Funes, el memorioso: Cenas de um casamento (dedicado a Woman Once a Bird e a Maria Papoila)

07-07-2011
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A cena começa invariavelmente da mesma maneira. Estamos na sala a falar do tempo, da crise, da escola da nossa filha, do Verdocas que adora o desporto…De repente, ela cala-se e fica momentaneamente apopléctica. Depois, com um ar estarrecido aponta os meus sapatos e grita:– Tu já viste os teus sapatos?– Eu olho e não vejo nada.– Têm um buraco na sola!Eu encolho os ombros perante tal irrelevância, mas ela não se conforma.– Como é que tu podes andar com uns sapatos assim? O que é que vão pensar as pessoas que te vêem nas reuniões?Eu sinto-me muito bem com os sapatos rotos e não consigo imaginar o que raio poderão pensar as pessoas que me vêem as solas. Não percebo o espanto dela.Ela não percebe que eu não perceba e eu não percebo porque é que ela não percebe que eu não perceba. O fim do diálogo (do duplo monólogo) impede a degeneração em divórcio.Nos dias seguintes, ela repete-me incessantemente:– Precisas de uns sapatos.Eu vou resistindo:– Mas ainda há três anos comprei estes. Estão novos!Ao fim de um mês, depois de aturadas e duras negociações, eu cedo e aceito ir a uma sapataria. Ela teme (com acerto) que eu compre a primeira coisa que vejo e não me deixa ir sozinho. Na sapataria, ordena-me que experimente este e aquele par, que tire um e calce outro, que ponha o preto de lado e verifique o castanho.– Gostas? – Pergunta-me.Eu, que sou um fetichista do pé feminino e me babo por tacões altos, não alcanço as emoções estéticas que possa despertar um sapato de homem. Aceno que sim com a cabeça a todos. Ela desespera e manda vir mais uns pares. A tensão começa a subir até um estado que ultrapassa o que se regista na fronteira entre Israel e o Líbano. É nessa fase que geralmente efectuamos a compra.Com a roupa passa-se exactamente o mesmo, com a agravante que eu insulto mais as meninas e os meninos das lojas de roupa, proclamando a todo o instante que gostava de os ver a comer estrume de cão e que preferia ser internado no estabelecimento prisional de Paços de Ferreira, a estar ali a experimentar calças e blusões.A minha mulher acha que eu sou uma cruz que ela tem que transportar até ao calvário. Eu acho que, com algumas taras embora, sou apenas uma jóia de moço.Suspeito que a maior parte das mulheres que conheço concorda comigo. Suspeito também que a maior parte das mulheres que conheço, quando se imagina casada comigo, concorda com ela.


A cena começa invariavelmente da mesma maneira. Estamos na sala a falar do tempo, da crise, da escola da nossa filha, do Verdocas que adora o desporto…De repente, ela cala-se e fica momentaneamente apopléctica. Depois, com um ar estarrecido aponta os meus sapatos e grita:– Tu já viste os teus sapatos?– Eu olho e não vejo nada.– Têm um buraco na sola!Eu encolho os ombros perante tal irrelevância, mas ela não se conforma.– Como é que tu podes andar com uns sapatos assim? O que é que vão pensar as pessoas que te vêem nas reuniões?Eu sinto-me muito bem com os sapatos rotos e não consigo imaginar o que raio poderão pensar as pessoas que me vêem as solas. Não percebo o espanto dela.Ela não percebe que eu não perceba e eu não percebo porque é que ela não percebe que eu não perceba. O fim do diálogo (do duplo monólogo) impede a degeneração em divórcio.Nos dias seguintes, ela repete-me incessantemente:– Precisas de uns sapatos.Eu vou resistindo:– Mas ainda há três anos comprei estes. Estão novos!Ao fim de um mês, depois de aturadas e duras negociações, eu cedo e aceito ir a uma sapataria. Ela teme (com acerto) que eu compre a primeira coisa que vejo e não me deixa ir sozinho. Na sapataria, ordena-me que experimente este e aquele par, que tire um e calce outro, que ponha o preto de lado e verifique o castanho.– Gostas? – Pergunta-me.Eu, que sou um fetichista do pé feminino e me babo por tacões altos, não alcanço as emoções estéticas que possa despertar um sapato de homem. Aceno que sim com a cabeça a todos. Ela desespera e manda vir mais uns pares. A tensão começa a subir até um estado que ultrapassa o que se regista na fronteira entre Israel e o Líbano. É nessa fase que geralmente efectuamos a compra.Com a roupa passa-se exactamente o mesmo, com a agravante que eu insulto mais as meninas e os meninos das lojas de roupa, proclamando a todo o instante que gostava de os ver a comer estrume de cão e que preferia ser internado no estabelecimento prisional de Paços de Ferreira, a estar ali a experimentar calças e blusões.A minha mulher acha que eu sou uma cruz que ela tem que transportar até ao calvário. Eu acho que, com algumas taras embora, sou apenas uma jóia de moço.Suspeito que a maior parte das mulheres que conheço concorda comigo. Suspeito também que a maior parte das mulheres que conheço, quando se imagina casada comigo, concorda com ela.

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