Em 20 anos, a escola democratizou-se, mas não venceu o insucesso

10-09-2012
marcar artigo

A escola passou a ser para todos, mas continua presa a um modelo pensado para as elites. O insucesso e a autonomia são problemas com mais de 20 anos ainda à espera de solução

Em Setembro de 1992, o então ministro da Educação, Couto dos Santos, assinalava a abertura do arranque do ano escolar numa escola acabada de construir em Matosinhos, ao mesmo tempo que o primeiro-ministro, Cavaco Silva, confirmava o fecho de cerca de mil das 1500 escolas com menos de dez alunos. Então como agora, o país debatia-se com o insucesso escolar e, no mesmo mês, o Governo anunciava o investimento de 150 mil contos anuais num programa de combate às elevadíssimas taxas de abandono precoce, que rondavam os 50%.

Vinte anos volvidos, essa taxa reduziu-se a 23%, e a frequência do secundário aumentou de 40% para 70%, mas o ensino melhorou? "Melhorou imenso e democratizou-se", aponta o catedrático Joaquim Azevedo, que, em 1992, era secretário de Estado do Ensino Básico e Secundário. "Mas", acrescenta, "continuou preso a um modelo de educação que foi pensado para as elites, o que ajuda a explicar a manutenção dos elevados níveis de insucesso", e, além disso, deixou escapar duas oportunidades importantes: "A autonomia das escolas e a formação de adultos."

David Justino, um dos 12 ministros que passaram pela Educação desde 1992, também considera que os ganhos obtidos nas últimas décadas podem ficar hipotecados se a escola não for capaz de pensar "uma estratégia de desenvolvimento para o futuro". "A lei de bases do sistema educativo", concretiza o ex-ministro do PSD, "tem 25 anos e o mundo já não é o mesmo. Era preciso revê-la."

Reconhecendo embora o caminho percorrido, por exemplo em termos de alargamento do pré-escolar e do ensino superior, o professor Santana Castilho sustenta que os alunos têm pior escola pública hoje. "As condições de trabalho nas escolas e de exercício da profissão por parte dos professores degradaram-se e entraram num estado absolutamente calamitoso. Hoje, o professor não tem liberdade intelectual", acusa o autor de vários artigos sobre gestão escolar e política educativa.

Universidades sem controlo

Uma comparação grosseira dos principais indicadores ilustra bem a evolução do país. Veja-se a taxa real de escolarização, ou seja, a relação percentual entre a população escolar e a população residente para cada idade. Em 1992, essa taxa era de 65,5% no 3.º ciclo do básico. Em 2011, estava nos 90%, segundo a base de dados Pordata. Já no pré-escolar aumentou de 52% para 84%. Do mesmo modo, a duração média da pré-escolarização passou de 1,6 para os actuais 2,5 anos.

No outro extremo da escala, o superior foi o nível que mais se alterou. Há 20 anos, havia 218,3 mil portugueses inscritos nesse nível de ensino. Em 2011 eram já 396,2 mil. Os últimos Censos apontam a existência de 1,3 milhões de portugueses com ensino superior completo, ou seja, cerca de 12% da população - dez anos havia pouco mais de 674 mil portugueses com "canudo".

Recuemos então a 1992, o ano em que foi declarada a morte à PGA, para ouvir o primeiro-ministro, Cavaco Silva, anunciar o aumento das propinas para se "repor a justiça social no ensino superior e fazer com que fossem os ricos a pagá-lo". Na altura, e num ano em que o salário mínimo era 44.500 escudos (376 euros a preços de hoje), o mínimo que se pagava em propinas num ano era 30 contos (253 euros a preços constantes). Hoje, o salário mínimo é 485 euros. E as propinas numa universidade pública oscilam entre os 950 e os mil e poucos euros.

Mas o problema não está aí. Para Castilho, o problema está em que "as escolas do ensino superior nasceram por toda a parte, mas a qualidade de muitas delas fica aquém do desejável, porque o Estado se demitiu do seu papel de fiscalização e supervisão".

