Funes, el memorioso: A gente mais esquisita do universo

03-07-2011
marcar artigo


Há dezasseis anos atrás decorriam, ou já tinham decorrido, os Jogos Olímpicos de Barcelona.Eu e RPS fomos passar dez dias de férias a Vila Nova de Milfontes, no litoral alentejano.A meio da estadia apareceu por lá a então namorada do RPS (mais tarde esposa, mais tarde ex-esposa) com uma amiga.Vinham muito excitadas porque na estação do caminho de ferro tinham conhecido umas pessoas "fascinantes", que haviam entabulado conversa com elas e ficara, até, aprazado um almoço para o dia seguinte quando nos poderíamos conhecer todos uns aos outros.Por essa época a namorada do RPS publicara um livro de poesias cujo lirismo cristalino lhe permitira alcançar um prémio literário. Uma das quatro "pessoas fascinantes", um advogado de Odemira, a meio da conversa travada na estação do caminho de ferro soubera do facto e lograra o empréstimo de um exemplar do livro que se deve ter dedicado a ler integralmente nessa noite pois, quando no dia seguinte nos encontramos todos para o almoço, o homem aproveitou logo para recitar de cor uma série de estrofes, dedicando depois algumas apreciações ao livro, entre o elogioso e o paternalista. Era indivíduo de meia idade, verbo fácil, cultura notória e desejo evidente de seduzir os interlocutores.Já abancados num restuarante de beira-mar para a melhor sardinhada que comi na vida, pude apreciar aos poucos as três restantes pessoas do grupo.Um deles parecia uma espécie de ajudante do advogado, era inócuo, prestável e simpático. Chamar-lhe-emos JC para melhor identificação.Os outros dois eram um casal: ele, MF, algo pesado, cabeleira vasta, gestos exuberantes, ideiais políticos de extrema-esquerda que não escondia. A senhora, D, morena, vestida ao estilo indiano, alternava períodos de descrição com intervenções incisivas, parecendo ter uma personalidade complicada.A princípio, eu e RPS fomos acolhidos com fria reserva, que mais se acentuou ao saberem das nossas respectivas profissões que notoriamente lhes não agradavam, vá-se lá saber porquê. Mas com o desenrolar do almoço, o vinho que se ia bebendo e a nossa abertura de espírito, mais algumas piadas bem humoradas, quebrou-se o gelo e MF dizia mesmo, em alta voz: "estou a começar a gostar destes gajos!"Fomos entendendo que o advogado era "rico", em parte graças às partilhas do seu divórcio de uma alentejana abonada. Contudo, intelectual e desprendido, vivia no seu escritório, com JC, dormindo ambos em sacos-cama (!?). Também aí operavam, todas as noites, um rádio-pirata, o que na altura estava muito em moda.MF e D viviam numa pequena propriedade rural dedicando-se ao artesanato. Aparentemente o advogado tinha-os ajudado muito, talvez cedendo-lhes gratuitamente a casa, ou mesmo com dinheiro. A meio do almoço e totalmente a despropósito, D beijou a mão do advogado e nem este nem MF pareceram incomodados com a cena, digna do interior da Sicília.Referências frequentes e veladas à polícia e ao aparelho judicial, feitas sempre com conotações políticas por MF e D, pareciam indicar que o casal tivera já alguma experiência prisional, derivada de acções que eles assumiam como revolucionárias e não de delito comum. Brigadas revolucionárias? FP 25? Imaginação minha? RPS não discordou mais tarde destas hipóteses.O advogado ia destilando a sua cultura, considerável, e o seu exibicionismo maçador.Mas no geral a refeição foi agradável e excêntrica. Julgo que não me engano se revelar que o advogado fez questão de pagar a conta por inteiro.No fim ficou combinada uma sessão de copos para o uma das noites seguintes, no Bar Turco.Lá comparecemos e foi mais do mesmo. Mas, no fim, paga a conta, desta vez por cabeça, quando nos retirávamos e começávamos as despedidas (porque no dia seguinte eu, RPS, a namorada deste e a amiga regressávamos ao norte) o advogado e os seus amigos aproveitaram o pontual afastamento dos empregados e começaram a deitar a mão e a guardar em sacos todos os copos e cinzeiros que podiam. JC ria-se gostosamente enquanto dizia que era assim que recheavam o interior do seu escritório residencial. Aquela cena absurda e algo vergonhosa, patrocinada pelo mesmo indivíduo que na véspera nos pagara a todos o almoço, apressou-nos a sair do bar.Foi já sem convicção que, na via pública, prometi regressar para o ano e concluí as despedidas.Nem eu, nem RPS, nem as raparigas sabíamos o que pensar daquela estranha seita.E ainda hoje não o sei.Mas para mim e nas minhas memórias permanecem como a gente mais esquisita do universo.


