O afundamento

11-11-2013
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O relatório das Fundações é um exemplo maior de desnorte governativo que no tocante à Cultura virá a ter as mais graves consequências. São instituições fulcrais como Serralves, a Casa da Música ou a Culturgest que estão em risco.

As malfadadas PPPs, Parcerias Público-Privadas, constituem porventura o vector mais pernicioso na promiscuidade de interesses que deram origem ao descalabro financeiro do país, como ainda recentemente o evidenciou um relatório do Tribunal de Contas, que aliás obriga a um apuramento cabal e completo de responsabilidades. Das PPPs e dos malefícios ouvimos muito falar mas, ao arrepio de todo o(s) discurso(s) do PSD e do CDS enquanto oposição, continuamos à espera de uma efectiva política nesse item crucial das despesas do Estado - constituindo de resto uma espécie de "Estado paralelo" exponencial do sistema clientelista erigido ao longo de décadas pelos partidos do dito "arco governativo" -, enquanto o nível de vida dos cidadãos é brutalmente comprometido por subidas de impostos, de resto com consequências altamente paradoxais e gravosas ao nível das receitas, facto bem conhecido na teoria económica como "curva de Laffer", mas desconhecido na governação por powerpoint e folhas de excel, com contas erradas ainda por cima, dos "geniais" Vítor Gaspar e Carlos Moedas.

Acontece que há também uma consequência ideológica e semântica da gangrena das PPPs, a diabolização do próprio conceito de parceria público-privado, que no entanto nalguns sectores pode ser crucial e revelar-se da maior importância, decisiva mesma. É o caso da Cultura.

O sector desapareceu com este governo. Do titular, o secretário de Estado Francisco José Viegas, o que sabemos é que a sua editora está à espera que entregue um novo romance, facto revelador de todo o empenho que tem posto nas suas funções governativas, mas de resto nada original - era Viegas director da Casa Fernando Pessoa e, seguindo o seu interessante blogue, A Origem das Espécies, íamos estando a par das suas múltiplas e constantes viagens.

Acontece que o que se está a passar na Cultura não é apenas uma situação de cortes orçamentais, que no descalabro financeiro do país seriam sempre inevitáveis. O que ocorre é sim a destruição de um tecido que, mesmo que muito lentamente, se foi construindo ao longo de 25 anos, o exemplo mais gritante sendo agora os cortes decididos ou sugeridos para fundações culturais.

Dir-se-á que sempre que se fala na necessidade de cortes de despesa há um acordo geral no sentido de que devem ser feitos, mas depois um reflexo imediato, "desde que não seja no meu quintal". Se isso é um estado de espírito, aliás compreensível na desesperança geral, não é menos certo que há um total desconhecimento dos factos concretos nas folhas de excel, misturando realidades de todo diferentes. Um exemplo máximo dessa ignorância governativa é o tal relatório e recomendações sobre as fundações.

Conceitos como "interesse público" e "eficácia", estatutos público e privado, tudo isso foi confundido e feitas "contas" sem qualquer nexo - basta atentar a que a Fundação de maior projecção nacional e internacional, a Gulbenkian, apareceu classificada em 84º lugar (!), e que das "tabelas" constam entidades que não recebem fundos públicos, como as Fundações Paula Rego e do Oriente, ou que se recomenda por exemplo a extinção da do Côa, que nem existia ainda ao longo do período de "análise" abrangido.

O relatório das Fundações é um exemplo maior de desnorte governativo, que no tocante ao sector da cultura virá a ter as mais graves consequências, não só a nível financeiro imediato mas também porque mina as parcerias constituídas entre o Estado e mecenas privados ou a intervenção de entidades culturais de estatuto privado se bem que constituídas por empresas do universo público. São instituições tão fulcrais como Serralves, a Casa da Música ou a Culturgest que neste momento estão em risco.

O Relatório de Augusto Mateus sobre "O Sector Cultural e Criativo em Portugal", de Janeiro de 2010, concluía que o sector "originou, no ano de 2006, um valor acrescentado bruto (VAB) de 3.691 milhões de euros, empregando cerca de 127 mil pessoas. Isto é, foi responsável por 2,6% do emprego e por 2,8% da riqueza criada em Portugal, o que não pode deixar de se considerar significativo e relevante". E estes dados, reitere-se, são de ordem económica, autónomos portanto dos cruciais aspectos qualitativos da arte, da cultura e da criatividade numa comunidade politicamente organizada, como tal sendo também um direito, de resto expresso na Constituição da República Portuguesa.

Se o Relatório Mateus é um estudo de referência, não foi no entanto inédito. O primeiro estudo sobre "O Impacto das Actividades Culturais sobre a Economia Portuguesa" data, imagine-se, de 1988, tendo sido encomendado por Teresa Gouveia, secretário de Estado da Cultura num governo chefiado por Aníbal Cavaco Silva. Quais as conclusões desse relatório?

