolita e liberal, ao mesmo tempo que se vai agindo de forma paroquial e conservadora - e culpando "o país" pela impossibilidade de se agir de modo cosmopolita e liberal...

A capa avisa-nos: «Somos um país de preconceitos», diz Diogo Infante. E a página de entrada da entrevista é misteriosa: «Vivo na esperança de que me exijam mais». Ana Soromenho e Isabel Lopes arrancam com uma conversa sobre Laramie, a peça que Diogo Infante levou à cena no Maria Matos, numa atitude a todos os títulos louvável. Mas Laramie é o trampolim para a referida ginástica, neste caso uma ginástica sobre os limites da fala sobre a homossexualidade.

A meio, as jornalistas perguntam: «É mais difícil dar a cara por um movimento contra posições homofóbicas?». Ao que Diogo Infante responde: «(...) não tenho receio de ser conotado com qualquer espécie de movimento, desde que tenha uma posição reflectida e íntegra e saiba por que o estou a fazer. As pessoas são livres de tirar as ilações que quiserem. E não deixo de fazer personagens que tenham uma sexualidade duvidosa ou mesmo uma conotação homossexual. No dia em que eu falar sobre a minha sexualidade ou abrir a porta da minha casa para me fotografarem o sofá ou a cozinha estou a ir por um caminho extremamente perigoso. Ser equilibrado tem muito a ver com o facto de me preservar. Esse é um direito que me assiste. Quero sossego, dispenso folclore».

Não só esse direito assiste a todos, como deve ser ferozmente defendido, mesmo para uma figura pública como um actor. Mas gostaria de apresentar a Diogo Infante uma alternativa ao seu raciocínio: o "equilíbrio" a que se refere, e que a meu ver é parte da ginástica que referi, tem o seu centro de gravidade alhures, porque uma coisa é assumir a orientação sexual, outra é "abrir as portas de casa".

Explico-me: A orientação sexual tem a ver com uma grande divisão de desigualdade na nossa sociedade; assumir a orientação sexual (a que é estigmatizada, claro) é ter um gesto político de recusa da remissão para "o privado" dos problemas sociais e políticos criados pelo heterossexismo. É justamente através dessa remissão para o "privado" que a homofobia se reproduz, através do silenciamento e da invisibilidade. Já "abrir as portas de casa" (ou da sexualidade no sentido estrito, isto é, a sexualidade íntima - que nada tem a ver com a revelação ou não da orientação sexual) é passar para o plano do íntimo. E nunca é demais lembrar que a orientação heterossexual é sistematicamente revelada no quotidiano e nenhum heterossexual se coibe de o fazer usando o argumento do privado...

Exige-se, de facto, mais. Das elites (artísticas, políticas, académicas, jornalísticas...), porque ao seu maior poder de influência deve corresponder maior responsabilidade social (sim, estou a moralizar, mas de vez em quando é preciso...). Exige-se mais correspondência entre os propalados ideais liberais e cosmopolitas e os actos e as palavras. Exigem-se saltos mortais à retaguarda que transformem esta complicada ginástica nacional de alusões, escondidas, e pequenas revelações, esta espécie de titilante véu islâmico. Bem treinados, aqueles saltos nada têm de mortal. E são lindíssimos.

mva |

Precariados de todo o mundo, uni-vos

«Um dos aspectos essenciais do neoliberalismo é o aumento de salários e novos abonos para gestores e administradores e reduções salariais para todos os outros. "Salários" dos trabalhadores são assim "custos" que "naturalmente" têm que ser reduzidos, excepto para essa nova elite que alguns investigadores consideram uma nova classe social surgida da transformação do capitalismo reformista em capitalismo financeiro. E, perante essa nova elite superior socialmente, essa nova upper class, há uma nova classe trabalhadora em formação na Europa, que mais não é do que uma regressão em termos históricos e que consiste no regresso da generalização do trabalho precário, o novo precariado, na expressão que ouvi há dias a uma pessoas amiga. É o nascimento deste novo tipo de trabalhador, ou a resistência em aceitar esta nova condição, que pode determinar o que é a luta social na Europa actual.» (São José Almeida, Público)

mva |

Antropologia espontânea ao pequeno-almoço

O café que frequento diariamente é diferente da maioria: em vez de estar sempre de porta aberta, está sempre de porta fechada. Como deve ser, aliás, para evitar demasiado frio no inverno e demasiado calor no verão, permitindo que a climatização funcione. Como todos os dias ali passo uma meia hora, já deu para perceber que a maioria das mulheres fecha a porta depois de entrar ou sair, e que a maioria dos homens não o faz. Já se tornou comum queixarmo-nos - empregados e clientes habituais - da "falta de civismo das pessoas". Mas hoje, tanto eu quanto um dos empregados, coincidimos na questão do género. Dizia o empregado que, além da relação com a porta, a maioria dos homens (que, naquele local, são sobretudo funcionários de escritório) comporta-se de forma "stressada". Dizia o empregado que às vezes pensa que se trata dum teatro para mostrar como estão ocupados, e ocupados com coisas importantes. Acrescentei um ponto, regressando à questão da porta: foram habituados a que mães e esposas (e nalguns casos também as filhas) façam tudo; eles deixam tudo por fazer e preocupam-se com as coisas verdadeiramente "importantes". O empregado - que põe mesas, serve refeições e outras actividades de serviço e cuidado... - concordou.

Não tarda nada fundamos um pequeno núcleo de estudos do género em contexto de café.

mva |

A verdadeira iniciativa privada

Um pequeno centro comercial por baixo de minha casa, concebido para ter lojas de luxo e chamar uma clientela "sofisticada". Aos poucos as lojas vão fechando. Não se aguentam. Sobrevivem os locais de restauração, a papelaria, um ou outro café - os locais úteis para a vizinhança. Fecha a joalharia 1, a joalharia 2, a galeria de arte, a loja de objectos de decoração, e por aí fora. Um belo dia abre uma oficina de sapateiro e reprodução de chaves, grande cedência do projecto "de luxo". Sem glamour, sem luxos, com cheiros intensos e sujidades várias, torna-se na loja de maior sucesso do centro comercial. O dono é um senhor de origem indiana; um dos sapateiros tem uma deficiência física visível, deslocando-se com muletas; um outro fala com sotaque eslavo; e por fim a senhora que creio ser esposa do dono, é muda. Competentíssimos, fazem tudo por cumprir tarefas, datas e critérios de qualidade.

mva |

Margem de erro

O Pedro Magalhães teve a decência (como aliás seria de esperar) de comentar o meu post sobre a sondagem da U. Católica aqui. Reconheço que eu próprio escrevo enviesadamente sobre o assunto da igualdade no acesso ao casamento. Mas o meu "problema" é justamente esse: ter a mania de que se trata de uma questão de igualdade, mais (e muito menos) do que uma questão de discussão de valores. Por isso comento sondagens como esta a partir duma suspeição profunda em relação à introdução de "alternativas à igualdade" no debate público. É claro que os direitos e a igualdade são questões de valor, do ponto de vista duma análise sociológica; do ponto de vista do nosso exercício da cidadania e da exigência da aplicação do princípio da igualdade, já a coisa fica mais complicada - e a minha compete-me (de forma auto-designada, é claro) chamar a atenção para isso. Como para o efeito público e político das São Dagens (mais do que "boca" à Católica, uma alusão ao crescente carácter divinatório e de legitimação política que as sondagens têm).

mva |

Pérolas da ciência e do jornalismo

«O presidente da Sociedade Portuguesa de Andrologia (SPA), Nuno Monteiro Pereira, alertou hoje para "o papel decisivo" das mulheres no tratamento da disfunção eréctil, realçando que são as responsáveis pela disciplina no tratamento da patologia.» (Público)

Dito assim, sem ressalvas, gera pelo menos 3 possíveis ilações:

nº 1: a disfunção eréctil só afecta heterossexuais.

nº 2: todos os homens são heterossexuais. E todas as mulheres também.

nº 3: nenhum caso de disfunção eréctil é provocado por homossexualidade armariada.

mva |

Um dia hei-de ler um livro de Agustina até ao fim

«...falar de casamento entre pessoas do mesmo sexo é distorcer o seu sentido (...) Ao longo da vida conheci homossexuais brilhantes a nível intelectual que não eram capazes de encarar o casamento. Uma coisa são os homossexuais, outra são os maricas (...) Os maricas querem todas essas prerrogativas, como o casamento. Os homossexuais não... Todos devem ter os mesmos direitos, mas para isso não é preciso falar de casamento», disse Agustina Bessa Luís ao Sol (citação descoberta aqui).

