Virar a vida de pernas para o ar

09-08-2015
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Candé estreou-se em “A Missão”, de Calle. Mas foi a custo que veio conhecê-la. “Foi o Boss [de seu nome Mário Fernandes, um dos ex-reclusos que trabalhou com Mónica Calle em Vale de Judeus] quem me trouxe para cá. Mas não foi fácil, não foi fácil. O Boss sempre foi um gajo que anda sempre na brincadeira, na ‘reinação’ com toda a gente, e quando ele me disse que fazia teatro, e que queria que eu fosse lá com ele, eu achei que ele estava no gozo, tás a ver? Nem liguei. Mas ele insistiu, e um dia disse-me, se não quiseres vir, não vens. Fica para aí na tua vida! Ele tanto marrou comigo, vamos, vamos, vamos!, que eu abri a pestana e lá fui, ao Cais do Sodré. Mas calma… quando lá cheguei, disse: é aqui? É aqui que vão fazer teatro? Estava à espera de um palco, de uma cortina, de uma plateia. Não havia nada disso. Mas logo que comecei a trabalhar com ela [Mónica Calle], percebi que tudo aquilo fazia sentido exatamente como era.”

– Ó, tu! Pssst! Anda cá, anda cá. Fala também aqui com ele.

Candé chama por Emilita Cassamá, 30 anos, há nove no Reino Unido, que se aproxima, tímida. Está de visita ao Bairro onde cresceu. “Eu não fiquei contente com a vinda da Casa para cá, fiquei triste. [Risos] Eu sempre quis fazer teatro, sempre gostei de decorar textos, e participei numas peças das irmãs [da Ordem de Madre Teresa de Calcutá, no Bairro do Condado], que organizavam aí umas coisas pelo Natal. Mas fui viver para Londres e não tenho como participar nas peças da Mónica. Mas é bom, é mesmo muito bom para os jovens do bairro, que andam para aí sem rumo, para ver se ganham um. E talvez até descubram que têm um talento, que têm um dom e que podem ser atores.”

Bruno Candé foi um desses jovens. Hoje, é ele quem os traz. “O Bruno? O Bruno é o melhor ator que eu conheço. [Risos] Nós somos da mesma criação, crescemos juntos, e sei que ele sempre teve dentro dele o bichinho do teatro, e tinha a certeza que ele um dia ia ser ator, um grande ator. E ele é muito importante para a Casa Conveniente, porque toda a gente o conhece, toda a gente gosta dele, tem um grande carinho por ele, e muitos também vêm por causa dele, porque ele insiste. E depois gostam e ficam.”, lembra Emilita.

A história de Candé, e da vontade de Candé em fazer teatro, não começou com Mónica Calle, em 2011, mas vem desde a sua infância, na Casa Pia. “Eu sempre quis ser ator, sabes? Eu tinha, sei lá?, uns oito anos, e no nosso lar nós tínhamos aquelas atividades de final de ano, e havia teatro e tal. Um amigo meu, o Milton, desistiu em cima da hora, um dia antes da apresentação, e eu, também em cima da hora, tive que preparar qualquer coisa. O que é que eu fiz? Fiquei a noite toda acordado, a ver o vídeo da Tina Turner com o Bryan Adams, sabes qual é?, aquele do It’s only love [e trauteia o refrão], e fiz uma imitação do caraças”. Candé ainda frequentou o Chapitô, num workshop com Bruno Schiappa. “Foi o Sr. Magalhães que me propôs ir lá. Fiz um curso de expressão dramática com o Schiappa, mas foi só um ano. Mas calma!, não acabou aí, ainda fui fazer um casting ao La Féria, para uma espetáculo dele, tinha uns 16 ou 17 anos, mas era muito velho para o que ele pretendia, e não fiquei. Ele gostou de mim, e disse-me que era pena eu ter tanta idade”, recorda.

Foi com Mónica Calle que Candé voltou a representar. No final de 2011, em Macbeth, um espetáculo de Calle a partir da adaptação da tragédia de Shakespeare por Heiner Müller, Candé partilhou o palco com René e Boss, mas também com dois atores profissionais, Mónica Garnel — uma das atrizes que mais trabalhou com a Casa Conveniente desde o começo — e José Raposo. Mónica Calle nunca hesitou em rodear-se nas suas criações de atores e amadores. “Quando eu os misturo, há uma partilha que é muito bonita de se ver. Ao longo da vida, do nosso percurso, nós, atores, criamos obstáculos a nós próprios. A curiosidade, a inocência que há nos amadores, como o Candé, o René ou o Boss, volta a depará-los, aos atores, com a curiosidade e a inocência que os trouxe aqui, à profissão, e que foram perdendo. Todos nós, independentemente do sítio de onde vimos, independentemente do nosso passado ou da nossa história, aquilo que nos liga, atores ou amadores, quer vivamos em Campo de Ourique ou em Chelas, é transversal. Queremos encontrar-nos, num sítio, numa casa, e ser felizes lá.”

