Devaneios Desintéricos: a evidência na face oculta

20-01-2012
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E eis que as escutas chegam - outra vez! - ao debate público. A sociedade portuguesa tem sido amiúde bombardeada por este tema. O presidente que suspeita. A oposição que "não se pronuncia" mas que se vai pronunciado. Os jornais e as televisões que acusam. O "revela" e o "não revela". O "despacha" e o "não despacha". O "destrói" e o "não destrói". O PGR, o Supremo...e o Governo.
Tudo temas perigosíssimos, na ténue linha que separa a Democracia da Ditadura, a Liberdade da Escravidão e a Privacidade da Devassa. E - pior ainda - quando se tornam móbil de todas as demagogias em face da politiquice irresponsável que ousa cavalgar as desventuras da res pública com o ar solene e pesaroso de quem sofre com este estado das coisas.
Mas vejamos por partes.
Em primeiro plano - o da questão jurídica -, com a devida humildade técnica me coloco entre aqueles que pensam que a actuação do presidente do STJ foi juridicamente correcta.
O artigo 11º do Código Processo Penal estabelece a competência do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça para autorizar a intercepção, gravação e transcrição de conversações em que intervenham o Presidente da República, o Presidente da Assembleia da República e o Primeiro Ministro.
Ora, conforme todos sabemos, o grande problema jurídico porquanto não explicitamente previsto pela lei é justamente saber qual a solução a dar para os casos em que tais figuras de soberania sejam escutadas de forma fortuita quando os escutados/suspeitos/arguidos eram outros. Por outras palavras, saber se a lei - nas palavras do legislador - quis abranger estes casos de puro e simples mero acaso em que figuras de Estado são interlocutores de suspeitos.
Mas pelo facto de não estar explicíto não quer dizer que não se possa retirar a norma aplicável.
Para que o compreendamos é necessário, antes de mais, que procuremos entender qual a razão de ser da norma constante do artigo 11º do CPC. Ao contrário daquilo que o raciocínio mais simplista - e porventura, demagógico- defenderia, não se trata de um privilégio de uma qualquer elite directiva que reservou para si o direito de só ser escutada quando os seus pares de elite assim o entenderem.
O Estado de Direito Democrático segue um ténue equilíbrio político institucional que assegura (ou procura assegurar) a co-existência de todos os poderes, embora devidamente separados entre si. Legislativo, Executivo e Judicial. E seria até formalmente possível manter essa coexistência se um qualquer juiz pudesse autorizar uma escuta ao Presidente da República ou Primeiro Ministro.
Contudo, mais do que a coexistência formal entre os poderes, o equilíbrio entre eles estaria irremediavelmente posto em causa. E, com ele, a subsistência do Estado de Direito Democrático. Razões de cautela institucional e protecção de um determinado adquirido civilizacional assim o aconselham sem que outra solução se mostre realmente mais razoável.
E - insisto - não se trata de um privilégio. Trata-se, isso sim, da necessidade perfeitamente razoável de ter de ser o mais alto dos magistrados judiciais a decidir a imposição de uma limitação à privacidade de um indivíduo, cidadão como qualquer outro, sim, mas titular de um cargo soberano.
Mais do que um entendimento meu, parece-me ser este o critério especial que resulta da interpretação da norma acima dita. E que, como tal, deverá ser oposto a todas as normas gerais.