Juro que um dia me fecho em casa e não saio sem ter lido um livro de Bessa Luís até ao fim. A ver se perco a mania de achar que há escritoras heterossexuais brilhantes a nível intelectual e outras que são... sei lá... qual é mesmo o simétrico de "maricas"? Aquelas que têm a prerrogativa do casamento?

mva |

Dia de São Dagem

Segundo a sondagem da Universidade Católica feita junto de 1281 pessoas, 56% destas são contra qualquer forma de união oficialmente reconhecida entre duas pessoas do mesmo sexo, desde meras uniões de facto com alguns efeitos, até ao casamento. A sondagem da Universidade Católica oferece às 1281 pessoas "alternativas" ao casamento: "formar uniões com os mesmos direitos legais de um casamento" e "formar uniões só com alguns dos direitos legais de um casamento". Apenas 19% das 1281 pessoas são a favor do casamento tout court.

Em 2004, uma sondagem da Aximage dava 35,3% a favor da igualdade no acesso ao casamento. Sem as "alternativas" (a igualdade de direitos tem alternativas que não sejam a... desigualdade?) que têm vindo a surgir no debate público português (nomeadamente através de Rebelo de Sousa), estimuladas pela iníqua "alternativa" britânica da parceria registada, vendida como "casamento" (é assim como se houvesse dois tipos de cidadãos nacionais: os que têm todos os direitos e os que têm todos os direitos menos o de usarem o título de cidadão nacional...)

A partir da sondagem da Universidade Católica a 1281 pessoas supõe-se que 44% poderão ser convencidas - desde logo pelo governo deste estado de Direito - de que a igualdade de direitos não é apenas uma questão de "valores", "moral" ou "temas fracturantes" como quase todos os outros temas que são inquiridos nesta sondagem. Colocar a igualdade de direitos no mesmo plano que o consumo das drogas ou o sacerdócio feminino numa confissão religiosa é mais do que enviesamento: é partilhar da premissa (e oferecê-la aos inquiridos) de que há um problema moral (para não dizer pior) com a homossexualidade.

E se a pergunta tivesse sido a única da sondagem? Ou junto com outras perguntas relacionadas com a igualdade perante a lei? E se o termos da pergunta tivessem sido: "Acha que todas as pessoas adultas, mentalmente capazes, não-casadas, e sem laços de consanguinidade devem poder aceder ao casamento civil?" Caíam o Carmo e a Trindade por causa do "enviesamento".

PS (também literalmente): Do mesmo modo que a questão da igualdade no acesso ao casamento não é uma mera questão jurídica, tão-pouco o é de "moral" ou de "valores". É uma questão política sobre quão a sério se leva a igualdade dos cidadãos na lei. É assim tão difícil percebê-lo?

PS2: Porque será que nos inquéritos sobre "valores" nunca se pergunta se as pessoas acham bem que haja pouca gente muito rica e muita gente pobre? Resposta do pensamento único: porque isso é da natureza das coisas, não há que achar bem nem mal.

PS3: E porque nunca se pergunta se as mulheres devem ter direito a voto (com as alternativas "sim, mas só contando metade" e "sim, mas com o boletim preenchido pelo marido")? Porque já se interiorizou que não se trata de uma questão de "valores" mas de igualdade política incontestável.

mva |

TVI-Não

Entrevista na TVI ao ministro da saúde. Entrecortada sistematicamente por imagens dum bloco operatório, com toda a parafernália, bisturis, sangue, tensão, terminando no nascimento (pelo que se presume terem sido imagens duma cesariana) dum bébé, justamente no culminar da entrevista. Esta era sobre a objecção de consciência dos médicos e a voz off da TVI referia enfaticamente (num autêntico comentário ao que o ministro ia dizendo) a obrigação dos médicos de proteger a vida...

Nao pode ser verdade que na redacção da TVI não se saiba que grande parte dos abortos se fazem tomando um simples comprimido. Não pode ser verdade que na redacção da TVI não se saiba que comparar um embrião de oito semanas a um recém-nascido depois de nove meses de gravidez é pura e simples estupidez...

Portanto, já sabemos quem faz campanha pelo quê.

mva |

As coisas que os Passos Perdidos fazem às cabeças das pessoas

Qual é, pois, o interesse duma empresa em tornar comercialmente acessível às oito semanas o sexo do bebé? Só há uma resposta: a possibilidade de a mãe ou o casal escolherem o sexo do bebé. Não consigo ver outra "utilidade" na coisa. Desde o dia em que percebi que é tecnicamente possível determinar o sexo do filho que se vai ter às oito semanas, mais me questiono com a possibilidade de o aborto vir a ser livre, e feito nos hospitais simplesmente a pedido da mulher, até às dez semanas de gravidez, como pretende o PS com o referendo» (Zita Seabra, Público)

Conclusão: devemos ser contra a despenalização do aborto, porque as mulheres vão começar a recorrer a ele por capricho e como "planeamento" familiar (escolher o sexo dos crios). Quando se pensava que Zita Seabra já tinha feito tudo para perder crédito, ela acrescenta uma nota de pé de página suicida.

mva |

A tempestade e o copo d' água

Começa já na sexta-feira. Três sessões, daqui até Dezembro. O programa está aqui. Apareçam e participem do (in)famoso "debate nacional" e da "mudança de mentalidades"...

mva |

Deve ter sido a "mudança de mentalidades"

É óptimo que o PS invista na campanha pelo "sim" no referendo sobre a IVG. É bom sinal que Sócrates se empenhe pessoalmente. É excelente que Guterres esteja refugiado num cargo algures numa agência internacional. Mas não deixa de ser curioso que em 2006 se discuta a IVG e a "vida" e os direitos das mulheres com a mesma "pedagogia" e o mesmo "cuidado" e o mesmo "equilíbrio" com que se promovia o assunto noutros países nos anos 70 do século passado.

mva |

Sob uma saraivada de sol

Às vezes nem vale a pena rebater, debater, desconstruir... Basta citar. E ficar siderado:

«"A atracção pela morte é um dos sinais da decadência. (...) Discute-se o aborto. Discutem-se os casamentos homossexuais (por natureza estéreis). Debate-se a eutanásia. Promove-se uma cultura de morte (...) Será que a esquerda quer ficar associada a uma cultura de morte? Será que a esquerda, ao defender o aborto, a adopção por homossexuais, a liberalização das drogas, a eutanásia, quer ficar ligada ao lado mais obscuro da vida?"» José António Saraiva, Sol, 14-10-06, citado no Público.

mva |

A mãe castradora

Ontem estive no Fórum Social Português, em Almada. Com sorte, 200 pessoas terão passado pelos vários eventos. A publicidade foi ridícula. A organização, péssima, com uma separação "cuidadosa" de temáticas e coincidências de oficinas, reduzidas assim a mini-encontros para convertidos dos respectivos grupos e temáticas.

