Talvez fiquemos agora entendidos*

06-07-2011
marcar artigo

Talvez fiquemos agora entendidos*

“EXPRESSO – A pergunta é a seguinte: há informações de que o dr. Soares conhecia o polémico fax, alegadamente incriminatório para o eng. Melancia [governador de Macau], antes de ser publicado na imprensa…

Mário Soares – Não é exacto. Tudo o que conheço da matéria foi o que li nos jornais.

EXP. – O próprio dr. Almeida Santos ter-lhe-ia entregue uma cópia…

M.S. – Não é exacto. Aliás, não vi que ele tivesse feito em parte nenhuma tal afirmação e não acredito que a tivesse feito. É outra pergunta inquinada.

EXP. – Não confirma que conhecia o caso antes de vir a público?

M.S. – Não confirmo. Acho que estão a fazer-me perguntas que considero impertinentes. Os senhores não são polícias, embora pareça que gostam de se comportar como tal.

EXP. – No caso provável de continuar como Presidente, que governador vai nomear para Macau? Um governador da sua área política, como os anteriores, ou um governador que reúna consenso nacional?

M.S. – É uma pergunta prematura. Já o disse e repito. (…) E, já agora, devo dizer-vos que, em matéria de interrogatórios policiais, fui sujeito em tempos aos tão temidos interrogatórios da PIDE. Nunca falei na PIDE. Talvez fiquemos agora entendidos, uma vez que há entre vós quem tenha experiência na matéria.”

Esta entrevista do Expresso a Mário Soares foi publicada na revista daquele semanário a 1 de Dezembro de 1990 e o que nela aconteceu explica-se facilmente: um Presidente da República e então candidato a novo mandato, irritado com as perguntas sobre um caso em que o seu nome era referido, o caso Emaudio/fax de Macau, procura humilhar um dos quatro jornalistas que participavam nesta entrevista revelando o que sabia ou achava que sabia (pois estas informações não eram do domínio público) sobre a forma como esse jornalista enfrentara anos antes os interrogatórios da PIDE.

A pré-campanha para a reeleição de Mário Soares iniciava-se com o candidato a reagir desta forma às perguntas sobre um caso que não queria que lhe assombrasse a campanha. Mas foi isso que veio a acontecer. Semanas depois desta entrevista, já com os candidatos na estrada, um dos envolvidos no caso Emaudio, o alemão Karl Rohe, chegou a Lisboa com uma pasta que pretendia entregar na sede de campanha de um outro candidato presidencial, o centrista Basílio Horta. Dentro dessa pasta, segundo O Independente, estaria material que provaria que o então Presidente da República e alguns dos seus mais directos colaboradores em Belém tinham conhecimento dos bastidores do caso Emaudio/fax de Macau. Dois dias antes da eleição presidencial, o mesmo semanário revelava que o então procurador-geral da República, Cunha Rodrigues, e o procurador-geral adjunto, Rodrigues Maximiano, tinham avaliado os fundamentos jurídicos de chamar o então Presidente da República e recandidato a depor a propósito do caso Emaudio.

A avaliar por tudo aquilo que se disse nas últimas semanas, nada disto aconteceu, pois, a acreditar nessa versão reconfortante do passado, as anteriores campanhas presidenciais, sobretudo as de recandidatura, teriam sido exemplos de elevação por contraste com a baixeza a que se chegou em 2011. Deste axioma resulta geralmente a conclusão de que as campanhas para as recandidaturas presidenciais são sempre uma espécie de marcha triunfal e que em 2011 isso só não se repetiu dadas as características pessoais de Cavaco Silva. Digamos que estes seriam argumentos interessantes, caso fossem verdadeiros. Mas não são. Não o foi com Soares em 1991, tal como já não o tinha sido com Eanes em 1980. (Convirá, aliás, deixar de encarar como uma antiqualha o sucedido na recandidatura de Eanes em 1980, pois Nobre recupera parte do imaginário da regeneração do regime a partir de Belém ou na caminhada para lá. Sinal dos tempos: onde, em 1980, estava o militar e as Forças Armadas surgem agora o médico e a respectiva ONG.)

