Funes, el memorioso: Da culpa e do êxtase diante da obra pública

04-07-2011
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Recordo a noite de sábado de 2 de Março de 1968, em que, debulhada em lágrimas, a minha avó me abraçou, despedindo-se do neto querido que ia viver para o Porto.Familiarizado com Coimbra e com Lisboa, o meu mundo acabava então, a Norte, em Pinheiro da Bemposta, o lugar ignoto onde a minha irmã tinha ido uma vez com o tio António, numa tarde de domingo em que eu (mais tarde amargamente arrependido) preferira ficar em Barrô, a fazer de Leonel Miranda com o meu primo Victor. O Porto ficava já para lá do fim do mundo.A 3 de Março, fizemos a mudança.Depois do mítico lugar de Pinheiro da Bemposta, a estrada nacional número um descia abruptamente durante dois ou três quilómetros, até se iniciarem as curvas de Santiago de Riba Ul. Curva fechada à direita, junto à fábrica de lacticínios; descida; curva fechada outra vez à direita (onde se despitou o primo Tó, com uma mala com cem contos - lembrava a minha mãe); subida para o lavadouro público; curva acentuada à esquerda. Oliveira de Azeméis. Perímetro urbano; virar à direita; "Garagem Justino", onde o pai comprara o "Opel Kadett"; jardim; mercado; subida temível do aqui é que se vê quem sabe fazer o ponto de embraiagem; placa "Porto 38 Km". Respirar de alívio. Saída da vila. Duas Igrejas e a curva mais perigosa da estrada de Águeda até ao Porto (era o pai a sair do habitual silêncio). Couto de Cucujães; bombas da "Sonap"; subida para a "Molaflex". São João da Madeira... e depois a Arrifana e Lourosa e Grijó e os Carvalhos e o sono...Acordava normalmente na curva de saída da auto-estrada para a nacional 109 e para a Madalena, junto à fábrica de caldeiras "Morisa" que, muitos anos depois, havia de ser a saída do "Continente" e do "Gaia Shopping".Uma hora e meia demoravam, em regra, os oitenta quilómetros. Tantas vezes fiz esta viagem que ainda hoje sou capaz de a reconstituir passo a passo. O jardim do mercado de Oliveira de Azeméis era o lugar mais bonito do mundo no Natal. O anúncio da "Oliva", na praça central de São João da Madeira, confundia-se com o existente à saída da ponte, em Águeda. Se não me engano, o néon azul do "Restaurante Taínha" ainda lá está...Em 1986, o meu pai reformou-se e voltou a Águeda. Continuei a fazer regularmente o trajecto, mas agora ao volante, e sem o fascínio encantatório e feliz das luzes verdes das bombas da Sacor a romperem as noites mágicas da infância.Por fim, numa manhã de finais de Setembro de 1991, este mundo desapareceu. Inesperadamente, à entrada da Arrifana, a velha estrada estreita inflectiu para a esquerda e abriu-se numa via rápida de múltiplas faixas, pontuada de amplas passagens superiores e inferiores com muros de suporte demenciais, rijamente agarrados por esporões de aço e cimento. No sentido Norte-Sul, a nova variante só parava em Pinheiro da Bemposta. São João da Madeira e Oliveira de Azeméis passavam a ficar ao lado e o percurso era encurtado em quinze ou vinte minutos.Em êxtase, votei dias depois no PSD de Cavaco Silva.Foi a última vez que votei. Dezassete anos volvidos, ainda não me redimi da miséria culpável daquele voto.


Recordo a noite de sábado de 2 de Março de 1968, em que, debulhada em lágrimas, a minha avó me abraçou, despedindo-se do neto querido que ia viver para o Porto.Familiarizado com Coimbra e com Lisboa, o meu mundo acabava então, a Norte, em Pinheiro da Bemposta, o lugar ignoto onde a minha irmã tinha ido uma vez com o tio António, numa tarde de domingo em que eu (mais tarde amargamente arrependido) preferira ficar em Barrô, a fazer de Leonel Miranda com o meu primo Victor. O Porto ficava já para lá do fim do mundo.A 3 de Março, fizemos a mudança.Depois do mítico lugar de Pinheiro da Bemposta, a estrada nacional número um descia abruptamente durante dois ou três quilómetros, até se iniciarem as curvas de Santiago de Riba Ul. Curva fechada à direita, junto à fábrica de lacticínios; descida; curva fechada outra vez à direita (onde se despitou o primo Tó, com uma mala com cem contos - lembrava a minha mãe); subida para o lavadouro público; curva acentuada à esquerda. Oliveira de Azeméis. Perímetro urbano; virar à direita; "Garagem Justino", onde o pai comprara o "Opel Kadett"; jardim; mercado; subida temível do aqui é que se vê quem sabe fazer o ponto de embraiagem; placa "Porto 38 Km". Respirar de alívio. Saída da vila. Duas Igrejas e a curva mais perigosa da estrada de Águeda até ao Porto (era o pai a sair do habitual silêncio). Couto de Cucujães; bombas da "Sonap"; subida para a "Molaflex". São João da Madeira... e depois a Arrifana e Lourosa e Grijó e os Carvalhos e o sono...Acordava normalmente na curva de saída da auto-estrada para a nacional 109 e para a Madalena, junto à fábrica de caldeiras "Morisa" que, muitos anos depois, havia de ser a saída do "Continente" e do "Gaia Shopping".Uma hora e meia demoravam, em regra, os oitenta quilómetros. Tantas vezes fiz esta viagem que ainda hoje sou capaz de a reconstituir passo a passo. O jardim do mercado de Oliveira de Azeméis era o lugar mais bonito do mundo no Natal. O anúncio da "Oliva", na praça central de São João da Madeira, confundia-se com o existente à saída da ponte, em Águeda. Se não me engano, o néon azul do "Restaurante Taínha" ainda lá está...Em 1986, o meu pai reformou-se e voltou a Águeda. Continuei a fazer regularmente o trajecto, mas agora ao volante, e sem o fascínio encantatório e feliz das luzes verdes das bombas da Sacor a romperem as noites mágicas da infância.Por fim, numa manhã de finais de Setembro de 1991, este mundo desapareceu. Inesperadamente, à entrada da Arrifana, a velha estrada estreita inflectiu para a esquerda e abriu-se numa via rápida de múltiplas faixas, pontuada de amplas passagens superiores e inferiores com muros de suporte demenciais, rijamente agarrados por esporões de aço e cimento. No sentido Norte-Sul, a nova variante só parava em Pinheiro da Bemposta. São João da Madeira e Oliveira de Azeméis passavam a ficar ao lado e o percurso era encurtado em quinze ou vinte minutos.Em êxtase, votei dias depois no PSD de Cavaco Silva.Foi a última vez que votei. Dezassete anos volvidos, ainda não me redimi da miséria culpável daquele voto.

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