1) A medida do peso das actividades culturais na economia portuguesa, através da despesa das famílias em cultura, constituirá cerca de 3% do PIB;

2) Prevê-se que este peso seja crescente, admitindo-se que atinja, na actual década, 5%;

3) Admite-se que este peso seja mais acentuado que o crescimento da despesa total das famílias.

Quem foram os responsáveis por este estudo referido aos dados disponíveis em 1988? Pois bem, pasme-se, Vítor Gaspar e Luís Morais Sarmento, actuais ministro das Finanças e secretário de Estado do Orçamento!

Para o caso de não nos esquecermos de todo que ele existe, de vez em quando, embora só até há uns meses atrás, o senhor SEC dá um ar da sua "graça". Assim, referindo-se a essas duas instituições axiais do Porto, do país e do noroeste peninsular, que são Serralves e a Casa da Música, resolveu dizer que o apoio do Estado se manteria na medida em que houvesse também maior empenho privado e local.

Este tipo de considerações é desde logo uma afronta: porque só existem declarações dessas para instituições do Porto e do Norte, quando o Estado nunca fez alguma coisa para, por exemplo, haver estatutariamente capital mecenático na Fundação do Centro Cultural de Belém em Lisboa?

Mas mais: o modelo de parceria público-privada adoptado para a Fundação de Serralves - e depois retomado para a Casa da Música - sendo primeiro-ministro Cavaco Silva e secretária de Estado Teresa Gouveia, revelou-se particularmente frutífero, como não tenho deixado de defender ao longo de anos. Mais ainda: segundo afirmou recentemente o administrador-executivo da Casa da Música, Nuno Azevedo, "em 2011, cada euro que o Estado meteu na CdM transformou-se em quase três". A garantia do empenho do Estado é absolutamente crucial para conseguir também captar capital privado e mecenático. E quando o Estado, depois dos dolorosos cortes já efectuados em 2011 e 2012, anuncia um desinvestimento previsível da ordem dos 30 por cento é evidente que não serão os privados a compensar, como se a crise lhes fosse alheia.

De romance em romance, os que Francisco José Viegas vai escrevendo nas suas quase permanentes horas livres no cargo de secretário de Estado, vai ocorrendo o afundamento geral das estruturas culturais em Portugal. E Gaspar e Morais Sarmento, esses, já nem se lembram do que analisaram, ocupados com os powerpoints e as folhas de excel ainda por cima de cálculos errados.

O relatório das Fundações é um exemplo maior de desnorte governativo que no tocante à Cultura virá a ter as mais graves consequências. São instituições fulcrais como Serralves, a Casa da Música ou a Culturgest que estão em risco.

As malfadadas PPPs, Parcerias Público-Privadas, constituem porventura o vector mais pernicioso na promiscuidade de interesses que deram origem ao descalabro financeiro do país, como ainda recentemente o evidenciou um relatório do Tribunal de Contas, que aliás obriga a um apuramento cabal e completo de responsabilidades. Das PPPs e dos malefícios ouvimos muito falar mas, ao arrepio de todo o(s) discurso(s) do PSD e do CDS enquanto oposição, continuamos à espera de uma efectiva política nesse item crucial das despesas do Estado - constituindo de resto uma espécie de "Estado paralelo" exponencial do sistema clientelista erigido ao longo de décadas pelos partidos do dito "arco governativo" -, enquanto o nível de vida dos cidadãos é brutalmente comprometido por subidas de impostos, de resto com consequências altamente paradoxais e gravosas ao nível das receitas, facto bem conhecido na teoria económica como "curva de Laffer", mas desconhecido na governação por powerpoint e folhas de excel, com contas erradas ainda por cima, dos "geniais" Vítor Gaspar e Carlos Moedas.

Acontece que há também uma consequência ideológica e semântica da gangrena das PPPs, a diabolização do próprio conceito de parceria público-privado, que no entanto nalguns sectores pode ser crucial e revelar-se da maior importância, decisiva mesma. É o caso da Cultura.

O sector desapareceu com este governo. Do titular, o secretário de Estado Francisco José Viegas, o que sabemos é que a sua editora está à espera que entregue um novo romance, facto revelador de todo o empenho que tem posto nas suas funções governativas, mas de resto nada original - era Viegas director da Casa Fernando Pessoa e, seguindo o seu interessante blogue, A Origem das Espécies, íamos estando a par das suas múltiplas e constantes viagens.

Acontece que o que se está a passar na Cultura não é apenas uma situação de cortes orçamentais, que no descalabro financeiro do país seriam sempre inevitáveis. O que ocorre é sim a destruição de um tecido que, mesmo que muito lentamente, se foi construindo ao longo de 25 anos, o exemplo mais gritante sendo agora os cortes decididos ou sugeridos para fundações culturais.

