Vermos o telejornal à mesma hora é comportarmo-nos como na Idade Média

16-03-2012
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Quatro fotografias feitas por prisioneiros em Auschwitz- -Birkenau durante o Holocausto lançaram a discussão sobre a imagem como testemunha da História e levaram o filósofo Georges Didi-Huberman a escrever Imagens apesar de tudo, lançado hoje na Culturgest. Por Tiago Bartolomeu Costa

Georges Didi-Huberman é filósofo, historiador de arte e comissário, mas é também um dos mais activos defensores de uma reformulação do discurso sobre a História a partir da importância das imagens. O seu livro Imagens apesar de tudo é lançado hoje na Culturgest, em Lisboa, pela Ymago (17h30). Aos 59 anos, lança-se na análise de quatro fotografias feitas no campo de concentração de Auschwitz-Birkenau por um Sonderkommando (grupo de prisioneiros judeus que removiam os corpos dos mortos e ajudavam os nazis noutras tarefas). Desconhecidas até há pouco tempo, mostram, pela primeira vez, o processo de tortura durante o Holocausto. O que as imagens vêm mostrar, diz, é a hipótese de reconstrução do testemunho, até aqui feito pela palavra em detrimento da imagem. O filósofo, professor na École des Hautes Études des Sciences Sociales, em Paris, sugere que a História deve deixar de se entender como uma disciplina autónoma e, seguindo os passos de Aby Warburg e Walter Benjamin, atravessar-se noutras disciplinas, como a História da Arte, a Filosofia, a Antropologia e a Psicanálise.

As imagens das quais partiu para o livro põem em causa a hierarquia do testemunho, opondo a palavra à imagem. As imagens podem mentir?

Estas quatro fotografias doforam realizadas pelos prisioneiros de Birkenau em risco de vida e são, a meus olhos, testemunhos visuais aos quais devemos prestar toda a nossa atenção. São, no momento, as únicas imagens do género que conhecemos. Os meus oponentes pensam, pelo contrário, que a noção de testemunho visual é insustentável: somente a palavra testemunha. A imagem seria, pelo contrário, um falso-semelhante, uma ilusão, uma mentira. Estamos em pleno platonismo. Que as imagens sejam mentiras cabe-nos a nós comprová-lo todos os dias perante a publicidade, os cartazes eleitorais, algumas reportagens, etc. Mas a polémica consistia no estatuto da "imagem geral". A minha posição consiste em nunca falar da imagem no geral. Pensamos na linguagem como algo geral? Deduzimos que um discurso de Goebbels nos faz atirar às urtigas toda a língua no geral? Que é preciso esquecer Hölderlin? É preciso ver em todas as frases uma mentira só porque cada frase de Goebbels o é? As imagens têm um papel considerável na construção da memória histórica. Mas não são todas iguais: é uma questão de determinar o seu "valor de uso". Há, tal como na palavra, imagens que mentem e outras que dizem a verdade, mesmo que essa verdade - é quase inútil dizê-lo, mas foi Lacan que o afirmou - não seja nunca toda a verdade.

E isso altera de que forma a diferença entre cúmplice e espectador?

Desde que empregamos em filosofia a palavra teoria (que pressupõe o olhar) ou desde que Brecht inventou "o teatro crítico", distanciado, não podemos mais confundir espectador e cúmplice. Fazer essa confusão é postular todos os olhares perversos, malditos e criminosos. É opor a imaginação (faculdade necessária ao pensamento, como no pensamento político, assim o disse Hannah Arendt) à identificação. Esta confusão é desastrosa, e estava na base das diatribes que surgiram relativamente ao meu trabalho. Felizmente que há, em França, bons filósofos que reflectem sobre uma prática não alienada do espectador e que mostram como a reflexão sobre as imagens não cessa de dar frutos...: penso em livros como, de Marie-José Mondzain, ou, de Jacques Ranciére [editado em Portugal pela Orfeu Negro].

Que papel têm as imagens na leitura da História?

De facto, as imagens - que são objectos cruciais da cultura no seu sentido mais largo do termo, pois estão no cruzamento de todos os caminhos - são submetidas, pela História, à sua metodologia prática. Há já algum tempo que os historiadores usam as imagens, mas ainda a título de ilustração. Perpetuamos uma hierarquia do texto (fiável) e da imagem (menos fiável). Ainda não integrámos no nosso olhar as propostas transformadoras de Walter Benjamin, quando ele diz que a "lisibilidade" da História passa pelas imagens ou, mais exactamente, pelo que ele chama de "imagens dialécticas". A imagem não é "a cereja em cima do bolo" da História. Ela é matéria a partir da qual a História se forma: ela é feita de tempo.

