Devaneios Desintéricos: do "fundamento material bastante"

24-01-2012
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Desde a mediática tentativa de casamento de Teresa e Lena, as duas homossexuais que ousaram dirigir-se a uma Conservatória do Registo Civil em Lisboa na expectativa de verem reconhecida a inconstitucionalidade do artigo 1577ª do Código Civil, pouco mais se tem falado do caso, salvo a honrosa excepção constituída por alguma blogosfera sempre atenta ao tema. Sucede que, como é normal, o processo tem seguido o seus lentos trâmites. Pelo caminho já houve, em sede de primeira instância de recurso da decisão do conservador, confirmação por parte do Tribunal Cível da Comarca de Lisboa da referida decisão alegando-se, para tanto, que o casamento é um conceito unicamente heterossexual, tanto na sua formulação como também nas consequências que a lei prevê para os casamentos celebrados entre pessoas do mesmo sexo, que são, nos termos da lei civil (1628º CCiv), considerados juridicamente inexistentes. A proibição de discriminação tendo por base a orientação sexual, constante do art. 13º da Constituição da República Portuguesa, foi afastada por o Tribunal, no seu douto entendimento, crer que existem «determinadas discriminações» que não são abrangidas pela proibição constitucional de discriminação. O recurso interposto para o Tribunal da Relação de Lisboa será certamente caso de estudo nos anos vindouros e, espero, mais liberais deste Portugal. Não tanto pelas alegações do advogado do casal, aliás doutas, mas mais pelas contra alegações apresentadas pelo Ministério Público. Nelas, o digníssimo procurador, criando uma excepção que constitucionalmente não existe, interpreta o direito universal a constituir família, constante do art. 36º da CRP, como não aplicável a homossexuais porquanto o conceito de “família” não pode ser aplicado a pessoas do mesmo sexo que pretendam, nos termos da lei, «constituir família em plena comunhão de vida». O assaz urbano e cosmopolita pensamento do ilustre magistrado do Ministério Público marcou-se, ainda, pela afirmação de que a família começa pelo casamento e só aí se realiza a plena comunhão de vida fazendo, sem pudores, a apologia, diria salazarenta, da procriação no seio do casamento defendida e incentivada pelo Estado. O digníssimo procurador, certamente no uso da melhor técnica jurídica, procurou olvidar o facto de casamentos entre pessoas estéreis serem plenamente válidos (muito embora, como me informou a cara amiga cão rafeiro, já haja por aí gente interessada em, pura e simplesmente, eliminar casamentos, qualquer um, quando não procriativo).O Tribunal da Relação veio (só) hoje pronunciar-se, como se esperava, confirmando a decisão do Conservador fazendo, como bem nota Grave Rodrigues, um interessante malabarismo argumentativo, reconhecendo que do artigo 36º CRP emanam dois direitos distintos (constituição de família e direito ao casamento), mas escudando-se no facto de, ao contrário do Tribunal de Primeira Instância, ser entendimento desta cúria que a constituição de uma relação familiar é possível fora do casamento assegurando-se, assim, o cumprimento do direito constitucional à constituição de uma família. Mas do direito ao casamento nada se diz.Pelos vistos, a Relação de Lisboa defende-se argumentando que o princípio da Igualdade (art. 13º) não impede que o legislador estabeleça, quando para tanto exista "fundamento material bastante", as devidas discriminações. A verdade quasi lapalissiana é atestada pelos varíadíssimos exemplos de discriminação positiva existentes na nossa ordem jurídica. Contudo, usada neste campo e nestes termos, tal afirmação assume uma perigosidade particularmente forte ao sonegar, de modo interpretativo que deve mais à ideologia que à técnica, direitos constitucionais que decorrem, com toda a clareza, das palavras do legislador constitucional.É claro para todos que este processo não visa despontar qualquer espécie de "activismo judicial" sócio-político. Não é característica da nossa cultura judicial, nem tão pouco a conservadora magistratura judicial portuguesa ousaria ou ousará dar semelhante passo. Aquilo que se pretendeu - lançar o debate da questão- já foi conseguido. O que se esperava - a reacção de toda uma estrutura, e mesmo de uma sociedade, habituada a interpretações restritivas de direitos- está aí aos olhos de todos.