Há partidos que talvez até possam ser "acusados" de querer "penetrar" os movimentos sociais. Mas outros há, como o PC, que sabem muito bem como os matar.

Não sou suspeito de grandes simpatias - melhor, entusiasmos - pela dinâmica "Fórum Social". E não sofro de antipartidarismo primário. Mas ou alguém pega no FSP e o faz renascer longe do PC ou bye-bye e até nunca mais...

mva |

Uma prenda ao governo PS

Depois de referir que é «absolutamente a favor do casamento, da adopção», mas que «os portugueses têm de ser sensibilizados primeiro para este debate», António Serzedelo disse à TSF que «não se morre em Portugal por falta de casamento, mas por motivos de homofobia».

É verdade. Mas também é verdade que a igualdade no casamento é um dos mais fortes mecanismos contra a homofobia. Qualquer legislação que institua a igualdade é um mecanismo contra a homofobia.

Ter como prioridade uma vaga "luta contra a homofobia", mesmo com "leis anti-homofobia", sem antes mexer nos mecanismos legais da igualdade (ou sem pelo menos exigir as duas coisas em simultâneo), é um erro político grave, pelo qual pagaremos, gays e lésbicas, por muitos anos. Os ataques homofóbicos e os efeitos da homofobia nas vidas das pessoas continuarão; e não terá havido nenhum passo no sentido da igualdade na lei.

Para que os mecanismos legais e as práticas pedagógicas contra a homofobia resultem, tem que haver primeiro um reconhecimento da plena igualdade das pessoas. Caso contrário seria o mesmo que ter uma lei anti-racismo ou uma lei anti-sexismo numa sociedade onde, por exemplo, os negros não pudessem ter propriedade ou as mulheres não pudessem votar.

Uma prática de militância dedicada não justifica a ausência de uma boa teoria; como uma teoria bem intencionada, sobre um mundo sem homofobia, não se aguenta sem uma prática dirijida aos alvos certos (Um exemplo: veja-se como o nojo, em sectores da nossa população, face à ideia de dois homens ou duas mulheres casados é um dos grandes tópicos da homofobia, justamente porque o casamento ou a sua possibilidade torna legítima e "visível" a sexualidade dessas pessoas).

A homofobia não é um mero sentimento subjectivo, uma questão de psicologia, ou uma prática de gente doida ou malévola, ultrapassável por bem-intencionados programas educativos ou pela repressão dos actos homófobos; é, antes disso, uma estrutura de desigualdade assente na exacerbação duma diferença. É a diferença tornada ontologia e vertida em Lei consagradora de desigualdade. O primeiro passo para a desmontar é tirar a desigualdade da lei.

mva |

Depois de Silva Pereira ter anunciado (como quem pretende apaziguar um imaginário Portugal profundamente reaccionário) que o governo não prepara NENHUMA legislação sobre a igualdade entre homossexuais e heterossexuais, é a vez de Sousa Pinto confirmar que qualquer hipotética iniciativa fica adiada para a próxima legislatura.

Não falemos sequer do facto de a divina providência não poder garantir uma vitória do PS nas próximas eleições. Falemos, sim, do que esta constante evasão, este constante adiamento, significam política e culturalmente. É claro que o PS não se apresentou às eleições com a intenção de legislar sobre a igualdade no casamento ou na adopção. Este possível argumento - desde logo de um formalismo estéril - não adianta muito. O PS não o fez pela mesma razão que o leva agora a querer pegar nas questões "fracturantes" (quem inventou isto?, quem confere legitimidade a esta definição?) à vez: "coisas" gay só depois do aborto...

O raciocínio e a estratégia do PS baseiam-se sempre na noção de que a sociedade não está preparada, um típico medo das elites que pensam estar muito avançadas em relação à maioria dos conterrâneos. Mas é, para todos os efeitos, semelhante à dos sectores conservadores do Direito que dizem não poder este "ir à frente da sociedade" - quando a maioria das vezes vai, isso sim, conservadoramente atrás (no sentido de atrasado). Ora, acontece que não temos nenhum verdadeiro inquérito sobre a opinião social em torno destes temas; e o que de mais próximo temos - os inquéritos aos valores sociais dos portugueses - podem muito bem ser lidos como apoiando mais igualdade e democracia, e não menos.

Mas é justamente aqui que o problema deve passar de "sociológico" a propriamente político, a partir duma premissa fundamental: a democracia não é a ditadura da maioria. O valor da democracia mede-se pela sua capacidade de proteger e promover as minorias face às maiorias, assim como se mede pela capacidade de instituir a igualdade de direitos. Nada disto é claro no discurso do PS. É completamente omisso na demissão de Silva Pereira e elegantemente mastigado no discurso de Sousa Pinto (onde até a nefasta "tolerância" aparece).

O PS parece ter interiorizado uma das piores pechas culturais nacionais: a resignação face à lentidão, ao atraso, à "cauda da Europa" e, agora, ao segundo lugar em relação à Espanha. É que, caros amigos do PS, tudo aquilo que estão a discutir com tanta cautela, com tanto cuidado, com tanto medo, já foi resolvido de uma penada em Espanha, por socialistas sem maioria absoluta: a pura e simples institucionalização legal da igualdade plena. A não ser, claro, que tudo se resuma a falta de vontade vossa, ou mesmo a uma profunda oposição à igualdade entre homossexuais e heterossexuais.

Espero bem que não.

mva |

Gandas Portugueses

Eu até ia brincar e fazer um concurso chamado "Gandas Portugueses" para gozar um pouco com o lado mais assustador e patridiota que pode ter uma iniciativa como os "Grandes Portugueses" da RTP. E nos candidatos a "Ganda Português" ia colocar os Jardins, os Loureiros, as Felgueiras e, claro, os Salazares. Acontece que Salazar é mesmo um dos candidatos no concurso "a sério". Já não se pode brincar. O meu país não é para brincadeiras.

PS: Por uma questão de transparência, devo dizer que fui gentilmente convidado a sugerir nomes para este programa e fi-lo. Mas não imaginam a dificuldade que tive em descobrir nomes. Só me vinha à cabeça o Amílcar Cabral...

mva |

O mundo ao contrário

O Inspector-geral da Administração Interna diz à imprensa que "mais vale deixar fugir do que matar". Por que é necessário vir dizer isto? Porque infelizmente não é evidente entre nós. A frase reinante é, sim, "mais vale matar do que deixar fugir".

mva |

Para lá (não, para cá) da esquerda e da direita

Paula Teixeira da Cruz, do PSD, assume uma posição liberal e defende a igualdade no acesso ao casamento civil. Fernanda Mateus, do PCP, assume uma posição materialista vulgar, dando prioridade à economia e ao trabalho, e acha que o assunto não é prioritário e necessita de debate. Mário Cesariny assume uma posição de poeta-maldito à inícios de século XX e diz, enquanto homossexual assumido, o que para mim são barbaridades politicamente contraproducentes para os direitos de gays e lésbicas. Joaquim Manuel Magalhães escrevia, de um ponto de vista assumidamente gay e conservador, que deve ter o direito a casar-se com o homem com quem vive há dezenas de anos. O Bloco de Esquerda tem uma posição de princípio a favor da igualdade no acesso ao casamento civil e adopção. Pessoas várias, de Fátima Campos Ferreira (!) a membros do PS, gostam de distinguir entre o direito ao casamento, por um lado, e fortes suspeitas em relação à adopção. A JS tem um ante-projecto que abrirá seguramente o debate parlamentar sobre estes assuntos depois do referendo ao aborto - correspondendo ao pedido das lideranças socialistas no sentido dessa calendarização.