Ensino "preso" às elites

No que medeia o pré-escolar e o superior, os passos também foram de gigante. Os Censos de 2011 mostram um país em que a taxa de escolarização no 1.º ciclo se mantém nos 100% desde 1980/81. Nos 2.º e 3.º ciclos, as taxas são de 94% e 90%, respectivamente. No secundário, a taxa de escolarização é de 71%. Conclusão: a escola democratizou-se. "Em termos de acesso, demos passos gigantescos, temos todos no sistema e isso é um bem inestimável, o problema é que a escola continua a seguir um modelo pensado para uma elite", aponta Joaquim Azevedo, explicando assim a principal razão por trás do insucesso escolar.

Em 2009/2010, 43% dos jovens com 15 anos permaneciam no básico, quando o secundário seria o nível adequado a esta faixa etária, ou seja, somavam uma ou mais retenções.

Contra estes "gigantescos níveis de insucesso, mais graves ainda no secundário", a obrigatoriedade da escola até aos 18 anos ou 12.º ano nada pode, segundo Azevedo. "De que adianta declarar a escolaridade obrigatória se depois temos esta enorme dificuldade em conseguir que os jovens tenham sucesso?"

Menos feliz foi a aposta na formação de adultos. A população sem qualquer nível de ensino correspondia a 29% em 1991, e, vinte anos depois, está nos 19%. "Além de todos os fundos comunitários, houve a iniciativa Novas Oportunidades, que despertou uma imensa adesão na sociedade portuguesa, com perto de um milhão de pessoas inscritas, e isso constituiu uma oportunidade para muita gente, mas simultaneamente foi uma oportunidade perdida em termos de efectiva formação de adultos", considera Azevedo.

No tocante às escolas - eram 3725 em 1992, são 3632 em 2011, isto é, as escolas do 1.º ciclo reduziram-se a metade, mas essa perda foi compensada com novas aberturas nos níveis seguintes -, o problema continua a ser a falta de autonomia. Curiosamente, a palavra já fazia parte do léxico governamental há 20 anos. Foi em nome dela que Couto dos Santos avançou, em 1992, com a figura do director executivo. Porém, a teoria continua sem prática. "Continua a haver um controlo desmedido sobre as escolas e uma desresponsabilização sobre os seus resultados", lamenta.

E se no entender de David Justino há vitórias a assinalar em termos de "racionalização do sistema educativo", Castilho vê nos actuais mega-agrupamentos "uma coisa de loucos que obriga muitos professores a terem de se deslocar a dez escolas diferentes para cumprirem o seu horário". Diz Castilho: "Poupamos nos professores, mas gastamos no transporte - e neste momento a dívida às autarquias por causa dos transportes escolares está nos 60 milhões. Por outro lado, o megadirector do mega-agrupamento acabou com a gestão humanizada das escolas." Cá está de novo o problema de falta de autonomia. "Em 1992, cada escola tinha um conselho pedagógico e um conselho directivo eleitos, hoje existem unidades de gestão nas quais estão agrupadas uma série de escolas e que ninguém conhece muito bem."

O melhor do Público no email Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Subscrever ×

Acabar com os remedeios

E quanto ao futuro da escola? "O grande desafio continua a ser encontrar uma estratégia de desenvolvimento", aponta David Justino, para ressalvar que tal estratégia dispensa pactos de regime, mas os seus objectivos terão de ser consensualizados "e não fruto da acção de um iluminado". Em concreto: "Alguns dos conteúdos curriculares têm 20 anos. A actual lei de bases tem 25 anos, veja-se o que o mundo mudou em 25 anos - ainda havia Muro de Berlim. Isso devia obrigar-nos a reorientar paradigmas, definir o que se quer fazer da Educação, não em termos de remedeios, mas para 2030 ou 2040."

Com revisão da lei de bases ou não, o importante é, para Joaquim Azevedo, pôr o país a pensar na escola que quer. "Construir sucesso escolar com este drama e com esta riqueza que temos, que é ter toda a sociedade dentro da escola, é o maior desafio. Vencê-lo exige diferentes tipos de ensino, diferentes modalidades, diferentes ritmos." Ora, "do mesmo modo que nenhum ministro da Justiça se põe a dizer como se julga um caso em tribunal, nenhum ministro da Educação deve pôr-se a dizer a um professor como se educa uma criança ou um jovem". Traduzindo: "Os professores e as escolas têm de ter autonomia para decidir, à medida da sua realidade." Sob pena de estarmos daqui a 20 anos ainda a escrutinar as razões do insucesso escolar.

