Fotografia retirada daquiSe eu pudesse fazer com que viessesTodos os dias, como antigamente,Falar-me nessa lúcida visão -Estranha, sensualíssima, mordente;Se eu pudesse contar-te e tu me ouvisses,Meu pobre e grande e genial artista,O que tem sido a vida - esta boémiaCoberta de farrapos e de estrelas,Tristíssima, pedante, e contrafeita,Desde que estes meus olhos numa névoaDe lágrimas te viram num caixão;Se eu pudesse, Fernando, e tu me ouvisses,Voltávamos à mesma: Tu, lá ondeOs astros e as divinas madrugadasNoivam na luz eterna de um sorriso;E eu, por aqui, vadio de descrençaTirando o meu chapéu aos homens de juízo...Isto por cá vai indo como dantes;O mesmo arremelgado idiotismoNuns senhores que tu já conhecias- Autênticos patifes bem falantes...E a mesma intriga: as horas, os minutos,As noites sempre iguais, os mesmos dias,Tudo igual! Acordando e adormecendoNa mesma cor, do mesmo lado, sempreO mesmo ar e em tudo a mesma posiçãoDe condenados, hirtos, a viver -Sem estímulo, sem fé, sem convicção...Poetas, escutai-me. TransformemosA nossa natural angústia de pensar -Num cântico de sonho!, e junto dele,Do camarada raro que lembramos,Fiquemos uns momentos a cantar!António BottoPoema de CinzaAs Canções de António Botto Editorial Presença - 1999
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Fotografia retirada daquiSe eu pudesse fazer com que viessesTodos os dias, como antigamente,Falar-me nessa lúcida visão -Estranha, sensualíssima, mordente;Se eu pudesse contar-te e tu me ouvisses,Meu pobre e grande e genial artista,O que tem sido a vida - esta boémiaCoberta de farrapos e de estrelas,Tristíssima, pedante, e contrafeita,Desde que estes meus olhos numa névoaDe lágrimas te viram num caixão;Se eu pudesse, Fernando, e tu me ouvisses,Voltávamos à mesma: Tu, lá ondeOs astros e as divinas madrugadasNoivam na luz eterna de um sorriso;E eu, por aqui, vadio de descrençaTirando o meu chapéu aos homens de juízo...Isto por cá vai indo como dantes;O mesmo arremelgado idiotismoNuns senhores que tu já conhecias- Autênticos patifes bem falantes...E a mesma intriga: as horas, os minutos,As noites sempre iguais, os mesmos dias,Tudo igual! Acordando e adormecendoNa mesma cor, do mesmo lado, sempreO mesmo ar e em tudo a mesma posiçãoDe condenados, hirtos, a viver -Sem estímulo, sem fé, sem convicção...Poetas, escutai-me. TransformemosA nossa natural angústia de pensar -Num cântico de sonho!, e junto dele,Do camarada raro que lembramos,Fiquemos uns momentos a cantar!António BottoPoema de CinzaAs Canções de António Botto Editorial Presença - 1999