Devaneios Desintéricos: o reconhecimento

20-01-2012
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Portugal reconheceu hoje independência do Kosovo. O Palácio das Necessidades andou, durante oito meses, a "enrolar" a questão a modos tipicamente lusitanos: de São Bento nem "sim" nem "não". De Belém, antes, a certeza da existência de "dúvidas", num "não" que mais parecia um "sim". O facto esse já era, há muito, consumado: 48 estados já o haviam reconhecido, dos quais 22 da UE. Aqui, no Devaneios, a coisa já era mais ou menos notória: compreende-se a independência do Kosovo. Reconheço, no entanto, a pertinência de alguns dos argumentos que se lhe opoem: a cisão na unidade jurídica internacional, o difícil modus vivendi balcânico e o (suposto) precedente de reconhecimento de uma independência "unilateral".Não obstante, não deixa de me surpreender que, perante a existência de tantos argumentos decentes possivelmente invocáveis e contrários a uma independência que, admito, apresenta potencialmente tantas questões de difícil resolução, a Esquerda portuguesa adopte um discurso vazio de conteúdo, irresponsável e redutor."A única razão que se vislumbra tem a ver com a atitude de crescente hostilidade em relação à Rússia", considerou o deputado do PCP António Filipe, acompanhado pelo deputado do BE Fernando Rosas. "O Kosovo é um Estado falhado, dominado por traficantes de drogas e de armas", razão pela qual a aceitação da sua independência "abre um precedente gravíssimo". "Portugal passou a alinhar com o grupo de países europeus acríticos face à política de cerco à Rússia desencadeada pela administração Bush. Ao reconhecer a independência do Kosovo, Portugal perde autonomia e margem de manobra" no contexto internacional, declarou, ainda, o debate do BE. Toda esta argumentação é lamentável quando tanto de correcto poderia ser sugerido na defesa das teses mais ou menos legítimas do PCP e do BE. Mas ficaram-se, tão-somente, pelo disparate. Os deputados do PCP e do BE consideram que existe uma crescente hostilidade quanto à Rússia. Eu, que sou de Esquerda e antes vejo governos amarrados por interesses económicos na Rússia, acho que a hostilidade que existe é simplesmente pouca. Pífia e insipiente. A Esquerda fez-se e afirma-se pelo carinho que nutre por um determinado grupo de ideias, encimeiradas pela afirmação da suprema e inegável dignidade da condição humana. Coisa que, bem saberão os deputados do PCP e do BE, não abunda por terras de Medvedev/Putin: o autoritarismo, a violência extremista incentivada pelo Estado, o poder imperial da Igreja Ortodoxa e o seu beneplácito aos desvios do poder político, o nepotismo corrupto, o combate à liberdade de imprensa e às ONGs, e tantas outros factos acessíveis em sítios prezados pelo BE como a Amnistia Internacional ou a Human Rights Watch são tudo ofensas aos valores mais básicos da Esquerda que a mesma deve MESMO hostilizar e cercar.Depois, o facto de o Kosovo ser um Estado falhado dominado por traficantes e corrupção. Pois bem que existe um fenómeno de inegável vício da decisão democrática, com máfias a operarem em diversos ramos da vida do Estado. Mas achará o Dr. Fernando Rosas que isto resulta do facto de o Kosovo ser um estado? Ou antes será um problema transversal à região, que afecta diversas estruturas administrativas em diversos estados? Será que a corrupção em Pristina apareceu com a declaração de independência de 17 de Fevereiro de 2008? Ainda há uns pouquíssimos dias atrás, numa conferência patrocinada pela Comissão Europeia, em Belgrado, em que tive a oportunidade de participar, foram apresentados interessantes estudos académicos (v.g. Milos Stopic - "The influence of media on Serbian transition process" ou Dejan Anastasijevic - "A map of terrorist and organized crime groups in the Western Balkans and suspected links with security agencies of the states in the region") que demonstravam precisamente, e de forma líquida, como a própria imprensa sérvia, por exemplo, é financiada por fundos ligados a actividades de crime organizado, não raras vezes suportados pelas próprias agências de segurança dos diversos países, elas mesmo envolvidas em operações ilegais de tráficos de armas e de droga.Mais e como se tudo isto isto não bastasse, desde quando a afirmação do direito de existência de um Estado se faz pela comprovação da sua viabilidade económica? Maus princípios nestes assuntos os desta Esquerda, senhores deputados, quando havia tanta coisa para ser referida!