A escola passou a ser para todos, mas continua presa a um modelo pensado para as elites. O insucesso e a autonomia são problemas com mais de 20 anos ainda à espera de solução

Em Setembro de 1992, o então ministro da Educação, Couto dos Santos, assinalava a abertura do arranque do ano escolar numa escola acabada de construir em Matosinhos, ao mesmo tempo que o primeiro-ministro, Cavaco Silva, confirmava o fecho de cerca de mil das 1500 escolas com menos de dez alunos. Então como agora, o país debatia-se com o insucesso escolar e, no mesmo mês, o Governo anunciava o investimento de 150 mil contos anuais num programa de combate às elevadíssimas taxas de abandono precoce, que rondavam os 50%.

Vinte anos volvidos, essa taxa reduziu-se a 23%, e a frequência do secundário aumentou de 40% para 70%, mas o ensino melhorou? "Melhorou imenso e democratizou-se", aponta o catedrático Joaquim Azevedo, que, em 1992, era secretário de Estado do Ensino Básico e Secundário. "Mas", acrescenta, "continuou preso a um modelo de educação que foi pensado para as elites, o que ajuda a explicar a manutenção dos elevados níveis de insucesso", e, além disso, deixou escapar duas oportunidades importantes: "A autonomia das escolas e a formação de adultos."

David Justino, um dos 12 ministros que passaram pela Educação desde 1992, também considera que os ganhos obtidos nas últimas décadas podem ficar hipotecados se a escola não for capaz de pensar "uma estratégia de desenvolvimento para o futuro". "A lei de bases do sistema educativo", concretiza o ex-ministro do PSD, "tem 25 anos e o mundo já não é o mesmo. Era preciso revê-la."

Reconhecendo embora o caminho percorrido, por exemplo em termos de alargamento do pré-escolar e do ensino superior, o professor Santana Castilho sustenta que os alunos têm pior escola pública hoje. "As condições de trabalho nas escolas e de exercício da profissão por parte dos professores degradaram-se e entraram num estado absolutamente calamitoso. Hoje, o professor não tem liberdade intelectual", acusa o autor de vários artigos sobre gestão escolar e política educativa.

Universidades sem controlo

Uma comparação grosseira dos principais indicadores ilustra bem a evolução do país. Veja-se a taxa real de escolarização, ou seja, a relação percentual entre a população escolar e a população residente para cada idade. Em 1992, essa taxa era de 65,5% no 3.º ciclo do básico. Em 2011, estava nos 90%, segundo a base de dados Pordata. Já no pré-escolar aumentou de 52% para 84%. Do mesmo modo, a duração média da pré-escolarização passou de 1,6 para os actuais 2,5 anos.

No outro extremo da escala, o superior foi o nível que mais se alterou. Há 20 anos, havia 218,3 mil portugueses inscritos nesse nível de ensino. Em 2011 eram já 396,2 mil. Os últimos Censos apontam a existência de 1,3 milhões de portugueses com ensino superior completo, ou seja, cerca de 12% da população - dez anos havia pouco mais de 674 mil portugueses com "canudo".

Recuemos então a 1992, o ano em que foi declarada a morte à PGA, para ouvir o primeiro-ministro, Cavaco Silva, anunciar o aumento das propinas para se "repor a justiça social no ensino superior e fazer com que fossem os ricos a pagá-lo". Na altura, e num ano em que o salário mínimo era 44.500 escudos (376 euros a preços de hoje), o mínimo que se pagava em propinas num ano era 30 contos (253 euros a preços constantes). Hoje, o salário mínimo é 485 euros. E as propinas numa universidade pública oscilam entre os 950 e os mil e poucos euros.

Mas o problema não está aí. Para Castilho, o problema está em que "as escolas do ensino superior nasceram por toda a parte, mas a qualidade de muitas delas fica aquém do desejável, porque o Estado se demitiu do seu papel de fiscalização e supervisão".