Há dezasseis anos atrás decorriam, ou já tinham decorrido, os Jogos Olímpicos de Barcelona.Eu e RPS fomos passar dez dias de férias a Vila Nova de Milfontes, no litoral alentejano.A meio da estadia apareceu por lá a então namorada do RPS (mais tarde esposa, mais tarde ex-esposa) com uma amiga.Vinham muito excitadas porque na estação do caminho de ferro tinham conhecido umas pessoas "fascinantes", que haviam entabulado conversa com elas e ficara, até, aprazado um almoço para o dia seguinte quando nos poderíamos conhecer todos uns aos outros.Por essa época a namorada do RPS publicara um livro de poesias cujo lirismo cristalino lhe permitira alcançar um prémio literário. Uma das quatro "pessoas fascinantes", um advogado de Odemira, a meio da conversa travada na estação do caminho de ferro soubera do facto e lograra o empréstimo de um exemplar do livro que se deve ter dedicado a ler integralmente nessa noite pois, quando no dia seguinte nos encontramos todos para o almoço, o homem aproveitou logo para recitar de cor uma série de estrofes, dedicando depois algumas apreciações ao livro, entre o elogioso e o paternalista. Era indivíduo de meia idade, verbo fácil, cultura notória e desejo evidente de seduzir os interlocutores.Já abancados num restuarante de beira-mar para a melhor sardinhada que comi na vida, pude apreciar aos poucos as três restantes pessoas do grupo.Um deles parecia uma espécie de ajudante do advogado, era inócuo, prestável e simpático. Chamar-lhe-emos JC para melhor identificação.Os outros dois eram um casal: ele, MF, algo pesado, cabeleira vasta, gestos exuberantes, ideiais políticos de extrema-esquerda que não escondia. A senhora, D, morena, vestida ao estilo indiano, alternava períodos de descrição com intervenções incisivas, parecendo ter uma personalidade complicada.A princípio, eu e RPS fomos acolhidos com fria reserva, que mais se acentuou ao saberem das nossas respectivas profissões que notoriamente lhes não agradavam, vá-se lá saber porquê. Mas com o desenrolar do almoço, o vinho que se ia bebendo e a nossa abertura de espírito, mais algumas piadas bem humoradas, quebrou-se o gelo e MF dizia mesmo, em alta voz: "estou a começar a gostar destes gajos!"Fomos entendendo que o advogado era "rico", em parte graças às partilhas do seu divórcio de uma alentejana abonada. Contudo, intelectual e desprendido, vivia no seu escritório, com JC, dormindo ambos em sacos-cama (!?). Também aí operavam, todas as noites, um rádio-pirata, o que na altura estava muito em moda.MF e D viviam numa pequena propriedade rural dedicando-se ao artesanato. Aparentemente o advogado tinha-os ajudado muito, talvez cedendo-lhes gratuitamente a casa, ou mesmo com dinheiro. A meio do almoço e totalmente a despropósito, D beijou a mão do advogado e nem este nem MF pareceram incomodados com a cena, digna do interior da Sicília.Referências frequentes e veladas à polícia e ao aparelho judicial, feitas sempre com conotações políticas por MF e D, pareciam indicar que o casal tivera já alguma experiência prisional, derivada de acções que eles assumiam como revolucionárias e não de delito comum. Brigadas revolucionárias? FP 25? Imaginação minha? RPS não discordou mais tarde destas hipóteses.O advogado ia destilando a sua cultura, considerável, e o seu exibicionismo maçador.Mas no geral a refeição foi agradável e excêntrica. Julgo que não me engano se revelar que o advogado fez questão de pagar a conta por inteiro.No fim ficou combinada uma sessão de copos para o uma das noites seguintes, no Bar Turco.Lá comparecemos e foi mais do mesmo. Mas, no fim, paga a conta, desta vez por cabeça, quando nos retirávamos e começávamos as despedidas (porque no dia seguinte eu, RPS, a namorada deste e a amiga regressávamos ao norte) o advogado e os seus amigos aproveitaram o pontual afastamento dos empregados e começaram a deitar a mão e a guardar em sacos todos os copos e cinzeiros que podiam. JC ria-se gostosamente enquanto dizia que era assim que recheavam o interior do seu escritório residencial. Aquela cena absurda e algo vergonhosa, patrocinada pelo mesmo indivíduo que na véspera nos pagara a todos o almoço, apressou-nos a sair do bar.Foi já sem convicção que, na via pública, prometi regressar para o ano e concluí as despedidas.Nem eu, nem RPS, nem as raparigas sabíamos o que pensar daquela estranha seita.E ainda hoje não o sei.Mas para mim e nas minhas memórias permanecem como a gente mais esquisita do universo.

marcar artigo