Já a campanha de Cavaco Silva em 2011 tem como óbvio contraponto a recandidatura de Soares em 1991: ambas as campanhas foram afectadas por casos e em ambas se constatou que uma campanha de recandidatura é, por princípio, mais fácil de ganhar, mas também mais amarga de fazer. A razão para este aparente paradoxo encontra-se nos candidatos que estão em segundo lugar e que, não tendo, à partida, possibilidade de ganhar, apostam numa estratégia não de vitória mas sim de desgaste do favorito. Não matam o vencedor anunciado. Mas moem-no. Não com argumentos mas sim com escândalos. Aconteceu em 1991 e repetiu-se em 2011.

O que mudou de 1991 para 2011 foi a atitude dos dois grandes partidos: em 1991, apenas o candidato de um partido da franja, Basílio Horta, apoiado pelo CDS, utilizou politicamente este caso em campanha. E, a não ser no semanário O Independente, é difícil encontrar uma linha que à data não o critique por questionar o mandato do então Presidente da República baseando-se, segundo se escrevia nos jornais da época, em “histórias mesquinhas” protagonizadas por “personagens duvidosas”, “figurantes sórdidos” e “gangsters de pacotilha”. O PSD, que apoiava Soares na recandidatura, e naturalmente o PS demarcavam-se desta campanha de “baixo nível” e o candidato do PCP, Carlos Carvalhas, e da extrema-esquerda, Carlos Marques, seguiram-lhes o exemplo.

O que foi diferente de 1991 para 2011 nada tem a ver, portanto, com as más amizades dos presidentes, muito menos com a sua falta de disponibilidade para explicar o que os jornalistas e opositores lhes perguntam sobre assuntos incómodos. O que de diferente sucedeu em 2011 foi que um partido do centro, e que habitualmente tem os seus dirigentes no cargo de primeiro-ministro ou de Presidente da República, apostou numa estratégia de guerrilha a que, até esta data, nas presidenciais, apenas tinham recorrido os partidos das pontas do arco eleitoral. Como diria o dr. Mário Soares, talvez fiquemos agora entendidos sobre as diferenças desta campanha presidencial.

*PÚBLICO

Talvez fiquemos agora entendidos*

“EXPRESSO – A pergunta é a seguinte: há informações de que o dr. Soares conhecia o polémico fax, alegadamente incriminatório para o eng. Melancia [governador de Macau], antes de ser publicado na imprensa…

Mário Soares – Não é exacto. Tudo o que conheço da matéria foi o que li nos jornais.

EXP. – O próprio dr. Almeida Santos ter-lhe-ia entregue uma cópia…

M.S. – Não é exacto. Aliás, não vi que ele tivesse feito em parte nenhuma tal afirmação e não acredito que a tivesse feito. É outra pergunta inquinada.

EXP. – Não confirma que conhecia o caso antes de vir a público?

M.S. – Não confirmo. Acho que estão a fazer-me perguntas que considero impertinentes. Os senhores não são polícias, embora pareça que gostam de se comportar como tal.

EXP. – No caso provável de continuar como Presidente, que governador vai nomear para Macau? Um governador da sua área política, como os anteriores, ou um governador que reúna consenso nacional?

M.S. – É uma pergunta prematura. Já o disse e repito. (…) E, já agora, devo dizer-vos que, em matéria de interrogatórios policiais, fui sujeito em tempos aos tão temidos interrogatórios da PIDE. Nunca falei na PIDE. Talvez fiquemos agora entendidos, uma vez que há entre vós quem tenha experiência na matéria.”

Esta entrevista do Expresso a Mário Soares foi publicada na revista daquele semanário a 1 de Dezembro de 1990 e o que nela aconteceu explica-se facilmente: um Presidente da República e então candidato a novo mandato, irritado com as perguntas sobre um caso em que o seu nome era referido, o caso Emaudio/fax de Macau, procura humilhar um dos quatro jornalistas que participavam nesta entrevista revelando o que sabia ou achava que sabia (pois estas informações não eram do domínio público) sobre a forma como esse jornalista enfrentara anos antes os interrogatórios da PIDE.