Ensino "preso" às elites

No que medeia o pré-escolar e o superior, os passos também foram de gigante. Os Censos de 2011 mostram um país em que a taxa de escolarização no 1.º ciclo se mantém nos 100% desde 1980/81. Nos 2.º e 3.º ciclos, as taxas são de 94% e 90%, respectivamente. No secundário, a taxa de escolarização é de 71%. Conclusão: a escola democratizou-se. "Em termos de acesso, demos passos gigantescos, temos todos no sistema e isso é um bem inestimável, o problema é que a escola continua a seguir um modelo pensado para uma elite", aponta Joaquim Azevedo, explicando assim a principal razão por trás do insucesso escolar.

Em 2009/2010, 43% dos jovens com 15 anos permaneciam no básico, quando o secundário seria o nível adequado a esta faixa etária, ou seja, somavam uma ou mais retenções.

Contra estes "gigantescos níveis de insucesso, mais graves ainda no secundário", a obrigatoriedade da escola até aos 18 anos ou 12.º ano nada pode, segundo Azevedo. "De que adianta declarar a escolaridade obrigatória se depois temos esta enorme dificuldade em conseguir que os jovens tenham sucesso?"

Menos feliz foi a aposta na formação de adultos. A população sem qualquer nível de ensino correspondia a 29% em 1991, e, vinte anos depois, está nos 19%. "Além de todos os fundos comunitários, houve a iniciativa Novas Oportunidades, que despertou uma imensa adesão na sociedade portuguesa, com perto de um milhão de pessoas inscritas, e isso constituiu uma oportunidade para muita gente, mas simultaneamente foi uma oportunidade perdida em termos de efectiva formação de adultos", considera Azevedo.

No tocante às escolas - eram 3725 em 1992, são 3632 em 2011, isto é, as escolas do 1.º ciclo reduziram-se a metade, mas essa perda foi compensada com novas aberturas nos níveis seguintes -, o problema continua a ser a falta de autonomia. Curiosamente, a palavra já fazia parte do léxico governamental há 20 anos. Foi em nome dela que Couto dos Santos avançou, em 1992, com a figura do director executivo. Porém, a teoria continua sem prática. "Continua a haver um controlo desmedido sobre as escolas e uma desresponsabilização sobre os seus resultados", lamenta.

E se no entender de David Justino há vitórias a assinalar em termos de "racionalização do sistema educativo", Castilho vê nos actuais mega-agrupamentos "uma coisa de loucos que obriga muitos professores a terem de se deslocar a dez escolas diferentes para cumprirem o seu horário". Diz Castilho: "Poupamos nos professores, mas gastamos no transporte - e neste momento a dívida às autarquias por causa dos transportes escolares está nos 60 milhões. Por outro lado, o megadirector do mega-agrupamento acabou com a gestão humanizada das escolas." Cá está de novo o problema de falta de autonomia. "Em 1992, cada escola tinha um conselho pedagógico e um conselho directivo eleitos, hoje existem unidades de gestão nas quais estão agrupadas uma série de escolas e que ninguém conhece muito bem."

O melhor do Público no email Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Subscrever ×

Acabar com os remedeios

E quanto ao futuro da escola? "O grande desafio continua a ser encontrar uma estratégia de desenvolvimento", aponta David Justino, para ressalvar que tal estratégia dispensa pactos de regime, mas os seus objectivos terão de ser consensualizados "e não fruto da acção de um iluminado". Em concreto: "Alguns dos conteúdos curriculares têm 20 anos. A actual lei de bases tem 25 anos, veja-se o que o mundo mudou em 25 anos - ainda havia Muro de Berlim. Isso devia obrigar-nos a reorientar paradigmas, definir o que se quer fazer da Educação, não em termos de remedeios, mas para 2030 ou 2040."

Com revisão da lei de bases ou não, o importante é, para Joaquim Azevedo, pôr o país a pensar na escola que quer. "Construir sucesso escolar com este drama e com esta riqueza que temos, que é ter toda a sociedade dentro da escola, é o maior desafio. Vencê-lo exige diferentes tipos de ensino, diferentes modalidades, diferentes ritmos." Ora, "do mesmo modo que nenhum ministro da Justiça se põe a dizer como se julga um caso em tribunal, nenhum ministro da Educação deve pôr-se a dizer a um professor como se educa uma criança ou um jovem". Traduzindo: "Os professores e as escolas têm de ter autonomia para decidir, à medida da sua realidade." Sob pena de estarmos daqui a 20 anos ainda a escrutinar as razões do insucesso escolar.

marcar artigo