Confuso? Nem tanto. Façam um quadro de duas entrada com os nomes de pessoas e agrupamentos em cima e "defende a liberdade, a dignidade e a igualdade de direitos para todos os cidadãos como princípios basilares da democracia" ao lado. Marquem as cruzes correspondentes. And the losers are?

mva |

Ilegalizar, precarizar

Há uma boa razão para Bush querer construir um muro na fronteira com o México (ou para os dirigentes europeus darem graças pelo fenómeno natural chamado Mediterrâneo): tornar a imigração mais difícil. É que só tornando-a mais difícil pode o fluxo de imigrantes ser (ainda mais) ilegal. Só com a ilegalidade se consegue custos de mão de obra mais baixos e trabalho sem direitos. Os imigrantes ilegais são, recuperando a expressão marxista do século XIX, o exército de reserva de trabalho. Já não é preciso ter miseráveis dentro das fronteiras, dispostos a trabalhar 16 horas ou a furar greves. Eles agora criam-se noutros países, subdesenvolvidos (como verbo, não como substantivo) para o efeito. Quanto ao efeito sobre o número crescente de nacionais remediados e precários, é o mesmo: fazê-los aceitar, também eles, menos direitos, devido à concorrência pelo emprego e, de caminho, convencê-los que o inimigo é os imigrantes (e quão mais conveniente é eles serem negros ou islâmicos ou católicos ou..., do que apenas compatriotas pobres? Muito) e não os que beneficiam com este esquema. A coisa explode quando os imigrantes ilegalizados (isto é, as pessoas propositadamente tornadas ilegais) produzem filhos precarizados, mesmo que legais.

mva |

A última oportunidade?

Um grupo de pessoas à volta duma mesa. Doze, para ser mais exacto. De repente alguém nota que uma das convivas está grávida e diz que afinal são treze. Está lá o tom de ligeira piada. Mas está lá também o tom de ligeira seriedade. Quando alguém desafia o senso comum e diz que "não senhor, somos mesmo só doze", a maioria dos convivas não acha piada...

Há uns tempos escrevi qualquer coisa em que referia como as novas tecnologias médicas, nomeadamente as ecografias, permitem a construção de uma relação mais do que imaginária com o feto enquanto quase-já-filho e pessoa. A baixa da mortalidade infantil também contribui para um maior investimento afectivo na criança que aí vem, dada a maior probabilidade de o parto ser bem sucedido. E é já comum dar nome ao feto, quando antes apenas se fazia uma lista de preferências (e saber o sexo também personaliza, numa cultura em que o género é um elemento central da noção de pessoa).

Ora, há dias, M. J. Nogueira Pinto escrevia sobre isto mesmo, desde o ponto de vista conservador e "pró-vida". O estatuto do feto como pessoa e sujeito legal é a grande batalha deste sector. Como também eu dizia nesse tal texto escrito há um bom tempo (peço desculpa, mas não sei onde está?), corria-se o risco de em Portugal não se conseguir despenalizar o aborto caso esta nova "visão cultural dos fetos" avançasse ainda mais. Portugal poderia mesmo ser apanhado a discutir a despenalização num momento em que, nos países que a aprovaram há muito tempo, os sectores conservadores começassem a colocar o estatuto do feto-enquanto-pessoa na agenda política - como já acontece, aliás, nos EUA.

Daqui a poucos meses teremos, pois, a última oportunidade. Antes que aquilo que tem sido uma bandeira dos militantes anti-escolha passe a ser - por razões outras, não ideológicas - um novo senso comum. E isto na ausência, claro, de uma consciente interiorização pela sociedade em geral da importância decisiva dos direitos das mulheres enquanto cidadãs e pessoas autónomas - que, a meu ver, é sempre (lá no fundo, como se costuma dizer) a verdadeira questão que se referenda.

mva |

Adeus, coronel

Esta é uma grande notícia para a minha querida Bahia (via Canhoto). Nem é preciso fazer uma grande análise sobre a estrutura de classes ou o sistema económico baiano, ou sequer uma análise do "coronelismo pós-moderno" de António Carlos Magalhães e do seu sucessor Paulo Souto. Basta pensar na simbólica do espaço e serviços públicos. Não imaginam o sufocante que é chegar a central de camionagem após central de camionagem, num périplo pelo interior baiano, e ver que uma grande parte delas se chama "António Carlos Magalhães". Até o aeroporto de Salvador tem o nome do filho do coronelão.

Acontece, porém, que por cá comecei a ver surgir o mesmo tipo de coisa, agora que 30 anos de democracia à portuguesa já permitiram o surgimento de coronéis autárquicos portugueses. Talvez os leitores tenham exemplos que possam enviar: obras que levam o nome do autarca, ruas com nomes de pessoas vivas (algo até há pouco praticamente "proibido" em Portugal). Em tendo, enviem para este blog.

PS: Não se qualifica exactamente como exemplo do acima dito, mas há qualquer coisa de bizarro em chamar "Sá Carneiro" ao aeroporto do Porto. Não é propriamente inspirador de segurança aérea...

mva |

Aos fiéis,

Não, não despareci. Confesso que já estive this close de desistir do blog, ao verificar a pura e simples impossibilidade de postar, ou de o fazer com um mínimo de originalidade, pertinência e qualidade: dias e dias de 12 horas de faculdade-bolonhesa e com um cargo tornam difícil não só a "contemplação" necessária para postar, como até impedem a oportunidade de sentir "pica" ao ler um jornal ou um blog (pela simples razão de que essa actividade fica vedada...).

Mas isto acalma... (yeah, right...). E aproxima-se uma belíssima ponte.

[Vá, agora quero aqueles comentários simpáticos a pedirem para não desistir! ;)]

mva |

Fac simile

Excelente, o novo Público digital. Para quem está sempre a "cascar", não queria deixar de dizer bem.

mva |

Intersexo

Uma outra forma de mutilação (para alguns "adequação") é o que se faz com as pessoas intersexo (antigamente "hermafroditas") à nascença. O assunto já vem sendo tratado desde os finais dos anos sessenta do século 20, com o estudo do etnometodólogo Garfinkel sobre a história de Agnes. O New York Times publicou uma reportagem sobre um caso, a motivação para este post (obrigado, António!); substitui volumes sobre a correspondência entre sexo e género e sobre o carácter construído de ambos (esta vai dar discussão...). E a antropóloga brasileira Mariza Corrêa está presentemente a trabalhar sobre o assunto, numa perspectiva que aborda as decisões normativas da classe médica sobre os corpos. Talvez mais ainda do que a questão transexual (que tem a ver com o livre arbítrio e as restrições ao mesmo), a questão intersexo (em que o "sexo" de alguém - e, no regime actual, o género também - é decidido por outrém)desafia a ordem dicotómica em que (ainda) vivemos...

mva |

Interrupção voluntária da direita

É o que acontece quando se não se acredita verdadeiramente na penalização do aborto; quando não se abraça a despenalização sobretudo por cálculo político-partidário e por receio da influência da Igreja Católica junto das bases; e quando se é de facto dirigido por eminências pardas cujo poder reside em estarem ao mesmo tempo fora e dentro dos respectivos partidos.

mva |

Twee Vaders

mva |

Moderação de comentários

Durante alguns dias este blog vai experimentar o sistema de moderação dos comentários. Poderão verificar-se alguns atrasos na publicação dos mesmos. Peço paciência para o possível transtorno.

mva |

Desviadas

Alexandra Tété, que acha que a livre opção das mulheres que crêem ser criminoso abortar deve ser imposta às mulheres que não o crêem, apareceu num debate sobre o referendo na TV dizendo que a "liberalização" do aborto é uma das facetas do sistema que penaliza as mulheres trabalhadoras quando estão grávidas ou que não aplica as leis da igualdade. Esta moda da direita canibalizar a linguagem da esquerda é curiosa. Tété contribui agora com a apropriação do feminismo.