E não se diga que a ratio da norma se aplicaria apenas a situações em que antecipadamente se deveria suscitar a autorização do Presidente do STJ e nunca àquelas situações - como a do caso face oculta - em que estaria em causa o conhecimento fortuito de alegados crimes por parte de um interlocutor do escutado, por mero acaso, titular de um órgão de soberania. O facto de a escuta ter sido "por acaso" não quer dizer que o mesmo princípio não se deva aplicar. E outra opinião, pura e simplesmente, será irrazoável. Assim, a escuta, ainda que inadvertida, há-de sempre recair na competência do presidente do STJ que pode e deve ordenar a sua transcrição ou destruição.Ora, assim sendo mais não se pode senão concluir pela nulidade da prova, tendo por base o artigo125 do Código Processo Penal quando se refere que são nulas as provas obtidas com violação de direitos do indivíduo.E isto é assim, tão-simplesmente, porque tem que ser. Mal estaríamos se uma prova ilegal pudesse servir para abrir suspeitas sobre um cidadão. Seja ele qual fôr. Mais: o artigo 187º CPP estabelece, no seu nº 7, que a gravação de conversações ou comunicações só pode ser utilizada em outro processo, em curso ou a instaurar (como seria o caso), se houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil. Ora, parece notório não ser este o caso presente.Razão expostas, muito se espanta o posicionamento de alguns doutrinários penalistas como o Prof. Paulo Pinto de Albuquerque quando vem defendendo que as escutas em causa deveriam ser exibidas - por razões de transparência - e que juridicamente não seria admíssivel o despacho do Presidente do STJ(!?!?). Resguarda-se, para tanto e aparentemente, no interesse social e público que se traduziria na exposição das conversas de Sócrates.O douto professor coloca, deste modo, em clara oposição interesse da investigação criminal e interesse social e público.O que é, convenhamos, extremamente perigoso e contraproducente. Primeiramente, porque confunde deliberadamente interesse popular com interesse social, travestindo a devassa de transparência.Depois, porque ignora intencionalmente que compete ao Poder Judicial levar a cabo a síntese daquilo que é, do ponto de vista judicial, a necessidade social. O que é diferente de necessidade popular. E que, nessa competência exclusiva, assiste aos órgãos do Poder Judicial sua exclusiva decisão sob pena de se colocar em crise um enorme adquirido civilizacional democrático. A devassa das conversas privadas tidas por judicialmente irrelevantes justificada por um alegado "interesse público" trará consigo um critério que servirá amanhã para qualquer outro cidadão. Mais, também não pode colher a tese absolutamente demagógica e popularesca que existiria uma "suspeita" por parte do procurador e Juiz de Instrução de Aveiro. Desde logo, porque à suspeita do primeiro se sobrepõe a consideração do PGR, órgão máximo da Magistratura do MP, que não existe qualquer fundamento para semelhante suspeita. E, num Estado de Direito Democrático, isso tem de valer por si, sem mais.E, depois, porque essa alegada suspeita que o JIC de Aveiro também teria parece ser nada mais do que uma produção mediática. O Juiz de Instrução limitou-se a autorizar a emissão de uma certidão, daqui não podendo resultar qualquer adesão a qualquer teoria de suspeição. Tal despacho não encerra em si qualquer implicação material, sendo de natureza meramente formal. Assim sendo, teorizações nesta linha mais não farão do que apelar à Justiça de índole popular, politizando-a e prestando um péssimo serviço à Democracia e à realização do Estado de Direito.Depois, num segundo plano de análise e que não deve ser descurado no caso presente caso - a questão política.E, nesse sentido, talvez seja pertinente compreender que na matriz ocidental contemporânea tanto a Justiça tem sido politizada como a vida da polis tem sido judicializada. No embate entre os 3 poderes por um certo reconhecimento social de hegemonia de facto, todos os 3 poderes procuram instrumentalizar, na medida do possível, os seus "concorrentes". E facto é que da obsessão jornalística por processos judiciais (porventura com um grande primórdio contemporâneo no Processo Dreyfus) nasceu a compreensão genérica por parte do poder judicial contemporâneo da sua capacidade de influenciar os demais poderes da Polis.E, talvez também por essa razão, a imprensa e o Poder Judicial vêm mantendo uma relação de parasitagem mútua. E, nesse sentido, é natural que informações sejam amiúde "deixadas sair" à luz de critérios aparentemente insondáveis. Esta observação, se relativamente válida para todos os países, assume-se, creio eu, certeira na matriz portuguesa. Surge, então, uma particular noção de "Jornalismo interventivo" que, podendo ser tanto certeiro como absolutamente matreiro, chamará à sua defesa uma Opinião Pública sequiosa de conspirações e arranjos contra si. E, talvez pelo caminho, não perceba esta que, como aquele, foi instrumentalizada.Por outras palavras: não estará na altura de VERDADEIRAMENTE se pôr ordem no segredo de Justiça? Afinal de contas, quem são os titulares do Inquérito em Processo Penal?