Portugal reconheceu hoje independência do Kosovo. O Palácio das Necessidades andou, durante oito meses, a "enrolar" a questão a modos tipicamente lusitanos: de São Bento nem "sim" nem "não". De Belém, antes, a certeza da existência de "dúvidas", num "não" que mais parecia um "sim". O facto esse já era, há muito, consumado: 48 estados já o haviam reconhecido, dos quais 22 da UE. Aqui, no Devaneios, a coisa já era mais ou menos notória: compreende-se a independência do Kosovo. Reconheço, no entanto, a pertinência de alguns dos argumentos que se lhe opoem: a cisão na unidade jurídica internacional, o difícil modus vivendi balcânico e o (suposto) precedente de reconhecimento de uma independência "unilateral".Não obstante, não deixa de me surpreender que, perante a existência de tantos argumentos decentes possivelmente invocáveis e contrários a uma independência que, admito, apresenta potencialmente tantas questões de difícil resolução, a Esquerda portuguesa adopte um discurso vazio de conteúdo, irresponsável e redutor."A única razão que se vislumbra tem a ver com a atitude de crescente hostilidade em relação à Rússia", considerou o deputado do PCP António Filipe, acompanhado pelo deputado do BE Fernando Rosas. "O Kosovo é um Estado falhado, dominado por traficantes de drogas e de armas", razão pela qual a aceitação da sua independência "abre um precedente gravíssimo". "Portugal passou a alinhar com o grupo de países europeus acríticos face à política de cerco à Rússia desencadeada pela administração Bush. Ao reconhecer a independência do Kosovo, Portugal perde autonomia e margem de manobra" no contexto internacional, declarou, ainda, o debate do BE. Toda esta argumentação é lamentável quando tanto de correcto poderia ser sugerido na defesa das teses mais ou menos legítimas do PCP e do BE. Mas ficaram-se, tão-somente, pelo disparate. Os deputados do PCP e do BE consideram que existe uma crescente hostilidade quanto à Rússia. Eu, que sou de Esquerda e antes vejo governos amarrados por interesses económicos na Rússia, acho que a hostilidade que existe é simplesmente pouca. Pífia e insipiente. A Esquerda fez-se e afirma-se pelo carinho que nutre por um determinado grupo de ideias, encimeiradas pela afirmação da suprema e inegável dignidade da condição humana. Coisa que, bem saberão os deputados do PCP e do BE, não abunda por terras de Medvedev/Putin: o autoritarismo, a violência extremista incentivada pelo Estado, o poder imperial da Igreja Ortodoxa e o seu beneplácito aos desvios do poder político, o nepotismo corrupto, o combate à liberdade de imprensa e às ONGs, e tantas outros factos acessíveis em sítios prezados pelo BE como a Amnistia Internacional ou a Human Rights Watch são tudo ofensas aos valores mais básicos da Esquerda que a mesma deve MESMO hostilizar e cercar.Depois, o facto de o Kosovo ser um Estado falhado dominado por traficantes e corrupção. Pois bem que existe um fenómeno de inegável vício da decisão democrática, com máfias a operarem em diversos ramos da vida do Estado. Mas achará o Dr. Fernando Rosas que isto resulta do facto de o Kosovo ser um estado? Ou antes será um problema transversal à região, que afecta diversas estruturas administrativas em diversos estados? Será que a corrupção em Pristina apareceu com a declaração de independência de 17 de Fevereiro de 2008? Ainda há uns pouquíssimos dias atrás, numa conferência patrocinada pela Comissão Europeia, em Belgrado, em que tive a oportunidade de participar, foram apresentados interessantes estudos académicos (v.g. Milos Stopic - "The influence of media on Serbian transition process" ou Dejan Anastasijevic - "A map of terrorist and organized crime groups in the Western Balkans and suspected links with security agencies of the states in the region") que demonstravam precisamente, e de forma líquida, como a própria imprensa sérvia, por exemplo, é financiada por fundos ligados a actividades de crime organizado, não raras vezes suportados pelas próprias agências de segurança dos diversos países, elas mesmo envolvidas em operações ilegais de tráficos de armas e de droga.Mais e como se tudo isto isto não bastasse, desde quando a afirmação do direito de existência de um Estado se faz pela comprovação da sua viabilidade económica? Maus princípios nestes assuntos os desta Esquerda, senhores deputados, quando havia tanta coisa para ser referida!

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