Desde a mediática tentativa de casamento de Teresa e Lena, as duas homossexuais que ousaram dirigir-se a uma Conservatória do Registo Civil em Lisboa na expectativa de verem reconhecida a inconstitucionalidade do artigo 1577ª do Código Civil, pouco mais se tem falado do caso, salvo a honrosa excepção constituída por alguma blogosfera sempre atenta ao tema. Sucede que, como é normal, o processo tem seguido o seus lentos trâmites. Pelo caminho já houve, em sede de primeira instância de recurso da decisão do conservador, confirmação por parte do Tribunal Cível da Comarca de Lisboa da referida decisão alegando-se, para tanto, que o casamento é um conceito unicamente heterossexual, tanto na sua formulação como também nas consequências que a lei prevê para os casamentos celebrados entre pessoas do mesmo sexo, que são, nos termos da lei civil (1628º CCiv), considerados juridicamente inexistentes. A proibição de discriminação tendo por base a orientação sexual, constante do art. 13º da Constituição da República Portuguesa, foi afastada por o Tribunal, no seu douto entendimento, crer que existem «determinadas discriminações» que não são abrangidas pela proibição constitucional de discriminação. O recurso interposto para o Tribunal da Relação de Lisboa será certamente caso de estudo nos anos vindouros e, espero, mais liberais deste Portugal. Não tanto pelas alegações do advogado do casal, aliás doutas, mas mais pelas contra alegações apresentadas pelo Ministério Público. Nelas, o digníssimo procurador, criando uma excepção que constitucionalmente não existe, interpreta o direito universal a constituir família, constante do art. 36º da CRP, como não aplicável a homossexuais porquanto o conceito de “família” não pode ser aplicado a pessoas do mesmo sexo que pretendam, nos termos da lei, «constituir família em plena comunhão de vida». O assaz urbano e cosmopolita pensamento do ilustre magistrado do Ministério Público marcou-se, ainda, pela afirmação de que a família começa pelo casamento e só aí se realiza a plena comunhão de vida fazendo, sem pudores, a apologia, diria salazarenta, da procriação no seio do casamento defendida e incentivada pelo Estado. O digníssimo procurador, certamente no uso da melhor técnica jurídica, procurou olvidar o facto de casamentos entre pessoas estéreis serem plenamente válidos (muito embora, como me informou a cara amiga cão rafeiro, já haja por aí gente interessada em, pura e simplesmente, eliminar casamentos, qualquer um, quando não procriativo).O Tribunal da Relação veio (só) hoje pronunciar-se, como se esperava, confirmando a decisão do Conservador fazendo, como bem nota Grave Rodrigues, um interessante malabarismo argumentativo, reconhecendo que do artigo 36º CRP emanam dois direitos distintos (constituição de família e direito ao casamento), mas escudando-se no facto de, ao contrário do Tribunal de Primeira Instância, ser entendimento desta cúria que a constituição de uma relação familiar é possível fora do casamento assegurando-se, assim, o cumprimento do direito constitucional à constituição de uma família. Mas do direito ao casamento nada se diz.Pelos vistos, a Relação de Lisboa defende-se argumentando que o princípio da Igualdade (art. 13º) não impede que o legislador estabeleça, quando para tanto exista "fundamento material bastante", as devidas discriminações. A verdade quasi lapalissiana é atestada pelos varíadíssimos exemplos de discriminação positiva existentes na nossa ordem jurídica. Contudo, usada neste campo e nestes termos, tal afirmação assume uma perigosidade particularmente forte ao sonegar, de modo interpretativo que deve mais à ideologia que à técnica, direitos constitucionais que decorrem, com toda a clareza, das palavras do legislador constitucional.É claro para todos que este processo não visa despontar qualquer espécie de "activismo judicial" sócio-político. Não é característica da nossa cultura judicial, nem tão pouco a conservadora magistratura judicial portuguesa ousaria ou ousará dar semelhante passo. Aquilo que se pretendeu - lançar o debate da questão- já foi conseguido. O que se esperava - a reacção de toda uma estrutura, e mesmo de uma sociedade, habituada a interpretações restritivas de direitos- está aí aos olhos de todos.

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