Mas, enfim, Tété é quem é. O verdadeiro prato da noite foi Zita Seabra: a apropriação pela ex-esquerda da linguagem da direita ainda é mais curiosa...

mva |

O pior

Três contributos para O Pior Português de Sempre: Salazar, Salazar, Salazar.

mva |

Exigir mais

A entrevista a Diogo Infante (por Ana Soromenho e Isabel Lopes) na Única do Expresso é um complicado exercício, tanto da parte do entrevistado como das entrevistadoras. É um caso daquela ginástica lusa que consiste em funcionar retoricamente num registo cosmopolita e liberal, ao mesmo tempo que se vai agindo de forma paroquial e conservadora - e culpando "o país" pela impossibilidade de se agir de modo cosmopolita e liberal...

A capa avisa-nos: «Somos um país de preconceitos», diz Diogo Infante. E a página de entrada da entrevista é misteriosa: «Vivo na esperança de que me exijam mais». Ana Soromenho e Isabel Lopes arrancam com uma conversa sobre Laramie, a peça que Diogo Infante levou à cena no Maria Matos, numa atitude a todos os títulos louvável. Mas Laramie é o trampolim para a referida ginástica, neste caso uma ginástica sobre os limites da fala sobre a homossexualidade.

A meio, as jornalistas perguntam: «É mais difícil dar a cara por um movimento contra posições homofóbicas?». Ao que Diogo Infante responde: «(...) não tenho receio de ser conotado com qualquer espécie de movimento, desde que tenha uma posição reflectida e íntegra e saiba por que o estou a fazer. As pessoas são livres de tirar as ilações que quiserem. E não deixo de fazer personagens que tenham uma sexualidade duvidosa ou mesmo uma conotação homossexual. No dia em que eu falar sobre a minha sexualidade ou abrir a porta da minha casa para me fotografarem o sofá ou a cozinha estou a ir por um caminho extremamente perigoso. Ser equilibrado tem muito a ver com o facto de me preservar. Esse é um direito que me assiste. Quero sossego, dispenso folclore».

Não só esse direito assiste a todos, como deve ser ferozmente defendido, mesmo para uma figura pública como um actor. Mas gostaria de apresentar a Diogo Infante uma alternativa ao seu raciocínio: o "equilíbrio" a que se refere, e que a meu ver é parte da ginástica que referi, tem o seu centro de gravidade alhures, porque uma coisa é assumir a orientação sexual, outra é "abrir as portas de casa".

Explico-me: A orientação sexual tem a ver com uma grande divisão de desigualdade na nossa sociedade; assumir a orientação sexual (a que é estigmatizada, claro) é ter um gesto político de recusa da remissão para "o privado" dos problemas sociais e políticos criados pelo heterossexismo. É justamente através dessa remissão para o "privado" que a homofobia se reproduz, através do silenciamento e da invisibilidade. Já "abrir as portas de casa" (ou da sexualidade no sentido estrito, isto é, a sexualidade íntima - que nada tem a ver com a revelação ou não da orientação sexual) é passar para o plano do íntimo. E nunca é demais lembrar que a orientação heterossexual é sistematicamente revelada no quotidiano e nenhum heterossexual se coibe de o fazer usando o argumento do privado...

Exige-se, de facto, mais. Das elites (artísticas, políticas, académicas, jornalísticas...), porque ao seu maior poder de influência deve corresponder maior responsabilidade social (sim, estou a moralizar, mas de vez em quando é preciso...). Exige-se mais correspondência entre os propalados ideais liberais e cosmopolitas e os actos e as palavras. Exigem-se saltos mortais à retaguarda que transformem esta complicada ginástica nacional de alusões, escondidas, e pequenas revelações, esta espécie de titilante véu islâmico. Bem treinados, aqueles saltos nada têm de mortal. E são lindíssimos.

mva |

Precariados de todo o mundo, uni-vos

«Um dos aspectos essenciais do neoliberalismo é o aumento de salários e novos abonos para gestores e administradores e reduções salariais para todos os outros. "Salários" dos trabalhadores são assim "custos" que "naturalmente" têm que ser reduzidos, excepto para essa nova elite que alguns investigadores consideram uma nova classe social surgida da transformação do capitalismo reformista em capitalismo financeiro. E, perante essa nova elite superior socialmente, essa nova upper class, há uma nova classe trabalhadora em formação na Europa, que mais não é do que uma regressão em termos históricos e que consiste no regresso da generalização do trabalho precário, o novo precariado, na expressão que ouvi há dias a uma pessoas amiga. É o nascimento deste novo tipo de trabalhador, ou a resistência em aceitar esta nova condição, que pode determinar o que é a luta social na Europa actual.» (São José Almeida, Público)

mva |

Antropologia espontânea ao pequeno-almoço

O café que frequento diariamente é diferente da maioria: em vez de estar sempre de porta aberta, está sempre de porta fechada. Como deve ser, aliás, para evitar demasiado frio no inverno e demasiado calor no verão, permitindo que a climatização funcione. Como todos os dias ali passo uma meia hora, já deu para perceber que a maioria das mulheres fecha a porta depois de entrar ou sair, e que a maioria dos homens não o faz. Já se tornou comum queixarmo-nos - empregados e clientes habituais - da "falta de civismo das pessoas". Mas hoje, tanto eu quanto um dos empregados, coincidimos na questão do género. Dizia o empregado que, além da relação com a porta, a maioria dos homens (que, naquele local, são sobretudo funcionários de escritório) comporta-se de forma "stressada". Dizia o empregado que às vezes pensa que se trata dum teatro para mostrar como estão ocupados, e ocupados com coisas importantes. Acrescentei um ponto, regressando à questão da porta: foram habituados a que mães e esposas (e nalguns casos também as filhas) façam tudo; eles deixam tudo por fazer e preocupam-se com as coisas verdadeiramente "importantes". O empregado - que põe mesas, serve refeições e outras actividades de serviço e cuidado... - concordou.

Não tarda nada fundamos um pequeno núcleo de estudos do género em contexto de café.

mva |

A verdadeira iniciativa privada

Um pequeno centro comercial por baixo de minha casa, concebido para ter lojas de luxo e chamar uma clientela "sofisticada". Aos poucos as lojas vão fechando. Não se aguentam. Sobrevivem os locais de restauração, a papelaria, um ou outro café - os locais úteis para a vizinhança. Fecha a joalharia 1, a joalharia 2, a galeria de arte, a loja de objectos de decoração, e por aí fora. Um belo dia abre uma oficina de sapateiro e reprodução de chaves, grande cedência do projecto "de luxo". Sem glamour, sem luxos, com cheiros intensos e sujidades várias, torna-se na loja de maior sucesso do centro comercial. O dono é um senhor de origem indiana; um dos sapateiros tem uma deficiência física visível, deslocando-se com muletas; um outro fala com sotaque eslavo; e por fim a senhora que creio ser esposa do dono, é muda. Competentíssimos, fazem tudo por cumprir tarefas, datas e critérios de qualidade.

mva |

Margem de erro

O Pedro Magalhães teve a decência (como aliás seria de esperar) de comentar o meu post sobre a sondagem da U. Católica aqui. Reconheço que eu próprio escrevo enviesadamente sobre o assunto da igualdade no acesso ao casamento. Mas o meu "problema" é justamente esse: ter a mania de que se trata de uma questão de igualdade, mais (e muito menos) do que uma questão de discussão de valores. Por isso comento sondagens como esta a partir duma suspeição profunda em relação à introdução de "alternativas à igualdade" no debate público. É claro que os direitos e a igualdade são questões de valor, do ponto de vista duma análise sociológica; do ponto de vista do nosso exercício da cidadania e da exigência da aplicação do princípio da igualdade, já a coisa fica mais complicada - e a minha compete-me (de forma auto-designada, é claro) chamar a atenção para isso. Como para o efeito público e político das São Dagens (mais do que "boca" à Católica, uma alusão ao crescente carácter divinatório e de legitimação política que as sondagens têm).