E eis que as escutas chegam - outra vez! - ao debate público. A sociedade portuguesa tem sido amiúde bombardeada por este tema. O presidente que suspeita. A oposição que "não se pronuncia" mas que se vai pronunciado. Os jornais e as televisões que acusam. O "revela" e o "não revela". O "despacha" e o "não despacha". O "destrói" e o "não destrói". O PGR, o Supremo...e o Governo.
Tudo temas perigosíssimos, na ténue linha que separa a Democracia da Ditadura, a Liberdade da Escravidão e a Privacidade da Devassa. E - pior ainda - quando se tornam móbil de todas as demagogias em face da politiquice irresponsável que ousa cavalgar as desventuras da res pública com o ar solene e pesaroso de quem sofre com este estado das coisas.
Mas vejamos por partes.
Em primeiro plano - o da questão jurídica -, com a devida humildade técnica me coloco entre aqueles que pensam que a actuação do presidente do STJ foi juridicamente correcta.
O artigo 11º do Código Processo Penal estabelece a competência do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça para autorizar a intercepção, gravação e transcrição de conversações em que intervenham o Presidente da República, o Presidente da Assembleia da República e o Primeiro Ministro.
Ora, conforme todos sabemos, o grande problema jurídico porquanto não explicitamente previsto pela lei é justamente saber qual a solução a dar para os casos em que tais figuras de soberania sejam escutadas de forma fortuita quando os escutados/suspeitos/arguidos eram outros. Por outras palavras, saber se a lei - nas palavras do legislador - quis abranger estes casos de puro e simples mero acaso em que figuras de Estado são interlocutores de suspeitos.
Mas pelo facto de não estar explicíto não quer dizer que não se possa retirar a norma aplicável.
Para que o compreendamos é necessário, antes de mais, que procuremos entender qual a razão de ser da norma constante do artigo 11º do CPC. Ao contrário daquilo que o raciocínio mais simplista - e porventura, demagógico- defenderia, não se trata de um privilégio de uma qualquer elite directiva que reservou para si o direito de só ser escutada quando os seus pares de elite assim o entenderem.
O Estado de Direito Democrático segue um ténue equilíbrio político institucional que assegura (ou procura assegurar) a co-existência de todos os poderes, embora devidamente separados entre si. Legislativo, Executivo e Judicial. E seria até formalmente possível manter essa coexistência se um qualquer juiz pudesse autorizar uma escuta ao Presidente da República ou Primeiro Ministro.
Contudo, mais do que a coexistência formal entre os poderes, o equilíbrio entre eles estaria irremediavelmente posto em causa. E, com ele, a subsistência do Estado de Direito Democrático. Razões de cautela institucional e protecção de um determinado adquirido civilizacional assim o aconselham sem que outra solução se mostre realmente mais razoável.
E - insisto - não se trata de um privilégio. Trata-se, isso sim, da necessidade perfeitamente razoável de ter de ser o mais alto dos magistrados judiciais a decidir a imposição de uma limitação à privacidade de um indivíduo, cidadão como qualquer outro, sim, mas titular de um cargo soberano.
Mais do que um entendimento meu, parece-me ser este o critério especial que resulta da interpretação da norma acima dita. E que, como tal, deverá ser oposto a todas as normas gerais.