A relação entre a imagem e a reflexão produzida sobre essa imagem não terá mudado quando a produção, a difusão e o acesso às imagens, se o pudermos dizer desta forma, se democratizaram e a relação deixou de ser colectiva e cada vez mais individual?

Há dois aspectos nessa questão: um é a ideia de democratização, e outro a dimensão de ritual. Walter Benjamin referia-se a um "declínio da aura". De facto, hoje o filme Tempos Modernos de Chaplin vê-se muito mais num espaço privado, num DVD, do que numa sala de cinema. Mesmo que a natureza do colectivo tenha sido alterada, isso não significa que tenha desaparecido. Fenómenos de massa há-os por todo o lado, mas já não obedecem à mesma forma. Mas há alguns rituais que sobreviveram. Vermos à mesma hora o telejornal é comportarmo-nos como na Idade Média, quando se deixava de trabalhar para se rezar a uma hora fixa. No domínio da arte - que muitas vezes se apresenta como uma religião mesmo que não o assuma - a aura de uma obra única não desapareceu. É possível ver milhares de pessoas, quais peregrinos, a esperar durante horas, à neve, para verem "a tal" obra de arte de Claude Monet...

Estamos permanentemente entre a fronteira da história vista pela arte e a história vista pelos historiadores, ou seja, entre a reescrita da história e a escrita da história. Isso coloca um problema com a nossa própria interpretação das imagens.

As imagens são coisas capazes de transpor fronteiras, são uma das suas maiores forças. Todos os dias colocamos uma imagem num envelope (falo dos selos, evidentemente) e a imagem transpõe fronteiras. Num plano mais geral, devemos reconhecer às imagens essa fundamental capacidade de migração: ela toca tanto o espaço geográfico (Aby Warburg estudava os percursos dos objectos divinatórios desde Babilónia até Itália, passando por todo a bacia do Mediterrâneo), o tempo histórico (vinte e cinco séculos separaram esses objectos quase idênticos que são os ex-votos da Antiguidade e aqueles que encontramos hoje em Portugal), e a dimensão teórica (há tanta ineficácia inteligível como há elementos sensíveis numa imagem, para usar aqui uma célebre oposição filosófica platoniana). Eis porque as tentativas de postulação do que é uma imagem no geral - as tentativas de criação de uma "ontologia da imagem" - estão votadas ao falhanço, e ao falhanço do dogmatismo, e do pensamento autoritário. O que me surpreende, pelo contrário, é que cada imagem singular, por pouco fecunda que seja, obriga a que coloquemos tudo em questão. Cada imagem volta a baralhar as cartas do mundo.

Na conferência que fez na Gulbenkian em Novembro de 2010 ["Coisa pública, Coisa dos povos, Coisa plural", em A República por Vir, Fund. Calouste Gulbenkian, 2011], fala de um momento de perigo associado a duas ideias permanentemente justapostas: a impossibilidade da história integral e a presunção da história universal. O que é o momento de perigo?

Benjamin criticava as pretensões de uma história universal. Contra ela propunha uma prática da história em que é o presente - "o instante do perigo"- que se dirige ao passado e faz surgir novas questões. O passado é vivo, ele muda com os nossos desejos presentes uma vez que a memória não existe sem um movimento de desejo (aprendemos isso com Proust ou Freud). Esta nova configuração problemática que surge "no momento de perigo" e, em geral, em todos os momentos de crise, não é senão uma imagem dialéctica. Por isso, falava de uma "remontagem dos tempos perdidos". O que é montagem senão uma construção - de imagens, de ideias ?? que junta pedaços separados por imensas lacunas? A História não é, ela mesma, composta por pedaços separados por lacunas? A história universal, a história positivista, não é senão querer histórias sonhadas como narrativas lineares: o grande fio da História. Na verdade, há milhares de fios entrelaçados, e não apenas entrelaçados mas atados, partidos, cortados... De certa forma, a História precisa sempre ser montada.

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Como lidar com essas lacunas e as imagens que não vimos? E como nos pode ajudar isso a perceber melhor estes tempos em que a Europa que se começou a construir nas cinzas da II Guerra parece agora posta em causa?

Há tantas imagens perfeitamente visíveis que não podemos ver. Michel Foucault disse um dia que o papel da filosofia não era tanto tornar visível o que era invisível mas fazer-nos ver o que já é visível e que os nossos olhos reprimem. A história das imagens - e mesmo a história da arte - constitui-se sempre como um verdadeiro "campo de batalha". É comum opor-se uma imagem a outra imagem ou uma massa de imagens contra outra massa de imagens. Uma grita para que não fique em segundo plano, não seja enterrada, censurada. Como quando uma língua toma o lugar para ofuscar uma outra que se havia elevado. A Europa não deixou de viver a remontagem dos tempos perdidos.