mva |

Pérolas da ciência e do jornalismo

«O presidente da Sociedade Portuguesa de Andrologia (SPA), Nuno Monteiro Pereira, alertou hoje para "o papel decisivo" das mulheres no tratamento da disfunção eréctil, realçando que são as responsáveis pela disciplina no tratamento da patologia.» (Público)

Dito assim, sem ressalvas, gera pelo menos 3 possíveis ilações:

nº 1: a disfunção eréctil só afecta heterossexuais.

nº 2: todos os homens são heterossexuais. E todas as mulheres também.

nº 3: nenhum caso de disfunção eréctil é provocado por homossexualidade armariada.

mva |

Um dia hei-de ler um livro de Agustina até ao fim

«...falar de casamento entre pessoas do mesmo sexo é distorcer o seu sentido (...) Ao longo da vida conheci homossexuais brilhantes a nível intelectual que não eram capazes de encarar o casamento. Uma coisa são os homossexuais, outra são os maricas (...) Os maricas querem todas essas prerrogativas, como o casamento. Os homossexuais não... Todos devem ter os mesmos direitos, mas para isso não é preciso falar de casamento», disse Agustina Bessa Luís ao Sol (citação descoberta aqui).

Juro que um dia me fecho em casa e não saio sem ter lido um livro de Bessa Luís até ao fim. A ver se perco a mania de achar que há escritoras heterossexuais brilhantes a nível intelectual e outras que são... sei lá... qual é mesmo o simétrico de "maricas"? Aquelas que têm a prerrogativa do casamento?

mva |

Dia de São Dagem

Segundo a sondagem da Universidade Católica feita junto de 1281 pessoas, 56% destas são contra qualquer forma de união oficialmente reconhecida entre duas pessoas do mesmo sexo, desde meras uniões de facto com alguns efeitos, até ao casamento. A sondagem da Universidade Católica oferece às 1281 pessoas "alternativas" ao casamento: "formar uniões com os mesmos direitos legais de um casamento" e "formar uniões só com alguns dos direitos legais de um casamento". Apenas 19% das 1281 pessoas são a favor do casamento tout court.

Em 2004, uma sondagem da Aximage dava 35,3% a favor da igualdade no acesso ao casamento. Sem as "alternativas" (a igualdade de direitos tem alternativas que não sejam a... desigualdade?) que têm vindo a surgir no debate público português (nomeadamente através de Rebelo de Sousa), estimuladas pela iníqua "alternativa" britânica da parceria registada, vendida como "casamento" (é assim como se houvesse dois tipos de cidadãos nacionais: os que têm todos os direitos e os que têm todos os direitos menos o de usarem o título de cidadão nacional...)

A partir da sondagem da Universidade Católica a 1281 pessoas supõe-se que 44% poderão ser convencidas - desde logo pelo governo deste estado de Direito - de que a igualdade de direitos não é apenas uma questão de "valores", "moral" ou "temas fracturantes" como quase todos os outros temas que são inquiridos nesta sondagem. Colocar a igualdade de direitos no mesmo plano que o consumo das drogas ou o sacerdócio feminino numa confissão religiosa é mais do que enviesamento: é partilhar da premissa (e oferecê-la aos inquiridos) de que há um problema moral (para não dizer pior) com a homossexualidade.

E se a pergunta tivesse sido a única da sondagem? Ou junto com outras perguntas relacionadas com a igualdade perante a lei? E se o termos da pergunta tivessem sido: "Acha que todas as pessoas adultas, mentalmente capazes, não-casadas, e sem laços de consanguinidade devem poder aceder ao casamento civil?" Caíam o Carmo e a Trindade por causa do "enviesamento".

PS (também literalmente): Do mesmo modo que a questão da igualdade no acesso ao casamento não é uma mera questão jurídica, tão-pouco o é de "moral" ou de "valores". É uma questão política sobre quão a sério se leva a igualdade dos cidadãos na lei. É assim tão difícil percebê-lo?

PS2: Porque será que nos inquéritos sobre "valores" nunca se pergunta se as pessoas acham bem que haja pouca gente muito rica e muita gente pobre? Resposta do pensamento único: porque isso é da natureza das coisas, não há que achar bem nem mal.

PS3: E porque nunca se pergunta se as mulheres devem ter direito a voto (com as alternativas "sim, mas só contando metade" e "sim, mas com o boletim preenchido pelo marido")? Porque já se interiorizou que não se trata de uma questão de "valores" mas de igualdade política incontestável.

mva |

TVI-Não

Entrevista na TVI ao ministro da saúde. Entrecortada sistematicamente por imagens dum bloco operatório, com toda a parafernália, bisturis, sangue, tensão, terminando no nascimento (pelo que se presume terem sido imagens duma cesariana) dum bébé, justamente no culminar da entrevista. Esta era sobre a objecção de consciência dos médicos e a voz off da TVI referia enfaticamente (num autêntico comentário ao que o ministro ia dizendo) a obrigação dos médicos de proteger a vida...

Nao pode ser verdade que na redacção da TVI não se saiba que grande parte dos abortos se fazem tomando um simples comprimido. Não pode ser verdade que na redacção da TVI não se saiba que comparar um embrião de oito semanas a um recém-nascido depois de nove meses de gravidez é pura e simples estupidez...

Portanto, já sabemos quem faz campanha pelo quê.

mva |

As coisas que os Passos Perdidos fazem às cabeças das pessoas

Qual é, pois, o interesse duma empresa em tornar comercialmente acessível às oito semanas o sexo do bebé? Só há uma resposta: a possibilidade de a mãe ou o casal escolherem o sexo do bebé. Não consigo ver outra "utilidade" na coisa. Desde o dia em que percebi que é tecnicamente possível determinar o sexo do filho que se vai ter às oito semanas, mais me questiono com a possibilidade de o aborto vir a ser livre, e feito nos hospitais simplesmente a pedido da mulher, até às dez semanas de gravidez, como pretende o PS com o referendo» (Zita Seabra, Público)

Conclusão: devemos ser contra a despenalização do aborto, porque as mulheres vão começar a recorrer a ele por capricho e como "planeamento" familiar (escolher o sexo dos crios). Quando se pensava que Zita Seabra já tinha feito tudo para perder crédito, ela acrescenta uma nota de pé de página suicida.

mva |

A tempestade e o copo d' água

Começa já na sexta-feira. Três sessões, daqui até Dezembro. O programa está aqui. Apareçam e participem do (in)famoso "debate nacional" e da "mudança de mentalidades"...

mva |

Deve ter sido a "mudança de mentalidades"

É óptimo que o PS invista na campanha pelo "sim" no referendo sobre a IVG. É bom sinal que Sócrates se empenhe pessoalmente. É excelente que Guterres esteja refugiado num cargo algures numa agência internacional. Mas não deixa de ser curioso que em 2006 se discuta a IVG e a "vida" e os direitos das mulheres com a mesma "pedagogia" e o mesmo "cuidado" e o mesmo "equilíbrio" com que se promovia o assunto noutros países nos anos 70 do século passado.

mva |

Sob uma saraivada de sol

Às vezes nem vale a pena rebater, debater, desconstruir... Basta citar. E ficar siderado:

«"A atracção pela morte é um dos sinais da decadência. (...) Discute-se o aborto. Discutem-se os casamentos homossexuais (por natureza estéreis). Debate-se a eutanásia. Promove-se uma cultura de morte (...) Será que a esquerda quer ficar associada a uma cultura de morte? Será que a esquerda, ao defender o aborto, a adopção por homossexuais, a liberalização das drogas, a eutanásia, quer ficar ligada ao lado mais obscuro da vida?"» José António Saraiva, Sol, 14-10-06, citado no Público.

mva |

A mãe castradora

Ontem estive no Fórum Social Português, em Almada. Com sorte, 200 pessoas terão passado pelos vários eventos. A publicidade foi ridícula. A organização, péssima, com uma separação "cuidadosa" de temáticas e coincidências de oficinas, reduzidas assim a mini-encontros para convertidos dos respectivos grupos e temáticas.

