“Foto de António José Alegria, do amistad”"A Poesia de Camões" por Jorge de Sena (excerto)(...)“E de facto, para a popularidade, a narração amplificada e amplificadora das glórias nacionais valeu e vale no poema, [“Os Lusíadas”] por contraste, e porque, a cada passo, surgem aqueles trechos candentes de juízo final, como este:No mais Musa, no mais, que a Lira tenhoDestemperada, e a voz enrouquecida,E não do canto, mas de ver que venhoCantar a gente surda, e endurecida:O favor com que mais se acende o engenho,Não no dá a pátria, não, que esta metida,no gosto da cubiça, e na rudeza,Dhua austera, apagada, e vil tristeza, (*)Ou este:E ponde na cobiça hum freio duro,E na ambiçam também, que indignamenteTomais mil vezes, e no torpe e escuroVício da tirania infame e urgente:Porque essas honras vãas, esse ouro puroVerdadeiro valor não dão à gente,Melhor é merecê-los, sem os terQue possuí-los sem os merecer.(…)- trechos bem pouco épicos, bem pouco adequados à cantoria que a retórica balofa se esforça por extrair dos Lusíadas mas, apesar de tudo, épicos por contradição, na medida em que a pessoal revolta se desprende dos seus próprios problemas e se arroga o direito, não de julgar e condenar, o que seria pouco e amarrado ao tempo, mas de desmascarar a situação colectiva.É neste mesmo sentido que a longa e célebre fala do Velho do Restelo, em que se tem querido ver o Portugal da terra contra o Portugal dos mares, ou ainda, o espírito de prudência contra o espírito de aventura, é, principalmente, a expressão – “com saber só d´experiencias feito” – da “misera sorte, estranha condição”: a originalíssima irrupção, no plano da criação épica, do valor intrínseco e precário da vida humana como tal afirmado por um homem que, numa canção, enlevado na angústia perene da sua meditação afirma –Não cuide o pensamentoQue pode achar na morteO que não pode achar tão longa vida(*) Todas as citações do épico são feitas do fascimile da 1ª edição de "Os Lusíadas” pois que aí se entende tudo o que os gramáticos tem conseguido que não seja entendido.”Jorge de SenaExcerto de “A Poesia de Camões” – Ensaio de Revelação da Dialéctica Camoneana (Conferência lida no Clube Fenianos Portuenses, em 12 de Junho de 1948).In “Cadernos de Poesia” – Fascículo Sete – Segunda SérieLisboa, Junho de 1951
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“Foto de António José Alegria, do amistad”"A Poesia de Camões" por Jorge de Sena (excerto)(...)“E de facto, para a popularidade, a narração amplificada e amplificadora das glórias nacionais valeu e vale no poema, [“Os Lusíadas”] por contraste, e porque, a cada passo, surgem aqueles trechos candentes de juízo final, como este:No mais Musa, no mais, que a Lira tenhoDestemperada, e a voz enrouquecida,E não do canto, mas de ver que venhoCantar a gente surda, e endurecida:O favor com que mais se acende o engenho,Não no dá a pátria, não, que esta metida,no gosto da cubiça, e na rudeza,Dhua austera, apagada, e vil tristeza, (*)Ou este:E ponde na cobiça hum freio duro,E na ambiçam também, que indignamenteTomais mil vezes, e no torpe e escuroVício da tirania infame e urgente:Porque essas honras vãas, esse ouro puroVerdadeiro valor não dão à gente,Melhor é merecê-los, sem os terQue possuí-los sem os merecer.(…)- trechos bem pouco épicos, bem pouco adequados à cantoria que a retórica balofa se esforça por extrair dos Lusíadas mas, apesar de tudo, épicos por contradição, na medida em que a pessoal revolta se desprende dos seus próprios problemas e se arroga o direito, não de julgar e condenar, o que seria pouco e amarrado ao tempo, mas de desmascarar a situação colectiva.É neste mesmo sentido que a longa e célebre fala do Velho do Restelo, em que se tem querido ver o Portugal da terra contra o Portugal dos mares, ou ainda, o espírito de prudência contra o espírito de aventura, é, principalmente, a expressão – “com saber só d´experiencias feito” – da “misera sorte, estranha condição”: a originalíssima irrupção, no plano da criação épica, do valor intrínseco e precário da vida humana como tal afirmado por um homem que, numa canção, enlevado na angústia perene da sua meditação afirma –Não cuide o pensamentoQue pode achar na morteO que não pode achar tão longa vida(*) Todas as citações do épico são feitas do fascimile da 1ª edição de "Os Lusíadas” pois que aí se entende tudo o que os gramáticos tem conseguido que não seja entendido.”Jorge de SenaExcerto de “A Poesia de Camões” – Ensaio de Revelação da Dialéctica Camoneana (Conferência lida no Clube Fenianos Portuenses, em 12 de Junho de 1948).In “Cadernos de Poesia” – Fascículo Sete – Segunda SérieLisboa, Junho de 1951