Quatro fotografias feitas por prisioneiros em Auschwitz- -Birkenau durante o Holocausto lançaram a discussão sobre a imagem como testemunha da História e levaram o filósofo Georges Didi-Huberman a escrever Imagens apesar de tudo, lançado hoje na Culturgest. Por Tiago Bartolomeu Costa

Georges Didi-Huberman é filósofo, historiador de arte e comissário, mas é também um dos mais activos defensores de uma reformulação do discurso sobre a História a partir da importância das imagens. O seu livro Imagens apesar de tudo é lançado hoje na Culturgest, em Lisboa, pela Ymago (17h30). Aos 59 anos, lança-se na análise de quatro fotografias feitas no campo de concentração de Auschwitz-Birkenau por um Sonderkommando (grupo de prisioneiros judeus que removiam os corpos dos mortos e ajudavam os nazis noutras tarefas). Desconhecidas até há pouco tempo, mostram, pela primeira vez, o processo de tortura durante o Holocausto. O que as imagens vêm mostrar, diz, é a hipótese de reconstrução do testemunho, até aqui feito pela palavra em detrimento da imagem. O filósofo, professor na École des Hautes Études des Sciences Sociales, em Paris, sugere que a História deve deixar de se entender como uma disciplina autónoma e, seguindo os passos de Aby Warburg e Walter Benjamin, atravessar-se noutras disciplinas, como a História da Arte, a Filosofia, a Antropologia e a Psicanálise.

As imagens das quais partiu para o livro põem em causa a hierarquia do testemunho, opondo a palavra à imagem. As imagens podem mentir?

Estas quatro fotografias doforam realizadas pelos prisioneiros de Birkenau em risco de vida e são, a meus olhos, testemunhos visuais aos quais devemos prestar toda a nossa atenção. São, no momento, as únicas imagens do género que conhecemos. Os meus oponentes pensam, pelo contrário, que a noção de testemunho visual é insustentável: somente a palavra testemunha. A imagem seria, pelo contrário, um falso-semelhante, uma ilusão, uma mentira. Estamos em pleno platonismo. Que as imagens sejam mentiras cabe-nos a nós comprová-lo todos os dias perante a publicidade, os cartazes eleitorais, algumas reportagens, etc. Mas a polémica consistia no estatuto da "imagem geral". A minha posição consiste em nunca falar da imagem no geral. Pensamos na linguagem como algo geral? Deduzimos que um discurso de Goebbels nos faz atirar às urtigas toda a língua no geral? Que é preciso esquecer Hölderlin? É preciso ver em todas as frases uma mentira só porque cada frase de Goebbels o é? As imagens têm um papel considerável na construção da memória histórica. Mas não são todas iguais: é uma questão de determinar o seu "valor de uso". Há, tal como na palavra, imagens que mentem e outras que dizem a verdade, mesmo que essa verdade - é quase inútil dizê-lo, mas foi Lacan que o afirmou - não seja nunca toda a verdade.

E isso altera de que forma a diferença entre cúmplice e espectador?

Desde que empregamos em filosofia a palavra teoria (que pressupõe o olhar) ou desde que Brecht inventou "o teatro crítico", distanciado, não podemos mais confundir espectador e cúmplice. Fazer essa confusão é postular todos os olhares perversos, malditos e criminosos. É opor a imaginação (faculdade necessária ao pensamento, como no pensamento político, assim o disse Hannah Arendt) à identificação. Esta confusão é desastrosa, e estava na base das diatribes que surgiram relativamente ao meu trabalho. Felizmente que há, em França, bons filósofos que reflectem sobre uma prática não alienada do espectador e que mostram como a reflexão sobre as imagens não cessa de dar frutos...: penso em livros como, de Marie-José Mondzain, ou, de Jacques Ranciére [editado em Portugal pela Orfeu Negro].

Que papel têm as imagens na leitura da História?

De facto, as imagens - que são objectos cruciais da cultura no seu sentido mais largo do termo, pois estão no cruzamento de todos os caminhos - são submetidas, pela História, à sua metodologia prática. Há já algum tempo que os historiadores usam as imagens, mas ainda a título de ilustração. Perpetuamos uma hierarquia do texto (fiável) e da imagem (menos fiável). Ainda não integrámos no nosso olhar as propostas transformadoras de Walter Benjamin, quando ele diz que a "lisibilidade" da História passa pelas imagens ou, mais exactamente, pelo que ele chama de "imagens dialécticas". A imagem não é "a cereja em cima do bolo" da História. Ela é matéria a partir da qual a História se forma: ela é feita de tempo.