Dir-se-á que sempre que se fala na necessidade de cortes de despesa há um acordo geral no sentido de que devem ser feitos, mas depois um reflexo imediato, "desde que não seja no meu quintal". Se isso é um estado de espírito, aliás compreensível na desesperança geral, não é menos certo que há um total desconhecimento dos factos concretos nas folhas de excel, misturando realidades de todo diferentes. Um exemplo máximo dessa ignorância governativa é o tal relatório e recomendações sobre as fundações.

Conceitos como "interesse público" e "eficácia", estatutos público e privado, tudo isso foi confundido e feitas "contas" sem qualquer nexo - basta atentar a que a Fundação de maior projecção nacional e internacional, a Gulbenkian, apareceu classificada em 84º lugar (!), e que das "tabelas" constam entidades que não recebem fundos públicos, como as Fundações Paula Rego e do Oriente, ou que se recomenda por exemplo a extinção da do Côa, que nem existia ainda ao longo do período de "análise" abrangido.

O relatório das Fundações é um exemplo maior de desnorte governativo, que no tocante ao sector da cultura virá a ter as mais graves consequências, não só a nível financeiro imediato mas também porque mina as parcerias constituídas entre o Estado e mecenas privados ou a intervenção de entidades culturais de estatuto privado se bem que constituídas por empresas do universo público. São instituições tão fulcrais como Serralves, a Casa da Música ou a Culturgest que neste momento estão em risco.

O Relatório de Augusto Mateus sobre "O Sector Cultural e Criativo em Portugal", de Janeiro de 2010, concluía que o sector "originou, no ano de 2006, um valor acrescentado bruto (VAB) de 3.691 milhões de euros, empregando cerca de 127 mil pessoas. Isto é, foi responsável por 2,6% do emprego e por 2,8% da riqueza criada em Portugal, o que não pode deixar de se considerar significativo e relevante". E estes dados, reitere-se, são de ordem económica, autónomos portanto dos cruciais aspectos qualitativos da arte, da cultura e da criatividade numa comunidade politicamente organizada, como tal sendo também um direito, de resto expresso na Constituição da República Portuguesa.

Se o Relatório Mateus é um estudo de referência, não foi no entanto inédito. O primeiro estudo sobre "O Impacto das Actividades Culturais sobre a Economia Portuguesa" data, imagine-se, de 1988, tendo sido encomendado por Teresa Gouveia, secretário de Estado da Cultura num governo chefiado por Aníbal Cavaco Silva. Quais as conclusões desse relatório?

1) A medida do peso das actividades culturais na economia portuguesa, através da despesa das famílias em cultura, constituirá cerca de 3% do PIB;

2) Prevê-se que este peso seja crescente, admitindo-se que atinja, na actual década, 5%;

3) Admite-se que este peso seja mais acentuado que o crescimento da despesa total das famílias.

Quem foram os responsáveis por este estudo referido aos dados disponíveis em 1988? Pois bem, pasme-se, Vítor Gaspar e Luís Morais Sarmento, actuais ministro das Finanças e secretário de Estado do Orçamento!

Para o caso de não nos esquecermos de todo que ele existe, de vez em quando, embora só até há uns meses atrás, o senhor SEC dá um ar da sua "graça". Assim, referindo-se a essas duas instituições axiais do Porto, do país e do noroeste peninsular, que são Serralves e a Casa da Música, resolveu dizer que o apoio do Estado se manteria na medida em que houvesse também maior empenho privado e local.

Este tipo de considerações é desde logo uma afronta: porque só existem declarações dessas para instituições do Porto e do Norte, quando o Estado nunca fez alguma coisa para, por exemplo, haver estatutariamente capital mecenático na Fundação do Centro Cultural de Belém em Lisboa?

Mas mais: o modelo de parceria público-privada adoptado para a Fundação de Serralves - e depois retomado para a Casa da Música - sendo primeiro-ministro Cavaco Silva e secretária de Estado Teresa Gouveia, revelou-se particularmente frutífero, como não tenho deixado de defender ao longo de anos. Mais ainda: segundo afirmou recentemente o administrador-executivo da Casa da Música, Nuno Azevedo, "em 2011, cada euro que o Estado meteu na CdM transformou-se em quase três". A garantia do empenho do Estado é absolutamente crucial para conseguir também captar capital privado e mecenático. E quando o Estado, depois dos dolorosos cortes já efectuados em 2011 e 2012, anuncia um desinvestimento previsível da ordem dos 30 por cento é evidente que não serão os privados a compensar, como se a crise lhes fosse alheia.

De romance em romance, os que Francisco José Viegas vai escrevendo nas suas quase permanentes horas livres no cargo de secretário de Estado, vai ocorrendo o afundamento geral das estruturas culturais em Portugal. E Gaspar e Morais Sarmento, esses, já nem se lembram do que analisaram, ocupados com os powerpoints e as folhas de excel ainda por cima de cálculos errados.

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