Há partidos que talvez até possam ser "acusados" de querer "penetrar" os movimentos sociais. Mas outros há, como o PC, que sabem muito bem como os matar.

Não sou suspeito de grandes simpatias - melhor, entusiasmos - pela dinâmica "Fórum Social". E não sofro de antipartidarismo primário. Mas ou alguém pega no FSP e o faz renascer longe do PC ou bye-bye e até nunca mais...

mva |

Uma prenda ao governo PS

Depois de referir que é «absolutamente a favor do casamento, da adopção», mas que «os portugueses têm de ser sensibilizados primeiro para este debate», António Serzedelo disse à TSF que «não se morre em Portugal por falta de casamento, mas por motivos de homofobia».

É verdade. Mas também é verdade que a igualdade no casamento é um dos mais fortes mecanismos contra a homofobia. Qualquer legislação que institua a igualdade é um mecanismo contra a homofobia.

Ter como prioridade uma vaga "luta contra a homofobia", mesmo com "leis anti-homofobia", sem antes mexer nos mecanismos legais da igualdade (ou sem pelo menos exigir as duas coisas em simultâneo), é um erro político grave, pelo qual pagaremos, gays e lésbicas, por muitos anos. Os ataques homofóbicos e os efeitos da homofobia nas vidas das pessoas continuarão; e não terá havido nenhum passo no sentido da igualdade na lei.

Para que os mecanismos legais e as práticas pedagógicas contra a homofobia resultem, tem que haver primeiro um reconhecimento da plena igualdade das pessoas. Caso contrário seria o mesmo que ter uma lei anti-racismo ou uma lei anti-sexismo numa sociedade onde, por exemplo, os negros não pudessem ter propriedade ou as mulheres não pudessem votar.

Uma prática de militância dedicada não justifica a ausência de uma boa teoria; como uma teoria bem intencionada, sobre um mundo sem homofobia, não se aguenta sem uma prática dirijida aos alvos certos (Um exemplo: veja-se como o nojo, em sectores da nossa população, face à ideia de dois homens ou duas mulheres casados é um dos grandes tópicos da homofobia, justamente porque o casamento ou a sua possibilidade torna legítima e "visível" a sexualidade dessas pessoas).

A homofobia não é um mero sentimento subjectivo, uma questão de psicologia, ou uma prática de gente doida ou malévola, ultrapassável por bem-intencionados programas educativos ou pela repressão dos actos homófobos; é, antes disso, uma estrutura de desigualdade assente na exacerbação duma diferença. É a diferença tornada ontologia e vertida em Lei consagradora de desigualdade. O primeiro passo para a desmontar é tirar a desigualdade da lei.

mva |

Depois de Silva Pereira ter anunciado (como quem pretende apaziguar um imaginário Portugal profundamente reaccionário) que o governo não prepara NENHUMA legislação sobre a igualdade entre homossexuais e heterossexuais, é a vez de Sousa Pinto confirmar que qualquer hipotética iniciativa fica adiada para a próxima legislatura.

Não falemos sequer do facto de a divina providência não poder garantir uma vitória do PS nas próximas eleições. Falemos, sim, do que esta constante evasão, este constante adiamento, significam política e culturalmente. É claro que o PS não se apresentou às eleições com a intenção de legislar sobre a igualdade no casamento ou na adopção. Este possível argumento - desde logo de um formalismo estéril - não adianta muito. O PS não o fez pela mesma razão que o leva agora a querer pegar nas questões "fracturantes" (quem inventou isto?, quem confere legitimidade a esta definição?) à vez: "coisas" gay só depois do aborto...

O raciocínio e a estratégia do PS baseiam-se sempre na noção de que a sociedade não está preparada, um típico medo das elites que pensam estar muito avançadas em relação à maioria dos conterrâneos. Mas é, para todos os efeitos, semelhante à dos sectores conservadores do Direito que dizem não poder este "ir à frente da sociedade" - quando a maioria das vezes vai, isso sim, conservadoramente atrás (no sentido de atrasado). Ora, acontece que não temos nenhum verdadeiro inquérito sobre a opinião social em torno destes temas; e o que de mais próximo temos - os inquéritos aos valores sociais dos portugueses - podem muito bem ser lidos como apoiando mais igualdade e democracia, e não menos.

Mas é justamente aqui que o problema deve passar de "sociológico" a propriamente político, a partir duma premissa fundamental: a democracia não é a ditadura da maioria. O valor da democracia mede-se pela sua capacidade de proteger e promover as minorias face às maiorias, assim como se mede pela capacidade de instituir a igualdade de direitos. Nada disto é claro no discurso do PS. É completamente omisso na demissão de Silva Pereira e elegantemente mastigado no discurso de Sousa Pinto (onde até a nefasta "tolerância" aparece).

O PS parece ter interiorizado uma das piores pechas culturais nacionais: a resignação face à lentidão, ao atraso, à "cauda da Europa" e, agora, ao segundo lugar em relação à Espanha. É que, caros amigos do PS, tudo aquilo que estão a discutir com tanta cautela, com tanto cuidado, com tanto medo, já foi resolvido de uma penada em Espanha, por socialistas sem maioria absoluta: a pura e simples institucionalização legal da igualdade plena. A não ser, claro, que tudo se resuma a falta de vontade vossa, ou mesmo a uma profunda oposição à igualdade entre homossexuais e heterossexuais.

Espero bem que não.

mva |

Gandas Portugueses

Eu até ia brincar e fazer um concurso chamado "Gandas Portugueses" para gozar um pouco com o lado mais assustador e patridiota que pode ter uma iniciativa como os "Grandes Portugueses" da RTP. E nos candidatos a "Ganda Português" ia colocar os Jardins, os Loureiros, as Felgueiras e, claro, os Salazares. Acontece que Salazar é mesmo um dos candidatos no concurso "a sério". Já não se pode brincar. O meu país não é para brincadeiras.

PS: Por uma questão de transparência, devo dizer que fui gentilmente convidado a sugerir nomes para este programa e fi-lo. Mas não imaginam a dificuldade que tive em descobrir nomes. Só me vinha à cabeça o Amílcar Cabral...

mva |

O mundo ao contrário

O Inspector-geral da Administração Interna diz à imprensa que "mais vale deixar fugir do que matar". Por que é necessário vir dizer isto? Porque infelizmente não é evidente entre nós. A frase reinante é, sim, "mais vale matar do que deixar fugir".

mva |

Para lá (não, para cá) da esquerda e da direita

Paula Teixeira da Cruz, do PSD, assume uma posição liberal e defende a igualdade no acesso ao casamento civil. Fernanda Mateus, do PCP, assume uma posição materialista vulgar, dando prioridade à economia e ao trabalho, e acha que o assunto não é prioritário e necessita de debate. Mário Cesariny assume uma posição de poeta-maldito à inícios de século XX e diz, enquanto homossexual assumido, o que para mim são barbaridades politicamente contraproducentes para os direitos de gays e lésbicas. Joaquim Manuel Magalhães escrevia, de um ponto de vista assumidamente gay e conservador, que deve ter o direito a casar-se com o homem com quem vive há dezenas de anos. O Bloco de Esquerda tem uma posição de princípio a favor da igualdade no acesso ao casamento civil e adopção. Pessoas várias, de Fátima Campos Ferreira (!) a membros do PS, gostam de distinguir entre o direito ao casamento, por um lado, e fortes suspeitas em relação à adopção. A JS tem um ante-projecto que abrirá seguramente o debate parlamentar sobre estes assuntos depois do referendo ao aborto - correspondendo ao pedido das lideranças socialistas no sentido dessa calendarização.