E não se diga que a ratio da norma se aplicaria apenas a situações em que antecipadamente se deveria suscitar a autorização do Presidente do STJ e nunca àquelas situações - como a do caso face oculta - em que estaria em causa o conhecimento fortuito de alegados crimes por parte de um interlocutor do escutado, por mero acaso, titular de um órgão de soberania. O facto de a escuta ter sido "por acaso" não quer dizer que o mesmo princípio não se deva aplicar. E outra opinião, pura e simplesmente, será irrazoável. Assim, a escuta, ainda que inadvertida, há-de sempre recair na competência do presidente do STJ que pode e deve ordenar a sua transcrição ou destruição.Ora, assim sendo mais não se pode senão concluir pela nulidade da prova, tendo por base o artigo125 do Código Processo Penal quando se refere que são nulas as provas obtidas com violação de direitos do indivíduo.E isto é assim, tão-simplesmente, porque tem que ser. Mal estaríamos se uma prova ilegal pudesse servir para abrir suspeitas sobre um cidadão. Seja ele qual fôr. Mais: o artigo 187º CPP estabelece, no seu nº 7, que a gravação de conversações ou comunicações só pode ser utilizada em outro processo, em curso ou a instaurar (como seria o caso), se houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil. Ora, parece notório não ser este o caso presente.Razão expostas, muito se espanta o posicionamento de alguns doutrinários penalistas como o Prof. Paulo Pinto de Albuquerque quando vem defendendo que as escutas em causa deveriam ser exibidas - por razões de transparência - e que juridicamente não seria admíssivel o despacho do Presidente do STJ(!?!?). Resguarda-se, para tanto e aparentemente, no interesse social e público que se traduziria na exposição das conversas de Sócrates.O douto professor coloca, deste modo, em clara oposição interesse da investigação criminal e interesse social e público.O que é, convenhamos, extremamente perigoso e contraproducente. Primeiramente, porque confunde deliberadamente interesse popular com interesse social, travestindo a devassa de transparência.Depois, porque ignora intencionalmente que compete ao Poder Judicial levar a cabo a síntese daquilo que é, do ponto de vista judicial, a necessidade social. O que é diferente de necessidade popular. E que, nessa competência exclusiva, assiste aos órgãos do Poder Judicial sua exclusiva decisão sob pena de se colocar em crise um enorme adquirido civilizacional democrático. A devassa das conversas privadas tidas por judicialmente irrelevantes justificada por um alegado "interesse público" trará consigo um critério que servirá amanhã para qualquer outro cidadão. Mais, também não pode colher a tese absolutamente demagógica e popularesca que existiria uma "suspeita" por parte do procurador e Juiz de Instrução de Aveiro. Desde logo, porque à suspeita do primeiro se sobrepõe a consideração do PGR, órgão máximo da Magistratura do MP, que não existe qualquer fundamento para semelhante suspeita. E, num Estado de Direito Democrático, isso tem de valer por si, sem mais.E, depois, porque essa alegada suspeita que o JIC de Aveiro também teria parece ser nada mais do que uma produção mediática. O Juiz de Instrução limitou-se a autorizar a emissão de uma certidão, daqui não podendo resultar qualquer adesão a qualquer teoria de suspeição. Tal despacho não encerra em si qualquer implicação material, sendo de natureza meramente formal. Assim sendo, teorizações nesta linha mais não farão do que apelar à Justiça de índole popular, politizando-a e prestando um péssimo serviço à Democracia e à realização do Estado de Direito.Depois, num segundo plano de análise e que não deve ser descurado no caso presente caso - a questão política.E, nesse sentido, talvez seja pertinente compreender que na matriz ocidental contemporânea tanto a Justiça tem sido politizada como a vida da polis tem sido judicializada. No embate entre os 3 poderes por um certo reconhecimento social de hegemonia de facto, todos os 3 poderes procuram instrumentalizar, na medida do possível, os seus "concorrentes". E facto é que da obsessão jornalística por processos judiciais (porventura com um grande primórdio contemporâneo no Processo Dreyfus) nasceu a compreensão genérica por parte do poder judicial contemporâneo da sua capacidade de influenciar os demais poderes da Polis.E, talvez também por essa razão, a imprensa e o Poder Judicial vêm mantendo uma relação de parasitagem mútua. E, nesse sentido, é natural que informações sejam amiúde "deixadas sair" à luz de critérios aparentemente insondáveis. Esta observação, se relativamente válida para todos os países, assume-se, creio eu, certeira na matriz portuguesa. Surge, então, uma particular noção de "Jornalismo interventivo" que, podendo ser tanto certeiro como absolutamente matreiro, chamará à sua defesa uma Opinião Pública sequiosa de conspirações e arranjos contra si. E, talvez pelo caminho, não perceba esta que, como aquele, foi instrumentalizada.Por outras palavras: não estará na altura de VERDADEIRAMENTE se pôr ordem no segredo de Justiça? Afinal de contas, quem são os titulares do Inquérito em Processo Penal?

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