A relação entre a imagem e a reflexão produzida sobre essa imagem não terá mudado quando a produção, a difusão e o acesso às imagens, se o pudermos dizer desta forma, se democratizaram e a relação deixou de ser colectiva e cada vez mais individual?

Há dois aspectos nessa questão: um é a ideia de democratização, e outro a dimensão de ritual. Walter Benjamin referia-se a um "declínio da aura". De facto, hoje o filme Tempos Modernos de Chaplin vê-se muito mais num espaço privado, num DVD, do que numa sala de cinema. Mesmo que a natureza do colectivo tenha sido alterada, isso não significa que tenha desaparecido. Fenómenos de massa há-os por todo o lado, mas já não obedecem à mesma forma. Mas há alguns rituais que sobreviveram. Vermos à mesma hora o telejornal é comportarmo-nos como na Idade Média, quando se deixava de trabalhar para se rezar a uma hora fixa. No domínio da arte - que muitas vezes se apresenta como uma religião mesmo que não o assuma - a aura de uma obra única não desapareceu. É possível ver milhares de pessoas, quais peregrinos, a esperar durante horas, à neve, para verem "a tal" obra de arte de Claude Monet...

Estamos permanentemente entre a fronteira da história vista pela arte e a história vista pelos historiadores, ou seja, entre a reescrita da história e a escrita da história. Isso coloca um problema com a nossa própria interpretação das imagens.

As imagens são coisas capazes de transpor fronteiras, são uma das suas maiores forças. Todos os dias colocamos uma imagem num envelope (falo dos selos, evidentemente) e a imagem transpõe fronteiras. Num plano mais geral, devemos reconhecer às imagens essa fundamental capacidade de migração: ela toca tanto o espaço geográfico (Aby Warburg estudava os percursos dos objectos divinatórios desde Babilónia até Itália, passando por todo a bacia do Mediterrâneo), o tempo histórico (vinte e cinco séculos separaram esses objectos quase idênticos que são os ex-votos da Antiguidade e aqueles que encontramos hoje em Portugal), e a dimensão teórica (há tanta ineficácia inteligível como há elementos sensíveis numa imagem, para usar aqui uma célebre oposição filosófica platoniana). Eis porque as tentativas de postulação do que é uma imagem no geral - as tentativas de criação de uma "ontologia da imagem" - estão votadas ao falhanço, e ao falhanço do dogmatismo, e do pensamento autoritário. O que me surpreende, pelo contrário, é que cada imagem singular, por pouco fecunda que seja, obriga a que coloquemos tudo em questão. Cada imagem volta a baralhar as cartas do mundo.

Na conferência que fez na Gulbenkian em Novembro de 2010 ["Coisa pública, Coisa dos povos, Coisa plural", em A República por Vir, Fund. Calouste Gulbenkian, 2011], fala de um momento de perigo associado a duas ideias permanentemente justapostas: a impossibilidade da história integral e a presunção da história universal. O que é o momento de perigo?

Benjamin criticava as pretensões de uma história universal. Contra ela propunha uma prática da história em que é o presente - "o instante do perigo"- que se dirige ao passado e faz surgir novas questões. O passado é vivo, ele muda com os nossos desejos presentes uma vez que a memória não existe sem um movimento de desejo (aprendemos isso com Proust ou Freud). Esta nova configuração problemática que surge "no momento de perigo" e, em geral, em todos os momentos de crise, não é senão uma imagem dialéctica. Por isso, falava de uma "remontagem dos tempos perdidos". O que é montagem senão uma construção - de imagens, de ideias ?? que junta pedaços separados por imensas lacunas? A História não é, ela mesma, composta por pedaços separados por lacunas? A história universal, a história positivista, não é senão querer histórias sonhadas como narrativas lineares: o grande fio da História. Na verdade, há milhares de fios entrelaçados, e não apenas entrelaçados mas atados, partidos, cortados... De certa forma, a História precisa sempre ser montada.

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Como lidar com essas lacunas e as imagens que não vimos? E como nos pode ajudar isso a perceber melhor estes tempos em que a Europa que se começou a construir nas cinzas da II Guerra parece agora posta em causa?

Há tantas imagens perfeitamente visíveis que não podemos ver. Michel Foucault disse um dia que o papel da filosofia não era tanto tornar visível o que era invisível mas fazer-nos ver o que já é visível e que os nossos olhos reprimem. A história das imagens - e mesmo a história da arte - constitui-se sempre como um verdadeiro "campo de batalha". É comum opor-se uma imagem a outra imagem ou uma massa de imagens contra outra massa de imagens. Uma grita para que não fique em segundo plano, não seja enterrada, censurada. Como quando uma língua toma o lugar para ofuscar uma outra que se havia elevado. A Europa não deixou de viver a remontagem dos tempos perdidos.

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