Confuso? Nem tanto. Façam um quadro de duas entrada com os nomes de pessoas e agrupamentos em cima e "defende a liberdade, a dignidade e a igualdade de direitos para todos os cidadãos como princípios basilares da democracia" ao lado. Marquem as cruzes correspondentes. And the losers are?

mva |

Ilegalizar, precarizar

Há uma boa razão para Bush querer construir um muro na fronteira com o México (ou para os dirigentes europeus darem graças pelo fenómeno natural chamado Mediterrâneo): tornar a imigração mais difícil. É que só tornando-a mais difícil pode o fluxo de imigrantes ser (ainda mais) ilegal. Só com a ilegalidade se consegue custos de mão de obra mais baixos e trabalho sem direitos. Os imigrantes ilegais são, recuperando a expressão marxista do século XIX, o exército de reserva de trabalho. Já não é preciso ter miseráveis dentro das fronteiras, dispostos a trabalhar 16 horas ou a furar greves. Eles agora criam-se noutros países, subdesenvolvidos (como verbo, não como substantivo) para o efeito. Quanto ao efeito sobre o número crescente de nacionais remediados e precários, é o mesmo: fazê-los aceitar, também eles, menos direitos, devido à concorrência pelo emprego e, de caminho, convencê-los que o inimigo é os imigrantes (e quão mais conveniente é eles serem negros ou islâmicos ou católicos ou..., do que apenas compatriotas pobres? Muito) e não os que beneficiam com este esquema. A coisa explode quando os imigrantes ilegalizados (isto é, as pessoas propositadamente tornadas ilegais) produzem filhos precarizados, mesmo que legais.

mva |

A última oportunidade?

Um grupo de pessoas à volta duma mesa. Doze, para ser mais exacto. De repente alguém nota que uma das convivas está grávida e diz que afinal são treze. Está lá o tom de ligeira piada. Mas está lá também o tom de ligeira seriedade. Quando alguém desafia o senso comum e diz que "não senhor, somos mesmo só doze", a maioria dos convivas não acha piada...

Há uns tempos escrevi qualquer coisa em que referia como as novas tecnologias médicas, nomeadamente as ecografias, permitem a construção de uma relação mais do que imaginária com o feto enquanto quase-já-filho e pessoa. A baixa da mortalidade infantil também contribui para um maior investimento afectivo na criança que aí vem, dada a maior probabilidade de o parto ser bem sucedido. E é já comum dar nome ao feto, quando antes apenas se fazia uma lista de preferências (e saber o sexo também personaliza, numa cultura em que o género é um elemento central da noção de pessoa).

Ora, há dias, M. J. Nogueira Pinto escrevia sobre isto mesmo, desde o ponto de vista conservador e "pró-vida". O estatuto do feto como pessoa e sujeito legal é a grande batalha deste sector. Como também eu dizia nesse tal texto escrito há um bom tempo (peço desculpa, mas não sei onde está?), corria-se o risco de em Portugal não se conseguir despenalizar o aborto caso esta nova "visão cultural dos fetos" avançasse ainda mais. Portugal poderia mesmo ser apanhado a discutir a despenalização num momento em que, nos países que a aprovaram há muito tempo, os sectores conservadores começassem a colocar o estatuto do feto-enquanto-pessoa na agenda política - como já acontece, aliás, nos EUA.

Daqui a poucos meses teremos, pois, a última oportunidade. Antes que aquilo que tem sido uma bandeira dos militantes anti-escolha passe a ser - por razões outras, não ideológicas - um novo senso comum. E isto na ausência, claro, de uma consciente interiorização pela sociedade em geral da importância decisiva dos direitos das mulheres enquanto cidadãs e pessoas autónomas - que, a meu ver, é sempre (lá no fundo, como se costuma dizer) a verdadeira questão que se referenda.

mva |

Adeus, coronel

Esta é uma grande notícia para a minha querida Bahia (via Canhoto). Nem é preciso fazer uma grande análise sobre a estrutura de classes ou o sistema económico baiano, ou sequer uma análise do "coronelismo pós-moderno" de António Carlos Magalhães e do seu sucessor Paulo Souto. Basta pensar na simbólica do espaço e serviços públicos. Não imaginam o sufocante que é chegar a central de camionagem após central de camionagem, num périplo pelo interior baiano, e ver que uma grande parte delas se chama "António Carlos Magalhães". Até o aeroporto de Salvador tem o nome do filho do coronelão.

Acontece, porém, que por cá comecei a ver surgir o mesmo tipo de coisa, agora que 30 anos de democracia à portuguesa já permitiram o surgimento de coronéis autárquicos portugueses. Talvez os leitores tenham exemplos que possam enviar: obras que levam o nome do autarca, ruas com nomes de pessoas vivas (algo até há pouco praticamente "proibido" em Portugal). Em tendo, enviem para este blog.

PS: Não se qualifica exactamente como exemplo do acima dito, mas há qualquer coisa de bizarro em chamar "Sá Carneiro" ao aeroporto do Porto. Não é propriamente inspirador de segurança aérea...

mva |

Aos fiéis,

Não, não despareci. Confesso que já estive this close de desistir do blog, ao verificar a pura e simples impossibilidade de postar, ou de o fazer com um mínimo de originalidade, pertinência e qualidade: dias e dias de 12 horas de faculdade-bolonhesa e com um cargo tornam difícil não só a "contemplação" necessária para postar, como até impedem a oportunidade de sentir "pica" ao ler um jornal ou um blog (pela simples razão de que essa actividade fica vedada...).

Mas isto acalma... (yeah, right...). E aproxima-se uma belíssima ponte.

[Vá, agora quero aqueles comentários simpáticos a pedirem para não desistir! ;)]

mva |

Fac simile

Excelente, o novo Público digital. Para quem está sempre a "cascar", não queria deixar de dizer bem.

mva |

Intersexo

Uma outra forma de mutilação (para alguns "adequação") é o que se faz com as pessoas intersexo (antigamente "hermafroditas") à nascença. O assunto já vem sendo tratado desde os finais dos anos sessenta do século 20, com o estudo do etnometodólogo Garfinkel sobre a história de Agnes. O New York Times publicou uma reportagem sobre um caso, a motivação para este post (obrigado, António!); substitui volumes sobre a correspondência entre sexo e género e sobre o carácter construído de ambos (esta vai dar discussão...). E a antropóloga brasileira Mariza Corrêa está presentemente a trabalhar sobre o assunto, numa perspectiva que aborda as decisões normativas da classe médica sobre os corpos. Talvez mais ainda do que a questão transexual (que tem a ver com o livre arbítrio e as restrições ao mesmo), a questão intersexo (em que o "sexo" de alguém - e, no regime actual, o género também - é decidido por outrém)desafia a ordem dicotómica em que (ainda) vivemos...

mva |

Interrupção voluntária da direita

É o que acontece quando se não se acredita verdadeiramente na penalização do aborto; quando não se abraça a despenalização sobretudo por cálculo político-partidário e por receio da influência da Igreja Católica junto das bases; e quando se é de facto dirigido por eminências pardas cujo poder reside em estarem ao mesmo tempo fora e dentro dos respectivos partidos.

mva |

marcar artigo