A pré-campanha para a reeleição de Mário Soares iniciava-se com o candidato a reagir desta forma às perguntas sobre um caso que não queria que lhe assombrasse a campanha. Mas foi isso que veio a acontecer. Semanas depois desta entrevista, já com os candidatos na estrada, um dos envolvidos no caso Emaudio, o alemão Karl Rohe, chegou a Lisboa com uma pasta que pretendia entregar na sede de campanha de um outro candidato presidencial, o centrista Basílio Horta. Dentro dessa pasta, segundo O Independente, estaria material que provaria que o então Presidente da República e alguns dos seus mais directos colaboradores em Belém tinham conhecimento dos bastidores do caso Emaudio/fax de Macau. Dois dias antes da eleição presidencial, o mesmo semanário revelava que o então procurador-geral da República, Cunha Rodrigues, e o procurador-geral adjunto, Rodrigues Maximiano, tinham avaliado os fundamentos jurídicos de chamar o então Presidente da República e recandidato a depor a propósito do caso Emaudio.

A avaliar por tudo aquilo que se disse nas últimas semanas, nada disto aconteceu, pois, a acreditar nessa versão reconfortante do passado, as anteriores campanhas presidenciais, sobretudo as de recandidatura, teriam sido exemplos de elevação por contraste com a baixeza a que se chegou em 2011. Deste axioma resulta geralmente a conclusão de que as campanhas para as recandidaturas presidenciais são sempre uma espécie de marcha triunfal e que em 2011 isso só não se repetiu dadas as características pessoais de Cavaco Silva. Digamos que estes seriam argumentos interessantes, caso fossem verdadeiros. Mas não são. Não o foi com Soares em 1991, tal como já não o tinha sido com Eanes em 1980. (Convirá, aliás, deixar de encarar como uma antiqualha o sucedido na recandidatura de Eanes em 1980, pois Nobre recupera parte do imaginário da regeneração do regime a partir de Belém ou na caminhada para lá. Sinal dos tempos: onde, em 1980, estava o militar e as Forças Armadas surgem agora o médico e a respectiva ONG.)

Já a campanha de Cavaco Silva em 2011 tem como óbvio contraponto a recandidatura de Soares em 1991: ambas as campanhas foram afectadas por casos e em ambas se constatou que uma campanha de recandidatura é, por princípio, mais fácil de ganhar, mas também mais amarga de fazer. A razão para este aparente paradoxo encontra-se nos candidatos que estão em segundo lugar e que, não tendo, à partida, possibilidade de ganhar, apostam numa estratégia não de vitória mas sim de desgaste do favorito. Não matam o vencedor anunciado. Mas moem-no. Não com argumentos mas sim com escândalos. Aconteceu em 1991 e repetiu-se em 2011.

O que mudou de 1991 para 2011 foi a atitude dos dois grandes partidos: em 1991, apenas o candidato de um partido da franja, Basílio Horta, apoiado pelo CDS, utilizou politicamente este caso em campanha. E, a não ser no semanário O Independente, é difícil encontrar uma linha que à data não o critique por questionar o mandato do então Presidente da República baseando-se, segundo se escrevia nos jornais da época, em “histórias mesquinhas” protagonizadas por “personagens duvidosas”, “figurantes sórdidos” e “gangsters de pacotilha”. O PSD, que apoiava Soares na recandidatura, e naturalmente o PS demarcavam-se desta campanha de “baixo nível” e o candidato do PCP, Carlos Carvalhas, e da extrema-esquerda, Carlos Marques, seguiram-lhes o exemplo.

O que foi diferente de 1991 para 2011 nada tem a ver, portanto, com as más amizades dos presidentes, muito menos com a sua falta de disponibilidade para explicar o que os jornalistas e opositores lhes perguntam sobre assuntos incómodos. O que de diferente sucedeu em 2011 foi que um partido do centro, e que habitualmente tem os seus dirigentes no cargo de primeiro-ministro ou de Presidente da República, apostou numa estratégia de guerrilha a que, até esta data, nas presidenciais, apenas tinham recorrido os partidos das pontas do arco eleitoral. Como diria o dr. Mário Soares, talvez fiquemos agora entendidos sobre as diferenças desta campanha presidencial.

*PÚBLICO

marcar artigo