A B S O R T O: EUGÉNIO DE ANDRADE (II)

26-01-2012
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Foto "Público" - (post escrito um ano atrás com dois poemas).Ouvi dizer, e é público, que o Eugénio de Andrade está muito doente. Não serve de nada glosar as doenças nem chorar a morte dos poetas. Eles quando são verdadeiros ficam sempre vivos. Quando são grandes tornam-se imortais. Não sei se Portugal segue esta regra universal. Aqui somos mais dados à inveja e ao esquecimento. Quanto mais obra e obra mais aprimorada, sem vénias, nem costas curvadas, pior para o protagonista.Não são palavras amargas, suficientemente amargas, as que digo. São o menos que se pode dizer de um país que inverte em tudo a hierarquia da importância das coisas. E da importância dos homens. Por isso não te admires se fores votado ao esquecimento. A tua glória já dura há muito tempo. És, graças a Deus, admirado em vida. Admirado por aqueles que merecem admirar-te. Não interessa nada admirar-te na doença. Muito menos na morte.Tenho aqui na minha frente uns quantos poemas dedicados a heróis e amigos mortos: Guillaume Apollinaire, Augusto Gomes, Vicente Aleixandre, Kavafis, Che Guevara, José Dias Coelho, Casais Monteiro, Pier Paolo Pasolini, Jorge de Sena, Ruy Belo, Carlos Oliveira, Vitorino Nemésio e tantos mais. Teus heróis e amigos. Um poema destes vale mais que todas as homenagens da praxe com regresso garantido ao baú das memórias. Ainda para mais quando sabemos que estão na fila de espera um ror de poetas vivos, e de saúde, para ser condecorados.A CASAIS MONTEIRO,PODENDO SERVIR DE EPITÁFIOO que dói não é um álamo.Não é a neve nem a raizda alegria apodrecendo nas colinas.O que dóinão é sequer o brilho de um pulsoter cessado,e a música, que traziaàs vezes um suspiro, outras um barco.O que dói é saber.O que dóié a pátria, que nos divide e mataantes de se morrer.Setembro, 72A JORGE DE SENA,NO CHÃO DA CALIFÓRNIAÉ por orgulho que já não sobesas escadas? Terás adivinhadoque não gostei desse ajuste de contasque foi a tua agonia?É só por isso que não viesteeste verão bater-me à porta?Não sabes jáque entre mim e tihá só a noite e nunca haverá morte?Não te faltou orgulho, eu sei;orgulho de ergueres dia a diacom mãos trementesa vida à tua altura-mas a outra face quem a suspeitou?Quem amou em tio rapazito frágil, inseguro,a irmã gentil que não tivemos?Escreveste como o sangue canta:de-ses-pe-ra-da-men-te.e mostraste como não é fácilneste país exíguo ser-se breve.Talvez o tempo te faltassepara pesar com mão feliz o aronde sobrouum juvenil ardor até ao fim.No que nos deixaste há de tudo,desde o copo de água frescaao uivo de lobos acossados.Há quem prefira ler-te os versos,outros a prosa, alguns aindapreferem o que sobre a liberdadede ser homemfoste deixando por aíem prosa ou verso, e tangívelbrilhaonde antes parecia morta.Às vezes orgulhavas-tede ter, em vez de uma, duas pátrias;pobre de ti: não tiveste nenhuma;ou tiveste apenas essaque te roía o coraçãofiel às palavras da tribo.Andaste por muito lado a ver se o mundoera maior que tu – concluíste que não.Tiveste mulher e filhos portuguesmenterepartidos pela terra,e alguns amigos,entre os quais me conto.E se conta o vento.Agosto, 1978(Post publicado, cerca de um ano atrás, quando soube, ao certo, da doença que atingira o poeta. Ao poema dedicado a Casais Monteiro, aquando da sua morte, junto outro que Eugénio de Andrade escreveu quando teve conhecimento da morte de Jorge de Sena).