A viagem de Mónica Calle, 49 anos, há 23 como diretora, encenadora e atriz na Casa Conveniente, vai ainda no começo. Em novembro despediu-se do Cais do Sodré com um solo sobre “A Sagração da Primavera”, de Stravinsky. Chegou à Zona J com “A Boa Alma”, também a solo, com um texto reescrito por Luís Mário Lopes a partir de Brecht e música de JP Simões. Por estes dias, trabalha, não à lareira improvisada por Candé, que é verão e do Tejo vem uma brisa que faz de Chelas um lugar ameno, mas ainda à candeia, ainda sem portas nem janelas, ainda sentados em bancos que foram portas, bancos suportados por entulho que foram paredes. Trabalha-se Luigi Pirandello. “Esta Noite Improvisa-se” é precisamente isso: um espetáculo que tem muito de improviso, criado de manhã e apresentado à noitinha, todos os dias, na Casa Conveniente, no Bairro do Condado, em Chelas.

Circo: o lugar onde o risco do trapézio é menor que o risco da solidão

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A Escola Profissional de Artes e Ofícios do Espectáculo (EPAOE) surgiu em 1991. São 24 anos de uma história que se confunde com a própria história do Chapitô — que nasceu uma década antes –, e os dois se confundem com a história de Teresa Ricou, ou Teté, a mais famosa mulher-palhaço do país, uma mulher das artes e não só do circo, uma ativista, que desde o primeiro dia desejou ter uma escola que, mais do que formar artistas, “formasse homens e mulheres de valor e com valores”. Encontrámo-la à tarde, na Costa do Castelo, onde o Chapitô assentou a tenda desde sempre. E é de olhos na tenda, onde os alunos do 1º ano do curso de Interpretação e Animação Circenses ensaiam o espetáculo de final de ano, que conversámos.

“Nós trabalhamos para a sociedade, integrando os jovens, mostrando que é possível integrá-los, vindos dos mais diversos meios, venham lá eles de onde vieram, através das artes. Não, o problema da integração não está na miudagem. O problema está sempre nos adultos. Os jovens são jovens, todos nós nascemos limpinhos e fresquinhos, e o mundo é que nos vai transformando conforme. Os jovens sempre existiram. Se eles crescerem com uma boa escola — que é o que nós tentamos fazer aqui –, eles vão sair ótimos adultos e ótimos profissionais. Agora, se eles não tiverem uma educação que lhes permita isso, eles vão andar para aí à toa, como muita coisa anda à toa neste país”, lamenta Teresa Ricou.

Candé estreou-se em “A Missão”, de Calle. Mas foi a custo que veio conhecê-la. “Foi o Boss [de seu nome Mário Fernandes, um dos ex-reclusos que trabalhou com Mónica Calle em Vale de Judeus] quem me trouxe para cá. Mas não foi fácil, não foi fácil. O Boss sempre foi um gajo que anda sempre na brincadeira, na ‘reinação’ com toda a gente, e quando ele me disse que fazia teatro, e que queria que eu fosse lá com ele, eu achei que ele estava no gozo, tás a ver? Nem liguei. Mas ele insistiu, e um dia disse-me, se não quiseres vir, não vens. Fica para aí na tua vida! Ele tanto marrou comigo, vamos, vamos, vamos!, que eu abri a pestana e lá fui, ao Cais do Sodré. Mas calma… quando lá cheguei, disse: é aqui? É aqui que vão fazer teatro? Estava à espera de um palco, de uma cortina, de uma plateia. Não havia nada disso. Mas logo que comecei a trabalhar com ela [Mónica Calle], percebi que tudo aquilo fazia sentido exatamente como era.”

– Ó, tu! Pssst! Anda cá, anda cá. Fala também aqui com ele.

Candé chama por Emilita Cassamá, 30 anos, há nove no Reino Unido, que se aproxima, tímida. Está de visita ao Bairro onde cresceu. “Eu não fiquei contente com a vinda da Casa para cá, fiquei triste. [Risos] Eu sempre quis fazer teatro, sempre gostei de decorar textos, e participei numas peças das irmãs [da Ordem de Madre Teresa de Calcutá, no Bairro do Condado], que organizavam aí umas coisas pelo Natal. Mas fui viver para Londres e não tenho como participar nas peças da Mónica. Mas é bom, é mesmo muito bom para os jovens do bairro, que andam para aí sem rumo, para ver se ganham um. E talvez até descubram que têm um talento, que têm um dom e que podem ser atores.”

Bruno Candé foi um desses jovens. Hoje, é ele quem os traz. “O Bruno? O Bruno é o melhor ator que eu conheço. [Risos] Nós somos da mesma criação, crescemos juntos, e sei que ele sempre teve dentro dele o bichinho do teatro, e tinha a certeza que ele um dia ia ser ator, um grande ator. E ele é muito importante para a Casa Conveniente, porque toda a gente o conhece, toda a gente gosta dele, tem um grande carinho por ele, e muitos também vêm por causa dele, porque ele insiste. E depois gostam e ficam.”, lembra Emilita.