Foto "Público" - (post escrito um ano atrás com dois poemas).Ouvi dizer, e é público, que o Eugénio de Andrade está muito doente. Não serve de nada glosar as doenças nem chorar a morte dos poetas. Eles quando são verdadeiros ficam sempre vivos. Quando são grandes tornam-se imortais. Não sei se Portugal segue esta regra universal. Aqui somos mais dados à inveja e ao esquecimento. Quanto mais obra e obra mais aprimorada, sem vénias, nem costas curvadas, pior para o protagonista.Não são palavras amargas, suficientemente amargas, as que digo. São o menos que se pode dizer de um país que inverte em tudo a hierarquia da importância das coisas. E da importância dos homens. Por isso não te admires se fores votado ao esquecimento. A tua glória já dura há muito tempo. És, graças a Deus, admirado em vida. Admirado por aqueles que merecem admirar-te. Não interessa nada admirar-te na doença. Muito menos na morte.Tenho aqui na minha frente uns quantos poemas dedicados a heróis e amigos mortos: Guillaume Apollinaire, Augusto Gomes, Vicente Aleixandre, Kavafis, Che Guevara, José Dias Coelho, Casais Monteiro, Pier Paolo Pasolini, Jorge de Sena, Ruy Belo, Carlos Oliveira, Vitorino Nemésio e tantos mais. Teus heróis e amigos. Um poema destes vale mais que todas as homenagens da praxe com regresso garantido ao baú das memórias. Ainda para mais quando sabemos que estão na fila de espera um ror de poetas vivos, e de saúde, para ser condecorados.A CASAIS MONTEIRO,PODENDO SERVIR DE EPITÁFIOO que dói não é um álamo.Não é a neve nem a raizda alegria apodrecendo nas colinas.O que dóinão é sequer o brilho de um pulsoter cessado,e a música, que traziaàs vezes um suspiro, outras um barco.O que dói é saber.O que dóié a pátria, que nos divide e mataantes de se morrer.Setembro, 72A JORGE DE SENA,NO CHÃO DA CALIFÓRNIAÉ por orgulho que já não sobesas escadas? Terás adivinhadoque não gostei desse ajuste de contasque foi a tua agonia?É só por isso que não viesteeste verão bater-me à porta?Não sabes jáque entre mim e tihá só a noite e nunca haverá morte?Não te faltou orgulho, eu sei;orgulho de ergueres dia a diacom mãos trementesa vida à tua altura-mas a outra face quem a suspeitou?Quem amou em tio rapazito frágil, inseguro,a irmã gentil que não tivemos?Escreveste como o sangue canta:de-ses-pe-ra-da-men-te.e mostraste como não é fácilneste país exíguo ser-se breve.Talvez o tempo te faltassepara pesar com mão feliz o aronde sobrouum juvenil ardor até ao fim.No que nos deixaste há de tudo,desde o copo de água frescaao uivo de lobos acossados.Há quem prefira ler-te os versos,outros a prosa, alguns aindapreferem o que sobre a liberdadede ser homemfoste deixando por aíem prosa ou verso, e tangívelbrilhaonde antes parecia morta.Às vezes orgulhavas-tede ter, em vez de uma, duas pátrias;pobre de ti: não tiveste nenhuma;ou tiveste apenas essaque te roía o coraçãofiel às palavras da tribo.Andaste por muito lado a ver se o mundoera maior que tu – concluíste que não.Tiveste mulher e filhos portuguesmenterepartidos pela terra,e alguns amigos,entre os quais me conto.E se conta o vento.Agosto, 1978(Post publicado, cerca de um ano atrás, quando soube, ao certo, da doença que atingira o poeta. Ao poema dedicado a Casais Monteiro, aquando da sua morte, junto outro que Eugénio de Andrade escreveu quando teve conhecimento da morte de Jorge de Sena).

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