A história de Candé, e da vontade de Candé em fazer teatro, não começou com Mónica Calle, em 2011, mas vem desde a sua infância, na Casa Pia. “Eu sempre quis ser ator, sabes? Eu tinha, sei lá?, uns oito anos, e no nosso lar nós tínhamos aquelas atividades de final de ano, e havia teatro e tal. Um amigo meu, o Milton, desistiu em cima da hora, um dia antes da apresentação, e eu, também em cima da hora, tive que preparar qualquer coisa. O que é que eu fiz? Fiquei a noite toda acordado, a ver o vídeo da Tina Turner com o Bryan Adams, sabes qual é?, aquele do It’s only love [e trauteia o refrão], e fiz uma imitação do caraças”. Candé ainda frequentou o Chapitô, num workshop com Bruno Schiappa. “Foi o Sr. Magalhães que me propôs ir lá. Fiz um curso de expressão dramática com o Schiappa, mas foi só um ano. Mas calma!, não acabou aí, ainda fui fazer um casting ao La Féria, para uma espetáculo dele, tinha uns 16 ou 17 anos, mas era muito velho para o que ele pretendia, e não fiquei. Ele gostou de mim, e disse-me que era pena eu ter tanta idade”, recorda.

Foi com Mónica Calle que Candé voltou a representar. No final de 2011, em Macbeth, um espetáculo de Calle a partir da adaptação da tragédia de Shakespeare por Heiner Müller, Candé partilhou o palco com René e Boss, mas também com dois atores profissionais, Mónica Garnel — uma das atrizes que mais trabalhou com a Casa Conveniente desde o começo — e José Raposo. Mónica Calle nunca hesitou em rodear-se nas suas criações de atores e amadores. “Quando eu os misturo, há uma partilha que é muito bonita de se ver. Ao longo da vida, do nosso percurso, nós, atores, criamos obstáculos a nós próprios. A curiosidade, a inocência que há nos amadores, como o Candé, o René ou o Boss, volta a depará-los, aos atores, com a curiosidade e a inocência que os trouxe aqui, à profissão, e que foram perdendo. Todos nós, independentemente do sítio de onde vimos, independentemente do nosso passado ou da nossa história, aquilo que nos liga, atores ou amadores, quer vivamos em Campo de Ourique ou em Chelas, é transversal. Queremos encontrar-nos, num sítio, numa casa, e ser felizes lá.”

A viagem de Mónica Calle, 49 anos, há 23 como diretora, encenadora e atriz na Casa Conveniente, vai ainda no começo. Em novembro despediu-se do Cais do Sodré com um solo sobre “A Sagração da Primavera”, de Stravinsky. Chegou à Zona J com “A Boa Alma”, também a solo, com um texto reescrito por Luís Mário Lopes a partir de Brecht e música de JP Simões. Por estes dias, trabalha, não à lareira improvisada por Candé, que é verão e do Tejo vem uma brisa que faz de Chelas um lugar ameno, mas ainda à candeia, ainda sem portas nem janelas, ainda sentados em bancos que foram portas, bancos suportados por entulho que foram paredes. Trabalha-se Luigi Pirandello. “Esta Noite Improvisa-se” é precisamente isso: um espetáculo que tem muito de improviso, criado de manhã e apresentado à noitinha, todos os dias, na Casa Conveniente, no Bairro do Condado, em Chelas.

Circo: o lugar onde o risco do trapézio é menor que o risco da solidão

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A Escola Profissional de Artes e Ofícios do Espectáculo (EPAOE) surgiu em 1991. São 24 anos de uma história que se confunde com a própria história do Chapitô — que nasceu uma década antes –, e os dois se confundem com a história de Teresa Ricou, ou Teté, a mais famosa mulher-palhaço do país, uma mulher das artes e não só do circo, uma ativista, que desde o primeiro dia desejou ter uma escola que, mais do que formar artistas, “formasse homens e mulheres de valor e com valores”. Encontrámo-la à tarde, na Costa do Castelo, onde o Chapitô assentou a tenda desde sempre. E é de olhos na tenda, onde os alunos do 1º ano do curso de Interpretação e Animação Circenses ensaiam o espetáculo de final de ano, que conversámos.

“Nós trabalhamos para a sociedade, integrando os jovens, mostrando que é possível integrá-los, vindos dos mais diversos meios, venham lá eles de onde vieram, através das artes. Não, o problema da integração não está na miudagem. O problema está sempre nos adultos. Os jovens são jovens, todos nós nascemos limpinhos e fresquinhos, e o mundo é que nos vai transformando conforme. Os jovens sempre existiram. Se eles crescerem com uma boa escola — que é o que nós tentamos fazer aqui –, eles vão sair ótimos adultos e ótimos profissionais. Agora, se eles não tiverem uma educação que lhes permita isso, eles vão andar para aí à toa, como muita coisa anda à toa neste país”, lamenta Teresa Ricou.

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